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A Voz Suprema do Blues: a música que preenche o vazio

Assistir A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey’s Black Bottom, no original) é, em muitos aspectos, como acompanhar uma peça de teatro — e não por acaso a produção é de fato inspirada em uma montagem pensada para os palcos. O longa protagonizado por Viola Davis e Chadwick Boseman é escrito por Ruben Santiago-Hudson, produzido por Todd Black, Denzel Washington e Dany Wolf, baseado na peça de 1984 de mesmo nome escrita por August Wilson. Nele, acompanhamos algumas horas do dia de uma gravação da lendária Ma Rainey (Davis) em um estúdio claustrofóbico de Chicago, os embates entre ela e o dono da gravadora, e os sonhos de sucesso do trompetista Levee (Boseman).

Ma Rainey foi uma das primeiras cantoras afro-americanas a se profissionalizar cantando blues, além de uma das primeiras dentro do gênero a gravar álbuns nos anos 1920. Conhecida como a Mãe do Blues, alcunha que permeia todo o longa, Ma Rainey foi também responsável por difundir o vaudeville — um tipo de programa de entretenimento de variedades que fez muito sucesso nos Estados Unidos e Canadá entre os anos 1880 e 1930 — e influenciar uma geração de cantores de blues com seus trejeitos e voz poderosa. A Voz Suprema do Blues pega emprestada a figura emblemática de Ma Rainey para contar sua história em um sufocante dia quente de Chicago, permeando fatos reais e fictícios em uma trama que cresce em tensão com o passar dos minutos.

A figura de Ma Rainey, por si só, já valeria um filme. Nascida Gertrude Pridgett em abril de 1886, no estado da Geórgia, nos Estados Unidos, ela começou a se apresentar ainda adolescente. O nome “Ma” Rainey veio depois que ela se casou aos dezoito anos com Will “Pa” Rainey. Juntos, Ma e Will fizeram apresentações com outros grupos musicais até formarem seu próprio, o Rainey and Rainey, Assassinators of the Blues. Ma Rainey gravou sua primeira música em 1923, iniciando uma sequência de mais de cem gravações, entre elas as que aparecem no longa, “Moonshine Blues”“Ma Rainey’s Black Bottom”. Como se não bastasse o sucesso que conquistou por conta própria em um mundo que não estava pronto para apreciá-la por completo, Ma Rainey também participou de duetos com Louis Armstrong e Thomas Dorsey. Sua vida foi breve e intensa, aposentando-se dos palcos e da música em 1935, e falecendo em 1939 aos 52 anos de idade.

A Voz Suprema do Blues

A Ma Rainey que acompanhamos em A Voz Suprema do Blues está no auge de sua carreira em uma Chicago que não poderia desprezá-la mais. Para além de todo o contexto intrínseco ao fato de ser uma mulher de sucesso no mundo da música, Ma Rainey também é uma mulher negra nesse universo onde homens brancos querem controlá-la a todo custo — o que fica visível por meio das falas e ações de Irvin (Jeremy Shamos), seu agente, e Sturdyvant (Jonny Coyne), dono da gravadora. Eles querem que Ma Rainey grave determinadas músicas e do jeito como eles pensam ser conveniente, mas a Mãe do Blues não cede a ninguém. Olhando de fora pode parecer que ela está apenas dando um show de estrelismo, algo que se espera das divas de hoje em dia, mas observando em retrospecto o que Ma Rainey faz, de fato, é firmar sua posição como dona da própria vida e da própria carreira. É o que a cantora pontua durante uma das conversas que tem com Slow Drag (Michael Potts), um dos músicos de sua banda, após Irvin insistir em continuar as gravações sem que a Coca-Cola gelada que ela pede lhe seja entregue.

“Mas eu não me calo. A Ma não aceita desaforo. Querem pegar sua voz e aprisioná-la em caixas elegantes cheias de botões, mas não podem pagar uma Coca-Cola. Alguns tostões por garrafa. Não se importam comigo. Só querem a minha voz. Já aprendi a lição. E vão me tratar como quero ser tratada, não importa o quanto isso doa. Estão lá agora me xingando. Me chamando de tudo, menos filha de Deus. Mas não podem fazer nada porque ainda não têm o que querem. Assim que conseguirem minha voz em uma de suas máquinas, eu viro uma qualquer em quem podem pisar em cima. Aí não tenho mais utilidade.”

Embora hoje em dia o blues seja conhecido como um estilo cantado predominantemente por homens, nos anos 1920 eram as mulheres que faziam sucesso dentro do gênero. Capitaneadas por Ma Rainey, que ainda que não tenha criado o blues em si se tornou a primeira cantora dentro do estilo a ficar famosa por sua voz, muitas mulheres conduziam pequenas turnês pelos Estados Unidos, apresentando-se em casas de shows e ajudando a difundir o estilo musical por todo o país. O blues nasceu entre os escravizados que trabalhavam forçadamente em fazendas no final do século XIX nos Estados Unidos que, durante sua árdua jornada de trabalho, costumavam cantarolar melodias que expressavam toda dor e a tristeza a que eram submetidos diariamente, com letras que falavam muito sobre superar as dificuldades da vida do campo e a esperança de uma existência mais digna. A palavra “blues”, em inglês, tem origem na palavra “blue”, “azul”, cor que é geralmente associada à tristeza e que derivou para o nome do gênero musical.

Diz-se que é muito difícil precisar o exato momento em que o blues nasceu, mas é certo afirmar que ele é uma união da cultura africana, trazida com os povos escravizados, e elementos do folclore norte-americano. O ritmo esteve sempre ligado às lavouras de algodão e também aos cultos das igrejas frequentadas pela população negra norte-americana. Como principal fonte de todos os gêneros musicais nascidos nos Estados Unidos, do jazz ao soul, do rock’n roll ao disco, o artigo “Uma Introdução à história do Blues”, do Portal Geledés, diz:

“De fato, contrariamente ao jazz, cuja vocação universalista o fez sair rapidamente de seu contexto etnocultural de origem, o Blues foi a primeira e principal forma cultural especificamente negro-americana e, enquanto tal, foi — como o povo negro que a criou e até meados dos anos 60 — objeto de desprezo ou de ignorância dos americanos brancos — apesar de transtornar insidiosamente e seguramente, por sua incomparável originalidade, seu vigor e sua riqueza, toda a música americana — antes de estender-se ao Velho Continente. A história do Blues, sua evolução, suas sucessivas mutações são inseparáveis da longa subida para a superfície do povo negro americano, para quem, durante várias décadas, o Blues foi, mais que uma música, seu principal meio de expressão, desempenhando igualmente, desde então, um papel sociológico e psicológico absolutamente não-habitual na música moderna do mundo ocidental.”

Dessa forma, é impossível encarar A Voz Suprema do Blues como um filme simples sobre os embates e egos de um dia de gravações. Todo o contexto histórico carregado por meio do blues durante todos os anos a partir de sua origem estão impressos em cada um dos personagens negros que passeiam em frente às câmeras do diretor George C. Wolfe, e dos brancos, que querem dominar, mais uma vez, algo que escapa ao seu entendimento. Ma Rainey, incorporada com primazia por Viola Davis, é a figura que chegou “lá”, atingiu o sucesso, mas mesmo assim é vista apenas como um meio para um fim. Sua fala — “Assim que conseguirem minha voz em uma de suas máquinas, eu viro uma qualquer em quem podem pisar em cima. Aí não tenho mais utilidade.” — citada acima, exemplifica bem a dicotomia entre o que ela entende por sua arte, e o que os brancos enxergam quando olham para ela. Em outra fala da cantora, descansa a essência de seu trabalho, o que torna a cena final, de uma banda inteiramente composta por homens brancos cantando as músicas compostas por Levee, ainda mais bizarra.

“Os brancos não entendem o blues. Eles o ouvem, mas não sabem de onde vem. Não sabem que é a vida falando. Você não canta pra se sentir melhor. Canta porque é um modo de entender a vida. O blues o ajuda a levantar da cama pela manhã. Você levanta sabendo que não está só. Que tem algo mais no mundo. Alguma coisa que a música adiciona. O mundo seria vazio sem o blues. Eu pego esse vazio e o preencho com alguma coisa. Não inventei o modo de cantar o blues. Ele sempre existiu. Mas se querem me chamar de Mãe do Blues, por mim, tudo bem.”

O que nos leva a Levee. O personagem é inquieto, contestador, orgulhoso de seu talento enquanto trompetista e repleto de sonhos de grandeza. Ele sabe que é excelente no que faz, o blues é o ritmo do sangue que bombeia em sua veias, que permeia e norteia sua existência, mas ele precisa se submeter aos homens brancos, que possuem o poder de lançar suas gravações ou não, a fim de tentar chegar ao estrelato da mesma maneira que Ma. É doloroso assistir Levee, visto que quem dá luz ao personagem, Chadwick Boseman, faleceu pouco tempo depois da conclusão das gravações de A Voz Suprema do Blues. Vê-lo em ação é perceber o quanto o mundo foi privado de um ator extremamente talentoso, brilhante em tudo o que se propõe. Nas mãos de qualquer outra pessoa, Levee seria apenas um personagem inconveniente, mas com Boseman o telespectador é capaz de ver todas as nuances e brigas internas por meio de um simples olhar.

A Voz Suprema do Blues

A maneira com que o filme se desenrola, e que lembra as apresentações teatrais, é um trunfo para cada um dos atores de A Voz Suprema do Blues, mas especialmente para Viola Davis e Chadwick Boseman. Davis, é claro, dispensa apresentações e domina qualquer cena em que se encontra, mas ver Boseman interpretar os monólogos e os rompantes de Levee é de deixar qualquer um atônito com seu talento para exprimir sensações. O corpo magro, já maltratado pelo câncer traiçoeiro, não é nem de longe o mesmo que vimos em Pantera Negra e seu T’Challa, mas é o mesmo que transborda de emoção quando Levee conta aos companheiros de banda o estupro sofrido por sua mãe quando ele tinha oito anos de idade, e o que aconteceu com seu pai quando partiu em busca de vingança. Toda a cena em que a revelação é feita, dói. Dói por saber que o estupro não é um caso isolado em ficção, e dói por saber que o racismo dos anos 1920 ainda está aí, batendo nos corpos negros como sempre bateu.

Ainda que Chicago esteja na região Norte dos Estados Unidos que, à época, era uma região mais industrializada e defensora da liberdade, antiescravagista, a tensão racial ainda era palpável mesmo com o final da Guerra Civil. Ex-escravos das fazendas do Sul migraram para o Norte em busca de trabalho — momento que é exposto em A Voz Suprema do Blues por meio de uma montagem com fotografias no início do longa —, e mesmo os artistas negros que alcançaram a fama permaneciam segregados e invisibilizados. A forma de exploração mudou, mas os explorados permaneciam os mesmos.

Colocar Ma Rainey e a banda circulando em um estúdio de gravação por horas, em um dia de muito calor, serve para aumentar a sensação de claustrofobia de toda a produção. Parece que algo está prestes a acontecer, mas não sabemos muito bem o que. O calor que faz o suor escorrer nos corpos de todos os personagens, o ventilador que não gera conforto, uma porta trancada que Levee tenta abrir a todo custo, são elementos que constroem a narrativa de A Voz Suprema do Blues até chegar a um estado de pressão alarmante. Os diálogos e as discussões sobre o papel do negro na sociedade estadunidense dos anos 1920, nos faz mergulhar em uma atmosfera intensa até os minutos finais, quando percebemos que estamos prendendo o fôlego, aguardando o desfecho da trama que acompanhamos até então. Todos os atores brilham em seus respectivos papéis, mas é impossível não perceber que esse é o filme de Chadwick Boseman. O ator se doa por completo aos sonhos, dores e anseios de Levee durante as pouco mais de 1h30 de filme e ele rouba cada cena em que aparece. Seus discursos são cheios de dor de uma vida que lhe foi arrancada, de sonhos que permanecem apenas dentro de si. Levee não é um personagem real, mas espelha as trajetórias de centenas de artistas negros da década de 1920.

A Voz Suprema do Blues

Levee não esconde suas aspirações. Ele quer ser mais do que um músico de banda para Ma Rainey, quer compor suas próprias canções e gravá-las da maneira como acha melhor. A música que ele aparece compondo durante A Voz Suprema do Blues, e que pede para que Sturdyvant o deixe gravar, vai parar nos vocais de uma banda composta apenas por homens brancos ao final do longa. É estranho vê-los tocar os versos de Levee, e causa desconforto perceber como não há ritmo e empolgação se comparados com Ma Rainey e sua banda tocando blues. Para Levee, Sturdyvant diz que suas músicas não são o que ele está procurando, mas o que o dono da gravadora faz é se apropriar das canções do trompetista e gravá-las da maneira como acha apropriado, cortando toda emoção e ritmo dos versos. De acordo com artigo no Refinery29, nos anos 1920 e 1930, muitas gravadoras proeminentes, inclusive a Paramount que produzia Ma Rainey, enriqueceram por meio do trabalho de artistas negros, mas sem pagá-los de acordo no processo. Canções de blues, gospel e jazz, com arranjos de artistas negros, logo se transformaram nos maiores lucros das gravadoras, mas royalties não eram concedidos a seus autores. Artistas negros recebiam menos do que artistas brancos enquanto sustentavam toda uma cadeia extremamente lucrativa.

A Voz Suprema do Blues não é apenas um filme sobre uma tarde de gravações em um estúdio da década de 1920. É um longa que extrai das raízes do blues toda a dor da gente que o criou, suas tristezas e suas melodias. Os monólogos de seus personagens são capazes de nos encantar, pela qualidade de seus intérpretes, e chocar, pelo conteúdo de suas falas. É um filme que fala de música, de negritude, de racismo e de amor. Amor pela música que os mantêm vivos mesmo contra todas as circunstâncias.

“Não aguento o silêncio. Sempre preciso de música tocando na minha cabeça. Equilibra as coisas. A música preenche o vazio. Quanto mais música no mundo, menos vazio.”

A Voz Suprema do Blues recebeu 5 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Atriz (Viola Davis), Melhor Ator (Chadwick Boseman), Melhor Figurino, Melhor Maquiagem e Cabelo, Melhor Produção.