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Noite no Paraíso: o mundo nas palavras rebeldes de Lucia Berlin

“Lucia, que Deus a tenha, era uma rebelde”. É assim que Lucia Berlin é descrita pelo filho Mark no prefácio de Noite no Paraíso: Mais contos. Tudo no livro, que é a segunda coletânea póstuma a abrigar alguns dos mais de setenta contos publicados em vida, parece mostrar essa rebeldia de Berlin. O olhar sensível mas também impiedoso dela não falha ao revelar com precisão e uma dose de ironia as histórias inesperadas, loucas e inegavelmente humanas agrupadas na obra.

A voz de Berlin parece reconhecer o leitor e, como uma velha amiga, nos conta de bom grado o que seus olhos viram acontecer. Como afirma Mark, Lucia “escrevia histórias verdadeiras; não necessariamente autobiográficas, mas quase lá”. A autora nasceu em 1936, no Alasca, e morreu em 2004, na Califórnia, depois de uma batalha contra um câncer no pulmão fragilizado pela escoliose que a acompanhou desde a infância.

Durante a intensa vida, Berlin escreveu de forma esporádica entre as diversas cidades onde morou, os diversos empregos em que atuou, a criação dos quatro filhos, os três divórcios e a luta contra o alcoolismo. Esses traços marcantes de sua história são elementos constantes em seus contos, ligando relatos aparentemente desconexos sob a unidade de sua narrativa íntima, em parte autobiográfica, em parte observadora.

“Há coisas sobre as quais as pessoas simplesmente não falam. Não estou me referindo às coisas difíceis, como o amor, mas às coisas embaraçosas, como, por exemplo, sobre como funerais às vezes são divertidos ou como é empolgante ver prédios pegando fogo.” (Do pó ao pó, p.79) 

Nada foge do olhar aguçado de Lucia Berlin e nada é desagradável ou delicado demais para ser narrado. Diante do silêncio do mundo, ela decide tomar a palavra e nos dizer, ela mesma, o que julga necessário ser dito. Os fragmentos de seus contos se juntam para formar um mosaico do século XX, seja de Nova York, do Novo México, do Chile e sempre de uma multidão de mulheres fortes dando o seu máximo para viver.

Lucia Berlin

Em cada conto, Lucia apresenta novas personagens, reservando uma atenção especial às relações entre as mulheres, sejam elas amigas ou não, parentes queridas ou tias distantes. Como um remédio contra a sociedade patriarcal e machista revelada nas páginas do livro, a multiplicidade das mulheres retratadas é real e sincera. Mulheres que se libertam sozinhas, que são donas de si, que sentem raiva, que têm problemas ou vícios ou que simplesmente sobem no telhado para ter um momento de paz — e quem quiser que se esforce para ouvi-las lá de cima — como no conto “Natal. Texas. 1956”.

“A razão por que sempre parece o cenário de uma peça de teatro, Laura pensou consigo, é que Decca nunca tranca as portas de casa e nunca se levanta para atender a campainha ou uma batida na porta. Então você simplesmente entra e se depara com ela in situ, do lado direito do palco, à meia-luz.” (As Esposas, p. 214-215)

A ordem em que os contos estão organizados pelo livro contribui para dar um fluxo único à narrativa. No início, o foco são cenários da infância e adolescência. As aventuras de duas meninas que desvendam os cantinhos do Texas vendendo rifa para uma caixa de música para guardar maquiagem, a emoção de partir em uma grande viagem sozinha, a mistura de dúvidas, descobertas e medos da doce maldição do crescer.

Aos poucos, as protagonistas amadurecem e as questões retratadas se complexificam. Casamentos arranjados aos 19 anos, filhos concebidos para conceder ao pai liberação do exército, divórcios e o desafio de buscar novos relacionamentos, dar o máximo de si para que os filhos possam crescer bem. Lucia Berlin não poupa nada ao descrever os dilemas e as cobranças da existência feminina, mas também nos lembra da força dela. Suas personagens parcialmente autobiográficas são uma explosão de personalidade prestes a detonar. Em nome de sua liberdade, dominam o próprio tempo, se veem como protagonistas de filmes de suspense em uma caçada emocionante, capazes de capturar até mesmo o momento em que a morte pretende chegar.

“Morrer é como esparramar mercúrio. Logo, logo tudo flui de volta para a massa trêmula da vida. Disse a mim mesma para levantar o ânimo, eu estava sozinha fazia tempo demais. Mesmo assim, continuei lá sentada, relembrando a minha vida, uma vida cheia de beleza e de amor, na verdade. Parecia que eu havia passado por ela como passara pelo Louvre, observando e invisível.” (Perdida no Louvre, p.272)


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza

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