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Isobel Waller-Bridge, Emma e as mulheres na frente das trilhas sonoras

Em média, uma obra clássica (como Mulherzinhas de Louisa May Alcott ou qualquer livro realmente popular de Jane Austen) ganha pelo menos uma adaptação para as telas a cada década. Isso acontece porque essas escritoras colocaram em palavras sentimentos que são universais, que conversam com mulheres (e homens) daquela época, mas ainda hoje têm um grande valor como estudo da sociedade. É claro que em meio a tantas releituras, umas acabam caindo inevitavelmente no limbo e no esquecimento, enquanto outras triunfam e se tornam clássicos do cinema ou da TV. Um exemplo mais recente é a versão de Greta Gerwig de Little Women: superior tanto em estilo, quanto em direção e roteiro, o longa parece estar em completa harmonia. Assim como a versão de 2005 de Orgulho e Preconceito, ou a minissérie de Norte & Sul de 2004. Emma, romance de Austen publicado pela primeira vez em 1815, tinha tido apenas uma adaptação, lançada em 1996. O longa da diretora Autumn de Wilde, estrelado por Anya Taylor-Joy, no entanto, chega para mudar esse aspecto.

Emma é um filme completo em todos os sentidos: o elenco é forte e tem uma química que surge com facilidade na frente das câmeras. É bem dirigido e roteirizado, sendo que essa é a primeira vez que o espírito da heroína que leva o nome da obra finalmente chega às telas de forma completa, além de replicar com perfeição o humor e a sátira proporcionada por Austen no livro. Os figurinos, criados por Alexandra Byrne, não são só esplêndidos e bem feitos, como também são usados para reforçar a trajetória da personagem principal. E claro, há a trilha sonora.

Se você é fã de TV, cinema ou cultura pop no geral o nome Phoebe Waller-Bridge com certeza já passou no seu radar. A atriz e idealizadora recentemente se tornou um fenômeno após a segunda temporada de Fleabag, onde  contou uma história de amor muito pertinente ao século XXI. Muito como em Emma, a série britânica parece estar em perfeita sintonia com todos os aspectos amarrados e criando o que podemos chamar de uma obra-prima. O que, no entanto, Emma e Fleabag tem em comum além disso? A resposta é óbvia: as músicas compostas por Isobel Waller-Bridge, irmã de Phoebe.

É possível traçar um paralelo entre as duas composições. Ambas exploram instrumentos peculiares para criarem e acrescentarem nuances à história — além do uso forte de vocais, sempre com um coral trabalhando incansavelmente para alcançarem as notas mais complicadas. Emma, que é considerada uma das obras mais espertas de Jane Austen, usa e abusa do humor e da sátira, como mencionado antes no texto, para contar sua história. Ao tentar traduzir esse aspecto para a trilha sonora, mais a vaidade de Emma e seus privilégios, foram incorporados elementos diferentes na música e, principalmente, no tema principal da protagonista (também chamado de suite, em inglês). A ópera aponta e faz graça da personalidade pomposa de Emma, ao mesmo tempo que a harpa mostra que apesar disso, ela também consegue ser gentil e leal.

Isobel Waller-Bridge

Tanto o filme quanto o livro de Austen abrem com a seguinte frase: “Emma Woodhouse. Bonita, esperta e rica. Com uma casa confortável e boa disposição, une as melhores bênçãos da existência; e tinha vivido quase 21 anos em um mundo com pouco a afligir ou irritar”. Na primeira cena da adaptação mais recente, quando levanta para colher flores para o casamento da sua melhor amiga e então governanta Miss Bates (interpretada por Gemma Whelan), e seu tema toca de forma suave no fundo, isso fica completamente claro por meio da música. Não existe nada que possa tocá-la, inclusive um possível casamento onde não exista amor envolvido — e ela sabe disso.

Na medida em que outros personagens fundamentais da história vão sendo introduzidos, os seus temas musicais também aparecem. Mr. Knightley (Johnny Flynn), por exemplo, tem uma suite cujo o principal elemento é a trompa, algo que de certa forma reforça sua personalidade centrada, determinada e até um pouco solitária. À medida em que o romance dele com Emma vai sendo explorado, e ela começa a perceber que está apaixonada por ele, esse instrumento começa a aparecer em breves momentos da canção da protagonista. Ou seja, assim como tudo gira em torno de Emma na vila onde ela vive, na música também.

Outro aspecto que reforça esse elemento é a música de Harriet Smith (Mia Goth), que começa simples e com uma ingenuidade quase palpável. Aos poucos, quando as duas vão se tornando mais amigas, e Emma vai moldando sua personalidade para se tornar alguém mais confiante e que está acostumada a esperar coisas melhores independente da onde ela veio, é possível perceber uma transição de elementos, como se a elegância da protagonista estivesse impregnada no tema simples de Harriet.

Os momentos mais humorísticos vem do seu pai, Mr. Woodhouse (vivido pelo ótimo Bill Nighy), sendo que a música nesse momento abraça o tom da sátira ao extremo, falando muito sobre a hipocondria do personagem. Mr. Elton (Josh O’Connor, o Príncipe Charles de The Crown), por sua vez, tem canções que misturam o fagote com a ópera. Se essa última característica aparece de forma mais delicada na música de Emma, apenas para reforçar sua vaidade e a bolha do mundo onde vive, aqui é praticamente escancarado, reforçando a característica canastrona do vigário.

Como uma obra de época, Emma faz um ótimo trabalho em ser delicado, além de um romance leve e clássico. Enquanto a segunda temporada de Fleabag é também uma história de amor, Isobel Waller-Bridge entende as diferenças e cria algo que, apesar de ter alguns elementos semelhantes, não poderia ser mais distante em essência. Apesar de ter criado uma música cheia de guitarras e heavy metal para o primeiro ano, as coisas mudaram um pouco no segundo. Na história, a protagonista meio que encontra… Deus. Não na forma convencional e religiosa, mas no sentido de que ela se apaixona por um padre (vivido por Andrew Scott), que mais tarde seria reconhecido pela internet apenas como Hot Priest. Assim como qualquer boa trilha sonora, a música conta a jornada deles de forma gradual.

A decisão das irmãs Waller-Bridge aqui foi colocar um tom grego e religioso na música. No primeiro episódio da segunda temporada, quando os dois apenas se conhecem em um jantar de família, o coral que toca no fundo é composto por crianças e adolescentes. É mais suave, e indica o começo de algo. No final, quando o padre já se rendeu aos problemas “carnais” da sua relação com Flea e eles já fizeram sexo, o coral já é comandado por vozes adultas. A canção principal, intitulada de “Kyrie”, pega samples e letras de músicas como “Lord Have Mercy” (“Deus tenha piedade”, em tradução literal) e “No Venit”, expressão grega que significa basicamente “we’re coming” [“estamos chegando”]. As duas basicamente ditam a jornada de duas pessoas que se conheceram, acabam atraídas um pelo outro e cedem à pressão, bem como o processo de Fleabag de entender seus sentimentos. Mas, a letra da segunda música, também tem certa mensagem subliminar. “We’re  coming” em inglês faz alusão ao fato de que, talvez, os dois estejam atingindo o ápice do prazer sexual ao mesmo tempo.

Em entrevista ao IndieWire, Isobel Waller-Bridge também comentou um pouco mais sobre as palavras que estão embutidas nas músicas e não se destacam ao ouvido despreparado. Segundo a compositora, bem escondido em “Kyrie” há palavras como “bunda” (arse, em inglês) ou até mesmo “pinto” (cock). Pode parecer algo infantil quando tal informação chega até você pela primeira vez, mas faz bastante sentido quando existe uma análise mais profunda sobre Fleabag enquanto personagem, que sempre comportou atitudes e um humor que 100% das vezes são voltados para sexo ou insinuações sobre o mesmo.

Seu trabalho mais convencional (e mais distante dos outros dois) como compositora de trilha sonora nos cinemas até agora foi com o longa Vita & Virginia. A produção explora as dores da história de amor e amizade entre as escritoras Vita Sackville-West (Gemma Arterton) e Virginia Woolf (Elizabeth Debicki), duas mulheres que tiveram os caminhos cruzados em 1922. Com um relacionamento completamente fora do padrão, especialmente nos anos 20, a ideia era justamente pegar essa dinâmica muito à frente do seu tempo e transformar em música. O resultado do trabalho de Isobel Waller-Bridge é repleto de sintetizadores misturado com violinos e modernismo. O conceito é interessante, mas não atinge todo o potencial, sendo que as canções em si não chegam nem perto do resultado alcançado em Emma e Fleabag. Mesmo assim, Isobel Waller-Bridge parece gostar de compor para romances. E como seu portfólio até então prova, existe uma mente criativa e que não fica muito atrás da de sua irmã. Em breve, o mundo será das duas — e se o nível dos trabalhos continuar o mesmo, ainda bem.

Isobel Waller-Bridge

Para além de Isobel Waller-Bridge: outras mulheres na linha da frente 

A escolha de usar Isobel Waller-Bridge como gancho para o texto chegou, principalmente, pelo fato de que Fleabag não sai da minha cabeça e porque vi Emma recentemente e achei um filme (quase) perfeito — sendo a trilha sonora uma parte importante desse veredito. Mas ela com certeza não é a única mulher que está fazendo sucesso na linha de frente de trilhas sonoras importantes (ou realmente sensacionais). No começo desse ano, por exemplo, a islandesa Hildur Gudnadottir levou o Oscar de Melhor Trilha Sonora por seu trabalho em Coringa. Ela é a quarta mulher a conquistar o prêmio na história da Academia, sendo que é a primeira em 23 anos a levar a estatueta para casa.

Tenho diversos problemas com o Coringa de Todd Phillips, mas a música com certeza não é um deles. Soturna e assombrada, é a trilha sonora perfeita para a atuação de Joaquin Phoenix e apesar de Alexandre Desplat estar concorrendo pelas suas canções na ótima releitura de Little Women, o prêmio foi muito bem merecido.

“Meninas, mulheres, mães e filhas que escutam música dentro de si, por favor, falem alto. Precisamos ouvir a voz de vocês”, ela disse no seu discurso da cerimônia.

Outro nome que se destacou muito nas trilhas sonoras foi Mica Levi. A britânica de apenas 33 anos compôs a canção “Love” de Under the Skin, mas seu trabalho mais recentemente é no longa Jackie, onde Natalie Portman vive a ex-primeira dama dos Estados Unidos, Jackie Kennedy, logo após a morte do seu marido, o então presidente John F. Kennedy. Para falar a verdade, existem poucos méritos no filme em si. Tirando a atuação da própria Portman, que concorreu ao Oscar de Melhor Atriz, a música de Levi é literalmente uma das poucas coisas que se salvam. Em uma obra sobre luto, Levi consegue criar algo que é ao mesmo tempo carregado de pesar e delicadeza, exprimindo os sentimentos complexos (e as vezes fúteis) de Jackie Kennedy ao extremo. Uma boa combinação com a interpretação crua da atriz. Na época em que a produção saiu, a compositora concorreu ao prêmio de Melhor Trilha Sonora Original, mas acabou perdendo para La La Land — infelizmente, naquele ano não tinha como competir realmente com “City of Stars”.

Na trajetória do Oscar, apenas três outras mulheres além de Hildur levaram o prêmio para casa: Marilyn Bergman, por Yentl, em 1984; Rachel Portman conseguiu a estatueta pela versão de Emma estrelada por Gwyneth Paltrow, em 1997; e um ano depois, Anne Dudley, em 1998, pela comédia Tudo ou Nada. Nenhuma mulher negra na lista. Só John Williams sozinho, por exemplo, soma cinco vitórias na premiação e mais de 30 indicações. Isso faz sentido porque o compositor tem em seu repertório longas de franquias gigantes como Indiana Jones, Harry Potter e Star Wars. Além de ser o autor do tema clássico de Tubarão. A diferença é, claro, continuam sendo as oportunidades.

Se a luta pelo aumento de mulheres na direção e nos roteiros acabou de começar, a de mulheres na frente de composições está completamente atrasada. Um dia, nomes como Isobel Waller-Bridge (ou meninas que vão surgir por sua influência) vão ser tão grandes quanto Hans Zimmer, Alexandre Desplat, entre outros. Até lá, obras como Emma estão aí para não só oferecer entretenimento de qualidade, como também músicas que são fundamentais para a trajetória dos personagens e da narrativa em si. Afinal, o cinema contemporâneo não é absolutamente nada sem uma boa trilha sonora.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!