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Emma. e a importância dos figurinos ao se contar uma história

Existe uma cena de Em Chamas, segundo livro da saga Jogos Vorazes, em que a protagonista Katniss Everdeen (vivida nos filmes por Jennifer Lawrence) dá uma entrevista para um famoso programa de TV na Capital. Competindo pela segunda vez nos jogos — que tem como principal objetivo colocar um competidor de cada um dos 12 distritos de Panem em uma arena para que eles lutem pela própria vida, em prol do entretenimento da Capital —, ela se tornou uma figura importante na revolução dos Distritos, um símbolo. Chamada de The Mockingjay, suas atitudes no primeiro jogo, que vão de tomar o lugar da sua irmã e até mesmo proteger a vida de Peeta (Josh Hutcherson) a todo e qualquer custo, e sua resistência inspira milhares. Isso faz com que eventualmente ela se torne mais do que apenas Katniss Everdeen, competidora corajosa e resiliente do Distrito 12, mas Katniss, um símbolo político, e como toda figura política, toda sua imagem é construída para reforçar esse mesmo aspecto. Apesar de não necessariamente ser a pessoa mais entusiasmada com seu status recém adquirido, ela compra, até certo ponto, as imposições ao seu redor e desempenha o papel que é exigido de si. O que nos leva à cena mencionada anteriormente, uma das mais icônicas do segundo romance e da história no geral: a do seu vestido que literalmente fica em chamas.

De muitas formas, o vestido representa o papel de Katniss na revolução e ao mesmo tempo seu embate com a Capital. Das cinzas, ela renasce e seu vestido pega fogo transformando um tecido doce e claro, em algo com tons escuros, marcante. Apesar de ter lido o livro pela primeira (e única) vez durante o ensino médio, lembro de ter entendido a importância da cena e porque ela eventualmente se tornou tão querida e mencionada pelos fãs. Quando a saga foi adaptada para os cinemas, no entanto, essa parte em específico saiu um pouco diferente do que eu havia imaginado. A adaptação de Em Chamas é com certeza a melhor dos quatro filmes, fazendo jus ao universo criado por Suzanne Collins, mas a cena do vestido perde muito de sua força. Os fatores combinados da cena (como direção, atuação, etc.) não tiveram a mesma grandeza da versão original e tudo bem, porque essa era uma expectativa minha — e acredito que muita gente tenha gostado do resultado, no final das contas. Mesmo assim, ainda acredito que esse momento também pode ser um resumo pertinente sobre porque o papel dos figurinos tem um desempenho tão importante e como um bom trabalho na área pode acrescentar algo para todas as tramas, seja lá qual for o seu gênero.

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Assim como outros aspectos disponíveis para se criar um filme convincente e atraente (como edição, trilha sonora, etc.), os figurinos são uma ferramenta para o diretor e podem ser usados para acrescentar uma nova camada para a história e dar profundidade para os personagens em pequenos detalhes, seja em obras contemporâneas ou de época. A utilização das roupas e suas particularidades, como cor, tecido e corte, podem ajudar — e muito — na hora de trabalhar a personalidade de um personagem, explorando seu contexto social, político ou até mesmo a forma como ele vê a vida e aqueles que estão ao seu redor, como ele se apresenta. Apesar da discussão sobre os figurinos em si não ser tão grande quanto o discurso sobre os melhores filmes, direção ou roteiro, existem pessoas que estão realmente dedicadas a explorar a arte dos figurinistas e como as roupas podem ajudar a deixar a história mais rica.

Existem milhares de produções que contam com um trabalho excelente nesse aspecto, mas consigo pensar em alguns exemplos recentes que se destacam dentro do próprio escopo. Crazy Rich Asians (2018) é um ótimo filme nesse aspecto. Apelando para a extravagância, a família rica do protagonista é mostrada em roupas de estilo e qualidade, reforçando exatamente a vida fabulosa que eles têm. Todos estão sempre impecavelmente vestidos — de um jeito que parece um pouco fora da realidade para nós, meros mortais. Mas dentro da proposta do filme, isso funciona muito bem. Carol (2016) de Todd Haynes, também funciona muito bem nesse aspecto e a protagonista de Cate Blanchett está sempre com casacos elegantes e acessórios que combinam perfeitamente com as roupas, criando a figura da socialite com perfeição. The Great Gatsby (2013), Anna Karenina (2012), Phantom Thread (2017), Pantera Negra (2018) e até mesmo obras como Mad Max: Fury Road (2015) fizeram um bom trabalho nos figurinos, não necessariamente por obedecerem todas as regras quando se trata de “precisão”, mas porque fizeram figurinos de acordo com a história que o diretor queria contar (e como iria fazê-lo). Não por acaso, esses foram alguns dos longas que levaram o prêmio de Melhor Figurino para casa nos últimos anos do Oscar.

Esse ano, as regras para o que compõem um  bom figurino não se diferem das edições passadas, e os figurinistas e respectivas produções que concorrem são: Alexandra Byrne, por Emma.; Trish Summerville por Mank; Ann Roth por A Voz Suprema do Blues; Massimo Cantini Parrini, de Pinóquio; e, por fim, Bina Daigeler, de Mulan.

Cada figurinista traz uma peculiaridade diferente para a obra que está fazendo, sendo que a maioria dos filmes são situados em épocas bem diferentes entre si. Mulan, por exemplo, acontece na China, durante a dinastia Tang (518-618). Com uma cultura inteira a ser explorada pelo guarda roupa (além de outros aspectos), o trabalho de pesquisa da figurinista alemã teve que ser muito mais avançado e detalhado do que seus outros concorrentes, o que não necessariamente quer dizer que ela fez um trabalho melhor. Com Mank, um filme inteiro em preto e branco, Summerville teve que usar das sombras para criar roupas que chamem atenção, algo que pode ser desafiador para uma pessoa acostumada a trabalhar com o uso de cores, sempre tão essencial na criação de roupas. Summerville fez, por exemplo, as roupas de Em Chamas, longa citado no começo do texto, onde o vermelho é um elemento chave na trajetória de Katniss. Roth, por trabalhar com uma figura real, tomou inspiração na vida e no contexto em que Ma Rainey, pioneira do blues, foi criada como pessoa e artista, algo que sempre rende muito material; e, por fim, Parrini procurou em si elementos da fantasia para dar vida a uma nova visão do clássico Pinóquio.

Apesar de cada um desses filmes terem acertos e erros, no entanto, nenhum deles me fascinou tanto quanto o trabalho meticuloso de Alexandra Byrne na versão mais recente de Emma.

Figurinos

Vi Emma. pela primeira vez durante meu segundo mês de isolamento social e logo adquiri uma obsessão intensa pelo filme de Autumn de Wilde. Estrelado por Anya Taylor-Joy como a bela, inteligente e indulgente protagonista de Jane Austen, a heroína falha tem a atenção imediata de qualquer pessoa quando está na tela e isso se deve ao fato não apenas de que Taylor-Joy parece ter nascido para o papel, mas também porque todos os outros aspectos do filme parecem entender muito bem a personalidade de Emma, que é de longe uma das personagens austeanas mais interessantes e complexas. Ao longo das várias vezes que revi o filme, tentando entender suas falhas e pontos fortes, percebi como a trilha sonora de Isobel Waller-Bridge dá vida para os personagens (usando elementos distintos para sublimar suas personalidades) e como o figurino de cada um deles tem exatamente o mesmo efeito.

Alexandra Byrne, que foi responsável pelo trabalho, já participou do desenvolvimento de diversos filmes históricos, entre eles o recente Mary Queen of Scots, estrelado por Saoirse Ronan como Mary, Rainha da Escócia, e Margot Robbie como a Rainha Elizabeth I. Em 2008, recebeu o Oscar de Melhor Figurino pelo trabalho que fez em Elizabeth: The Golden Age, coincidentemente também sobre a Rainha Elizabeth I, dessa vez vivida por Cate Blanchett. Segundo Byrne, para fazer as roupas de uma obra pré-1900, é preciso entender que esse é um trabalho quase intuitivo, que não necessariamente envolve apenas pesquisa, mas também interpretação. Conversando com a diretora, as duas chegaram a um acordo inteligente sobre a forma como Emma Woodhouse iria ser retratada por meio das roupas, usando todos os recursos disponíveis para fazer com que suas roupas andassem de mãos dadas com a sua personalidade — algo que aprecio profundamente no desenrolar da história. Por causa da sua fortuna, privilégio e personalidade, Emma é admirada nos seus ciclos sociais e a maioria das pessoas (incluindo a própria Harriet Smith, vivida por Mia Goth) parecem olhá-la como uma espécie de inspiração. Suas roupas de cores quentes, seus chapéus e casacos elegantes provam exatamente esse ponto. Todas as interações sociais onde ela parece ter a liderança da sua comunidade, esbanja essas cores, sendo que nos momentos mais íntimos do filme, onde ela demonstra uma vulnerabilidade vista por poucos (como nas cenas com Harriet e na dança com o Mr. Knightley), os tons mais claros e pastéis parecem reinar.

É possível perceber que a paleta de cores aqui é muito mais alegre do que geralmente é mostrado em dramas históricos. Ao invés de adotar o básico marrom, verde musgo e off white que é tão comum nessas obras, Emma. tem uma paleta que é divertida e adora brincar com as possibilidades. Na época, as pessoas com bastante dinheiro (como é o caso da família de Emma) adoravam usar cores e, apesar de todas as pigmentações que existem hoje não estarem disponíveis na época, os bailes e eventos sociais eram mais alegres do que fomos levados a imaginar até então. As roupas e a ambientação parecem estar sempre em harmonia, apontando a personalidade enérgica da protagonista, assim como os acessórios são elementos bem presentes (luvas, chapéus, penas, etc.) e as silhuetas são marcadas da forma certa (ao contrário de Little Women, mas chegaremos lá). A química tão óbvia de Taylor-Joy e Johnny Flynn, que vive Mr. Knightley, é uma das coisas que faz com que o filme seja uma das obras mais sexys de Jane Austen, claro, mas esse aspecto também é reforçado pela forma como os figurinos, com cores vibrantes, acrescentam a forma como os dois se encaram, deixando de lado o sentimento quase paternal e protetor que ele tinha criado por ela e vice versa.

“Você tem que respeitar o período da história mas também, como costume designer, criar um mundo crível para que essa história possa sobreviver (…) Em Emma., existe uma quantidade incrível de espontaneidade nesses vestidos, o que foi contagiante.”Alexandra Byrne para a Hero Magazine.

Com os outros trabalhos de Byrne, é possível perceber que ela tem um olho incrível para misturar o moderno e o que é “precisamente histórico”. Confesso que minha prioridade ao reparar no figurino de um longa não é necessariamente observar se ele corresponde às normas aplicadas da época, mas estudar como exatamente o figurino bate com aquilo que é apresentado dos personagens e da história. E apesar de tudo apontar para o fato de que Emma. é quase perfeito em relação a representação histórica nas roupas, é muito mais interessante pensar na forma como elas ajudam a explorar a visão dos personagens. Emma Woodhouse, a mais sofisticada do seu ciclo social, é representada assim pela atuação da atriz, pela visão única da diretora e roteirista em relação a sua história, sua música tema e pelas roupas de Byrne. Mr. Knightley, seu parceiro e igual em todos os sentidos, também.

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Se você é fã de dramas históricos, com certeza já viu uma cena onde uma mulher sofre para apertar seu espartilho, alegando que ela não vai conseguir respirar se usá-lo tão apertado. Essa sequência, apesar de ser praticamente um clássico dentro de obras do gênero, não é necessária e historicamente correta e existem milhares de especialistas que defendem o uso do espartilho na época, alegando que o uso não era exatamente como algumas pessoas alegam. Bridgerton, o fenômeno mais recente da Netflix, que acompanha os oito irmãos que levam o sobrenome do título, é apenas uma das produções com uma cena parecida. A série de oito episódios acontece exatamente na mesma época de Emma., durante o período regencial, e ao passo que o trabalho de Byrne é quase inteiramente fiel ao que realmente se usava na época, Bridgerton é o completo oposto. Isso não quer dizer que as roupas não funcionam em nenhuma instância. A produção, que é quase como uma fantasia, que explora um mundo melhor e mais inclusivo em uma época não muito gentil, tem esse mesmo aspecto refletido nas suas roupas. Mesmo que as estampas florais sejam quase uma abominação. A mesma coisa acontece em obras como a versão mais recente de Little Women, dirigida por Greta Gerwig e também estrelada por Saoirse Ronan.

É muito frequente obras históricas abandonarem o conceito de “precisão” para adotar certos anacronismos. Essa liberdade pode vir não apenas na forma como a história em si é contada, como também em detalhes, como os figurinos. Se você fizer uma busca rápida em qualquer canal do YouTube que tenha como objetivo falar sobre roupas de época, vai perceber que Little Women e seus anacronismos não foram exatamente bem-vindos. As roupas, feitas por Jacqueline Durran, são criticadas pelas cores, falta de espartilhos, falta de gorros, comprimento dos vestidos e até mesmo pela forma como as irmãs parecem ter várias roupas que apenas elas usam. As irmãs March, com a história sendo situada durante a Guerra Civil norte-americana, eram bem pobres e, com o preço dos tecidos na época, com certeza não teriam a chance de usar vestidos feitos especialmente para elas, sendo que cada irmã iria usar roupas que já foram usadas anteriormente pelas mais velhas. O que não é o que acontece aqui, em nenhum momento. Ao contrário do filme de 1994, estrelado por Winona Ryder, onde elas são vistas usando as mesmas roupas (e espartilhos), onde só a personalidade de Jo é explorada pelo roteiro, aqui as quatro irmãs ganham uma nova e refrescante visão. Amy (Florence Pugh) não é mais vilanizada, Meg (Emma Watson) não é apenas fútil, Beth (Eliza Scalon) não apenas um recurso para a história avançar e Jo (Ronan) é ainda mais peculiar e interessante. Isso, obviamente, é refletido não apenas na forma como Gerwig escreveu seu roteiro e no jeito como dirigiu as atrizes, indicando as jornadas de suas respectivas personagens, mas também é perceptível pelo figurino: cada irmã tem um estilo diferente. Amy usa cores inspiradas pelos grandes pintores que admira (principalmente na sua época parisiense, quando fala sobre Monet e Manet). Meg adota um estilo mais romântico, quase infantil na primeira fase do filme, e mais madura na segunda; e Jo não necessariamente bebe da mesma fonte tão feminina quanto as irmãs, por vezes roubando peças de Laurie (Timothée Chalamet) — o que faz sentido para a amizade deles — e outras vezes acrescentando pequenos detalhes como lenços ou camisas que compõem parte peculiar da sua personalidade nada convencional.

Em Emma., ao contrário, os cabelos, os acessórios e até mesmo os vestidos não necessariamente são o que uma mulher usaria em 1860, mas todos fazem sentido dentro da personalidade das personagens junto ao contexto, e os arcos que são traçados ao longo da narrativa. O que faz com o que o resultado final do longa seja completamente satisfatório.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!