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The Crown, as tradições e as amarras da família real

Os eventos da quarta temporada de The Crown talvez sejam os mais aguardados desde que a série estreou, em 2016. Sem desmerecer toda a trajetória da produção até aqui, é evidente que quando se fala da família real britânica uma das primeiras pessoas que veem à mente é Lady Diana Spencer, a Princesa de Gales. E isso não acontece por acaso. Dona de um carisma sem igual e uma doçura que encantou pessoas ao redor do mundo, Diana foi o centro de todos os holofotes a partir do momento em que disse “sim” ao pedido de casamento do Príncipe Charles. O que a jovem não esperava, no entanto, é que seu conto de fadas se transformaria em um pesadelo não muito tempo depois de colocar o emblemático anel de pedra azul no dedo e entrar para a família.

Mas aqui estou me adiantando. Embora a presença de Diana seja, de fato, um dos grandes focos da quarta temporada de The Crown, a série milionária da Netflix, não é apenas essa trama que acompanhamos nos dez episódios que chegaram ao serviço de streaming no último dia 15 de novembro. Além de finalmente sermos apresentado à Diana, interpretada com maestria pela novata Emma Corrin, outra figura tão importante quanto a princesa dá as caras no seriado: a primeira-ministra Margaret Thatcher, interpretada por uma impecável Gillian Anderson. Mesmo que The Crown sempre tenha contado com personagens femininas interessantes e cativantes, ainda não havia nenhuma personagem capaz de rivalizar com a Rainha Elizabeth II em termos de importância para a trama, e tudo muda nesse quarto ano. Mesmo que a vida da triste Princesa Margaret tenha sido objeto de alguns episódios e que a Princesa Anne tenha uma personalidade ímpar que poderia ter sido mais abordada na temporada anterior, nenhuma delas move tanto a trama adiante quanto Diana e Thatcher, principalmente devido às reações (ou falta de) que causam em Elizabeth.

Atenção: este texto contém spoilers!

Um mundo em mudança

O primeiro episódio da nova temporada, “Gold Stick”, não demora a localizar sua audiência no espaço e tempo em que os eventos serão narrados. É o final de 1979 e o Exército Republicano Irlandês, conhecido por sua sigla em inglês IRA, está agindo e luta contra a influência britânica na Irlanda recorrendo a métodos como ataques a bomba e emboscadas a políticos e representantes do governo britânico. É em um desses atentados que morre Lord Mountbatten (Charles Dance) enquanto estava de férias em sua propriedade de verão na Irlanda: havia uma bomba plantada no barco em que estava com outros quatro familiares, que é acionada quando eles começam a velejar na baía de Donegal. Antes de morrer, Lord Mountbatten escreveu uma carta ao Príncipe Charles (Josh O’Connor) falando da importância de sua posição e como precisa encontrar uma esposa o quanto antes. A morte repentina e as palavras de Mountbatten, que Charles considerava como um pai — às vezes muito mais do que o próprio pai, o Príncipe Philip (Tobias Menzies) —, ecoarão nos pensamentos do príncipe e impactará na escolha dele por Diana.

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Toda a construção da cena em que o assassinato de Mountbatten ocorre é de deixar a tensão nas alturas. Particularmente, não sabia que Mountbatten havia morrido em uma explosão planejada pelo IRA, então foi uma surpresa quando a cena aconteceu, intercalada com imagens de Charles pescando e Philip caçando. A metáfora é clara: os Windsor, tão acostumados a caçar, agora estão sendo caçados por aqueles que não querem mais viver sobre sua bandeira. The Crown não se preocupa em contextualizar o que está acontecendo, apenas deixa claro que o assassinato de Lord Mountbatten ocorre em retaliação ao Domingo Sangrento, massacre de 1972 quando soldados britânicos atiraram em 26 civis desarmados durante um protesto na Irlanda do Norte, causando a morte de 13 deles. A série, no entanto, não vai muito além desse episódio para nos mostrar o que está acontecendo nos domínios dos Windsor e logo toda a questão com o IRA é colocada de lado em detrimento de um foco mais pessoal dos eventos: a morte de Lord Mountbatten faz Charles finalmente se decidir a encontrar uma esposa (“sweet and innocent, well-tempered girl with no past, who knows the rules and will follow the rules”) e ainda permite um raro momento entre pai e filho para Charles e Philip, visto que Mountbatten também era uma figura paterna para o príncipe consorte. Philip, que viu as atenções de Mountbatten se virarem totalmente para o filho, no entanto, parece não entender, talvez devido ao fato de ter um ego enorme, por qual motivo Charles precisaria de outra figura paterna sendo que ele, Philip, esteve sempre ali.

Além da morte de Lord Mountbatten, “Gold Stick” introduz Lady Diana Spencer com ares de contos de fadas, e Margaret Thatcher, recém eleita primeira-ministra, a primeira mulher a ocupar o cargo. A eleição de Thatcher e sua adição à trama de The Crown proporciona novos panoramas narrativos e muitos dramas para acompanhar visto que a primeira-ministra ficou no cargo por onze anos, o período de governo mais longevo de um primeiro-ministro durante o século XX. Suas políticas conservadoras ficaram conhecidas como tatcherismo e, defendendo a “modernidade”, focou seu plano de governo em reformas políticas que procuravam desestatizar a economia da Grã-Bretanha por meio de privatizações. Por ocasião de sua eleição, o príncipe Philip chega a dizer que duas mulheres no comando é a última coisa de que o país precisa, no que Elizabeth intervém comentando que talvez seja exatamente o que é necessário para fazê-lo prosperar.

As outras figuras que orbitam ao redor da Coroa não recebem muito espaço em tela ou atenção do roteiro de maneira geral visto que o período de tempo mostrado na quarta temporada, que recorta os anos 1979 a 1990, foi marcado por acontecimentos impactantes que precisaram ser condensados em apenas dez episódios. A Princesa Anne (Erin Doherty) teve um arco narrativo inteiro acontecendo fora das telas — ela se casou, teve filhos e passa por uma crise no casamento — e a Princesa Margaret (Helena Bonham Carter) parece estar em tela apenas para relembrar a todos como matrimônios sem amor não são um bom negócio para a família, ainda que um dos episódios mais tristes dessa temporada seja focado nela e na descoberta do que a realeza faz com seus membros portadores de necessidades especiais.

Elizabeth e Margaret: a rainha e a primeira-ministra 

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O primeiro encontro de Elizabeth II (Olivia Colman) e Margaret Thatcher é, no mínimo, curioso. Além das primeiras impressões e amenidades trocadas, a rainha quer saber se conseguiu acertar a lista de nomeações feitas por Thatcher para seu recém formado gabinete. Enquanto ela pergunta os nomes dos candidatos e faz marcações em sua lista a cada acerto, Thatcher parece genuinamente surpresa com a visão de Elizabeth dos fatos e da política em geral. A primeira-ministra não esperava que a rainha estivesse tão inteirada desses assuntos, quanto mais que pudesse ter acertado todas as suas nomeações. Elizabeth, por sua vez, também fica ligeiramente surpresa com o fato de que Thatcher não colocou nenhuma mulher em sua equipe por achar que elas são muito emotivas para esse tipo de serviço. A posição da primeira-ministra já deixa bem claro que ela não é uma feminista ou algo que o valha, ela não está ali para abrir caminho para outras mulheres colocando-as em funções importantes — ela, um típico produto de seu tempo, é sexista, machista e conservadora, e não está interessada em construir pontes, mas em queimá-las. Margaret Thatcher pode até ter aberto um precedente como a primeira mulher no cargo de primeiro-ministro, mas não fez nada para colocar outras mulheres em cargos importantes durante seus onze anos de governo. Não apenas por isso, é realmente assustador cogitar pensar em Margaret Thatcher como um símbolo para as mulheres de maneira geral — ela prosperou apesar do sexismo e do classicismo de que foi vítima, mas não fez nada para mudar o panorama. The Crown, inclusive, é bastante amena ao apontar os problemas relacionados à figura da primeira-ministra, não se atendo por muito tempo em suas falhas.

Um dos episódios mais divertidos de The Crown, se é que esse é o adjetivo correto quando de se trata da família real, é justamente o segundo da quarta temporada, “The Balmoral Test”, em que Elizabeth convida Thatcher e seu marido, Denis (Stephen Boxer), para passar um final de semana com a família real no castelo de Balmoral. Os Windsor são uma família antiga com manias e costumes estranhos, e Thatcher vê tudo isso em primeira mão quando se hospeda com eles para o feriado — são reservados quartos separados para Thatcher e o marido, o que ela acha absurdo, as excursões para caçar cervos são completamente fora da realidade (e nisso devo concordar com a primeira-ministra) e sentar em uma cadeira específica pode ser muito perigoso para os desavisados. Margaret e seu marido destoam completamente do ambiente e não conseguem acompanhar muito bem o ritmo estranho da família da rainha, com suas piadas internas e roupas próprias para caçadas. Uma desavisada Thatcher, inclusive, aparece para fazer uma trilha com Elizabeth II usando um elegante conjunto azul royal que se destaca incrivelmente na paisagem chuvosa de Balmoral — a mesma cor é escolhida por Thatcher para a foto oficial em que ela aparece ao centro de seu gabinete e rodeada por seus companheiros de partido, todos de preto. Se a rainha queria que a primeira-ministra passasse despercebida na paisagem, Thatcher tinha uma ideia completamente diferente em mente.

Enquanto o intuito de Elizabeth é estreitar laços com a sua nova primeira-ministra em um final de semana de descanso, The Crown demonstra que o que ela conseguiu foi deixar Thatcher ainda mais certa do que fazer para colocar o país nos eixos para sair da recessão e reduzir os índices de desemprego: iniciar uma mudança estrutural de cima para baixo. Ainda que Margaret Thatcher não seja, de fato, contra a monarquia, tudo o que ela vivenciou em seu final de semana em Balmoral serviu como fermento para sua ações vindouras e reformas políticas, a começar por seu próprio gabinete. Demitindo alguns e escolhendo outros, Thatcher acaba por cultivar algumas inimizades, mas ela parece tranquila quanto a isso mostrando-se mais confortável tendo em vista inimigos a amigos. A maneira como decide levar sua carreira e seu plano de governo acaba batendo de frente com a aparente neutralidade de Elizabeth II — como rainha, ela não deve expor suas convicções políticas, mas a ideia de Thatcher de levar o país para um novo rumo impacta diretamente a Coroa que sempre quer tudo o mais imutável possível.

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Em um raro momento de tomada de lado, The Crown mostra Elizabeth II descontente com a maneira de Thatcher levar o governo, e isso vai parar nos jornais, causando uma trinca na superfície aparentemente calma das relações entre o Palácio de Buckingham e Downing Street, endereço da residência oficial e escritórios dos primeiros-ministros britânicos. No oitavo episódio da temporada, intitulado “48:1”, além do retorno de Claire Foy interpretando a jovem Elizabeth de 21 anos em um flashback, também vemos em primeira mão a tensão crescendo entre rainha e primeira-ministra. Esse é o episódio da quarta temporada que mais de fato foca em política, a colisão entre Elizabeth e Thatcher, e o que isso significa para a Coroa como um todo. Enquanto a Elizabeth de 21 anos profere seu discurso reforçando seus valores e a importância da Commonwealth of Nations — em português, a Comunidade das Nações, uma organização intergovernamental composta por 53 países independentes que já fizeram parte do Império Britânico —, no momento atual vemos a primeira-ministra ir contra às sanções que as nações desejam impor à África do Sul e seu regime de Apartheid; a segregação racial implementada no país em 1948 foi adotada até 1994 e determinava que apenas a minoria branca da população tinha direito ao voto além de deter todo o poder econômico e politico do país, forçando a maioria negra a obedecer a cruel legislação separatista.

Elizabeth, que desde a juventude considera a Commonwealth como uma segunda família, deseja que Thatcher assine junto com os demais países para que as sanções contra a África do Sul entrem em vigor, porém a primeira-ministra pensa diferente. O desejo de Elizabeth em aplicar as sanções não tem, necessariamente, relação com uma política antirracista por parte da rainha, mas fala muito mais de perto com seus sentimentos pela Commonwealth e os países que fazem parte dela como um todo. Essa é uma causa que os demais líderes parte da Commonwealth consideram importante, e como Elizabeth os considera da mesma maneira, decide apoiá-los. A tensão entre as duas mulheres é o que direciona todo o episódio, o que entrega tanto para Olivia Colman quanto para Gillian Anderson momentos perfeitos para brilhar em suas interpretações. Ainda que mulheres de uma mesma geração, as vidas de Elizabeth e Thatcher não poderiam ter sido mais diferentes entre si: Elizabeth, vivendo em um mundo de privilégios, desenvolveu uma capacidade de empatia que se relaciona diretamente com seus deveres para com a Coroa, enquanto Thatcher, que lutou durante toda a vida contra o sexismo e classicismo, apenas conseguiu se endurecer, o que espelha a maneira com a qual ela lida com seu mandato. Ela não teve nenhuma facilidade na vida, por que outra pessoa deveria ter?

Todo esse lado conservador de Thatcher se sobressai quando ela, por exemplo, insiste em preparar e servir as refeições para os membros de seu gabinete, ou quando dá toda as preferências e regalias ao filho em detrimento da filha. Mesmo as políticas e sanções que a Commonwealth deseja impor à África do Sul são barradas por Thatcher porque ela não quer que os negócios do filho no país sofram com esse impacto. Além disso, Thatcher se mostra racista em mais de uma ocasião quando diz que a Grã-Bretanha pode encontrar maneiras de se tornar grande novamente que não sejam por associações com “líderes tribais vestindo roupas excêntricas”. Ao final da contenda entre rainha e primeira-ministra, pode-se dizer que Elizabeth saiu vitoriosa, embora ao custo do trabalho do secretário de imprensa do Palácio de Buckingham, Michael Shea (Nicholas Farrell), escolhido como bode expiatório e indicado como aquele que deixou vazar a informação da insatisfação da rainha para a imprensa quando tudo o que ele fez foi avisar que o desfecho desse pronunciamento seria justamente o oposto do que a rainha desejava. Como sempre, a corda arrebenta do lado mais fraco da disputa — o que também viria a ocorrer com Margaret Thatcher quando, com seu prestígio em queda dentro do próprio partido, se vê excluída entre os seus. De maneira geral, The Crown não escondeu ou ignorou os erros da primeira-ministra e seu tatcherismo, mas os dois episódios centrados em suas políticas — a Guerra das Malvinas e as sanções à África do Sul, principalmente — foram abordados quase de maneira borrada, rapidamente pinceladas, mas o fato é que The Crown se importa muito mais com o drama do que com a política que move suas histórias.

Diana Spencer: de adolescente a princesa real 

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Diana entra em cena de maneira quase etérea, fantasiada de árvore enquanto espreita por entre as colunas da mansão da família Spencer. Sua irmã mais velha, Sarah Spencer (Isobel Eadie), tem um encontro com o Príncipe Charles e as ordens são para que a caçula não atrapalhe o casal. Tentando passar despercebida por Charles, que aguarda o retorno de Sarah, uma jovem Diana se esconde atrás das colunas do hall e dos arranjos de flores, o que apenas serve para chamar ainda mais a atenção do rapaz. Diana é jovem, tímida e doce, e isso não passa despercebido pelo Príncipe de Gales. Ele fica encantado com ela e, no contexto da série, esse é um evento digno dos melhores contos de fadas — a jovem e inocente moça que encanta o príncipe sendo ela mesma. E Charles se encanta, sim, com Diana. Ainda que as palavras do falecido Lord Mountbatten de fato se façam presentes na memória de Charles, de que ele precisa se casar com uma moça virgem, anglicana e da aristocracia, sem passado e que seguirá as regras, em The Crown o deslumbramento de Charles por Diana no início é real, embora não demore para que a sombra de Camilla Parker Bowles (Emerald Fennell) ressurja em suas vidas.

O foco de The Crown, como o título diz, é a Coroa e a cabeça sobre a qual ela repousa, então isso quer dizer que os episódios envolvendo Diana são aqueles que, de uma maneira ou outra, atingem diretamente a Rainha Elizabeth II. Justamente por isso temos apenas alguns dos momentos mais impactantes de Diana como parte da família real, como sua introdução em Balmoral, o início da perseguição dos paparazzi à futura esposa de Charles, a adoração da mídia, as multidões que desejam vê-la em suas viagens oficiais, as brigas com Charles e, claro, seu períodos difíceis enquanto se vê sozinha para enfrentar todo esse novo mundo. O que a família real parece esquecer é que Diana tem apenas 19 anos quando aceita o pedido de casamento de Charles e que nada no mundo a teria preparado para o turbilhão de emoções em que se encontraria envolvida.

Além do “simples” fato de estar se casando com o futuro rei da Inglaterra, Diana ainda precisa lidar com todos os protocolos e etiquetas reais que não conhece como, por exemplo, para quem fazer reverência e em que ordem, quais roupas usar e como se comportar em público (embora aqui fique claro que essa é uma liberdade de roteiro visto que Diana, criada na aristocracia, dificilmente deixaria de saber a etiqueta básica da monarquia). Quando o pedido de casamento é feito e Diana é oficializada como noiva de Charles, a jovem, que até então trabalhava como professora em um jardim de infância e dividia um apartamento em Londres com três amigas, precisa se mudar para o Palácio de Buckingham a fim de ser protegida da imprensa e ser treinada nos modos da monarquia. O que Diana não imagina, no entanto, é que ficaria a maior parte do tempo sozinha, relegada aos cuidados de sua avó, Lady Ruth (Georgie Glen), e sem saber do noivo ou da rainha por um longo período. A solidão sufoca Diana e ela tenta dar vazão a esses sentimentos dançando e ouvindo música, mas logo ela se vê afundando em uma espiral de tristeza e comiseração.

O que a quarta temporada de The Crown consegue retratar bem é esta solidão que a princesa sente, algo que sua biografia Diana: Sua Verdadeira História em Suas Próprias Palavras, escrita por Andrew Morton e publicada pela primeira vez em 1992 com republicação em 2013, mostra ser uma constante em sua vida. Nenhum membro da realeza se preparou para receber Diana ou mostrou algum tipo de consideração por ela quando se casou com Charles; a jovem precisou navegar por todo esse turbilhão de emoções completamente sozinha. Lidar com o casamento, com a imprensa e com o descaso do marido, que preferia passar horas ao telefone com a esposa de outro homem, foi muito para Diana aguentar. A bulimia de Diana é retratada na série em alguns episódios e em sua biografia fica evidente que a princesa lutou contra isso durante dez longos anos e totalmente sozinha. Não era mistério para Charles o que acontecia a ela, ele simplesmente não se importava o suficiente — algo que a série até mesmo amenizou visto que em Diana: Sua Verdadeira História em Suas Próprias Palavras, fica claro que o príncipe de Gales acreditava que a doença da esposa e suas tentativas de suicídio faziam parte de um grande teatro inventado por ela do que pedidos de socorro. Em determinada passagem do livro, Charles chega até mesmo a dizer que é um desperdício Diana comer muito visto que tudo aquilo seria jogado fora logo mais.

The Crown não se demora muito mostrando o noivado ou o casamento em si — de acordo com o criador da série, Peter Morgan, o YouTube está aí para quem quiser ver o evento que tomou parte no dia 29 de julho de 1981 — e logo já estamos acompanhando a vida conjugal conturbada dos príncipes de Gales. A frase dita pela Princesa Anne na terceira temporada sobre um possível casamento entre Charles e Camilla, de que três pessoas em um casamento são pessoas demais, se referindo a um possível caso de Camilla com Andrew Parker Bowles (Andrew Buchan), era um presságio sobre o que esperava Diana: em sua biografia, a princesa diz exatamente o mesmo, talvez daí a inspiração para os roteiristas: “Havia três pessoas naquele casamento, o que era gente demais.” Na primeira viagem oficial de Charles e Diana como um casal, o Príncipe de Gales preferia passar horas ao telefone com Camilla, reclamando do comportamento de Diana, do que ficar ao lado de sua esposa e do filho recém-nascido, o Príncipe William.

Charles sente-se ofuscado e ressentido pelo sucesso de Diana. A turnê do casal pela Austrália e Nova Zelândia foi organizada para ser a grande estreia de Charles, mas Diana rouba a cena em que cada lugar que os príncipes de Gales chegam. As multidões que se formam não querem ver Charles, não querem conversar com ele ou entregar flores a ele: todos querem Diana. A princesa não faz nada além de seguir o protocolo, encantando e sendo gentil com todos, mas Charles se sente atacado por ela, preterido por ela. O casal discute em diversos momentos devido ao sucesso de Diana, e até mesmo a Princesa Anne desabafa com Elizabeth II sobre como é difícil viver à sombra da cunhada — para os tabloides, Diana é a princesa perfeita de contos de fada, mas ninguém imagina o sofrimento que é ser essa princesa para as câmeras.

“Num momento eu não era ninguém, no instante seguinte era a princesa de Gales, mãe, brinquedo da imprensa e membro daquela família. Era demais para uma só pessoa absorver.”
— trecho de Diana: Sua Verdadeira História em Suas Próprias Palavras

São raros os momentos após o casamento em que Charles e Diana conseguem ser felizes na companhia um do outro. Mesmo com as brigas, é durante a turnê pela Austrália e Nova Zelândia que eles compartilham um pouco de carinho e cumplicidade. Diana é apaixonada pelo marido, mesmo com todas as desconfianças envolvendo a sombra de Camilla no relacionamento deles, e tenta sempre fazer o possível para agradá-lo — mas ela simplesmente não consegue romper a carapaça que Charles colocou ao redor que a impede de se aproximar. Na ocasião do casamento, Diana tem apenas 19 anos e Charles tem 32, e a diferença de idade entre eles se torna um abismo praticamente insuperável. Charles acha a esposa imatura e deslumbrada, Diana não sabe mais o que fazer para deixá-lo feliz. Longe de Camilla, Diana quase acredita ser possível fazer o casamento dar certo, mas Charles sempre volta para a ex-namorada. Quando se casou, Diana acalentava sonhos de ser protegida por Charles e se considerava a garota mais sortuda do mundo, mas não ela poderia estar mais errada nesse aspecto.

Com o retorno para a Inglaterra, não demora para que Diana comece a se considerar “prisioneira de um casamento falido, acorrentada pela realeza insensível e amarrada a uma imagem pública de sua vida totalmente irreal”. Charles passa tempo demais em Highgrove, propriedade que comprou e que fica a pouca distância da residência dos Parker Bowles, Camila está mais presente do que nunca, seus gritos de socorro não são ouvidos e até mesmo a rainha Elizabeth II parece se esquivar das súplicas de Diana. A bulimia nervosa toma conta de Diana e relatos de sua biografia — escrita com base em fitas gravadas por ela própria — dizem que a princesa chegava a vomitar suas refeições quatro vezes por dia em períodos de muito estresse a ansiedade.

A carga emocional que Diana sempre leva consigo é intensa e a jovem Emma Corrin consegue navegar pela doçura, inocência, tristeza e raiva com maestria. Ela e Josh O’Connor brilham em seus embates, e toda a simpatia que sentimos por Charles até então — a infância conturbada como herdeiro do trono e o início da vida adulta sempre à sombra da mãe, episódios pregressos em The Crown — simplesmente evapora quando vemos o Príncipe de Gales ser tão mesquinho e horrível com a própria esposa. Um dos momentos mais hipócritas de Charles ocorre quando ele ordena que os empregados do palácio de Kensington, residência oficial dele e de Diana, relate tudo o que acontece a ele, principalmente quando a princesa, exausta de ser traída e ansiando por carinho, se envolve com outros homens.

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Por ocasião desse episódio, a Rainha Elizabeth II e o Príncipe Philip decidem conversar com Charles e Diana com o intuito de tentar resolver o caos que se tornou o casamento deles. Ainda que Diana se mostre pronta para tentar de novo, Charles se ressente dela novamente — ele, que estava pronto para se divorciar, acredita que as palavras de Diana, de que ela quer tentar fazer o casamento funcionar, não passam de mais um teatro por parte da esposa. O fato é que o príncipe de Gales nunca compreendeu Diana ou os sentimentos confusos pelos quais ela passava — como um homem acostumado a ter tudo na vida e a ser servido sem questionar, pensar um instante sequer no que as outras pessoas querem parece ser um exercício muito difícil de concentração. A mesquinharia de Charles, seu egoísmo e pedantismo, foram elementos cruciais para que o casamento desmoronasse. Para Diana, “para variar, a câmera mentia, não sobre a beleza que ela demonstrava, mas sim na camuflagem da personalidade vulnerável por trás de sua capacidade de deslumbrar sem nenhum esforço”. Para o mundo de fora, ela vivia um conto de fadas, a realização de um sonho. Para Diana, era viver dentro de uma gaiola dourada cuja porta até poderia estar aberta, mas sair poderia lhe custar os filhos.

O futuro da monarquia  

A entrada de Diana para a família realmente mudou a maneira como a monarquia é percebida pelas pessoas comuns. A jovem loira de olhos azuis brilhantes trouxe novidade para uma família que vive de tradições e aparências há anos, quer eles queiram ou não. O amor e adoração que Diana despertou nas pessoas é algo novo que acaba por fazer com que os Windsor se sintam ressentidos. Nada que eles venham a fazer será capaz de se equiparar com Lady Diana, e os mais de vinte anos que nos separam da data de sua morte estão aí para provar que ela se tornou eterna. Por meio dos episódios da quarta temporada de The Crown pudemos conhecer mais da moça por trás das tiaras e vestidos glamourosos e o quanto seu sofrimento foi enorme. Diana nem sempre pode ter sido uma pessoa fácil de lidar, mas ela não pedia por muito: ela queria o amor de seu marido, da família da qual aceitou fazer parte mas que nunca a entendeu por completo. A monarquia britânica é rígida e moldada para silenciar personalidades que se sobressaem, e Diana conviveu com essa verdade da maneira mais dura, sofrendo e se dilacerando a cada dia.

Em determinado momento da temporada, Elizabeth II, a Rainha Mãe (Marion Bailey), a Princesa Margaret e a Princesa Anne conversam sobre Diana e seu comportamento “contestador”. Para a Rainha Mãe é muito simples, “Com o tempo, ela desistirá de sua luta e se curvará. Como todos fazem”, mas Margaret sabe o que acontecerá se Diana não se curvar: “Ela sucumbirá”, e de fato sabemos o que aguarda Diana em seu futuro. A monarquia não aceita estrelas mais brilhantes do que ela, e Diana ofusca a todos eles. De Charles, ressentido com o sucesso da esposa em suas turnês, até Anne, sempre comparada com Diana em todos os tabloides e não de maneira gentil. Diana mudou a maneira como a monarquia é recebida, e na season finale da quarta temporada, “War”, The Crown mostra que sua história apenas começou — ainda que seja uma história muito curta.

Em seu quarto ano, The Crown esteve ao redor de Diana e Thatcher, primordialmente, e como Elizabeth reage a elas. As duas chegam em pontos de não retorno ao final do décimo episódio, com Thatcher encerrando seus onze anos como primeira-ministra sendo traída por seu próprio partido, e Diana entendendo melhor sua posição na família real e como sua pessoa pública pode agir em causas em que ela acredita, trazendo projeção para assuntos considerados tabu. Diana se tornou uma porta-voz de temas importantes e muito conhecida por apoiar projetos de caridade (ela foi madrinha de mais de cem instituições sociais) e se tornou muito vocal em campanhas contra minas terrestres e combate à AIDS. Por mais que Charles acredite que os atos da princesa sejam de pura publicidade, fica claro que Diana acredita em cada uma das causas por ela apoiadas, e quando acontece um abraço espontâneo entre ela e uma criança portadora do vírus HIV é por ela sentir que era o que precisava fazer naquele momento. Um gesto tão simples — abraçar uma criança com AIDS — ressoa ao redor do mundo porque é Diana a fazê-lo, o que ajuda a combater o estigma a respeito de portadores da doença e mudar o foco da conversa.

Charles, no entanto, segue completamente absorto na narrativa que escreveu para si mesmo. Ele quer Camilla, e nada será capaz de fazer com que mude de ideia. Seu casamento com Diana não tem mais futuro e Charles, egoísta e mesquinho, se vê como vítima das manipulações da esposa e age como o homem mais injustiçado do planeta quando ele mesmo é quem colocou a todos em uma péssima situação. Diana pode não ser a pessoa mais fácil de conviver, mas os rompantes de Charles não ajudam em nada. Inclusive, um dos momentos mais satisfatórios dessa temporada é ver Elizabeth colocando Charles em seu devido lugar: “If one day you expect to be king, then might I suggest you start to behave like one.” [Se você espera ser rei algum dia, então devo sugerir que você comece a agir como um.”] Na época em que todo o drama do divórcio está acontecendo, Charles já tem 42 anos e é realmente patético vê-lo se comportar como um adolescente mimado, ciumento e cansado de ser eclipsado pelo enorme carisma de Diana.

Ao final do último episódio da temporada, fica ainda mais evidente a ruptura entre Diana e o restante da família real. Quando ela finalmente decide descer para participar da ceia de Natal, usando um vestido longo preto e com uma expressão triste e resignada, Diana parece saber que está em um ponto de não retorno, a começar pela conversa, a princípio com tons de conselho, entre Philip e ela, que se transforma e pode até mesmo soar como uma ameaça velada por parte da família real para a princesa. O dever de todos é para com Elizabeth, a Coroa, mas até que ponto deve ser feito esse sacrifício? The Crown encerra seu quarto ano com uma fotografia similar a que nos levou ao final da segunda temporada, e Diana surge a parte do restante da família. As tradições e a família estão sempre em primeiro lugar para os Windsor, mas aqueles que não estão dispostos a pagar o preço necessário simplesmente são colocados de lado nessa equação.