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Contos de Descômodo: um terror bem mineiro

O terror, por definição é o gênero de arte que explora a fantasia e o sobrenatural e usa ficção especulativa com o intuito de aterrorizar.

Como o medo é uma emoção que se constrói histórica e socialmente, o terror tem suas variações de região para região, uma vez que aquilo que amedronta um povo se relaciona diretamente com os perigos, dificuldades e traumas enfrentadas por ele. Quando consumimos atentamente o gênero em diversas mídias, podemos observar esses padrões em cada região, e não é difícil identificar pontos em comum nos produtos culturais de regiões específicas da Europa, por exemplo. O terror estadunidense também segue um padrão narrativo bem particular, e agora que vêm ganhando mais distribuição mundial, o terror japonês e o coreano têm características também bastante reconhecíveis. Obviamente, o tipo de mídia em que as histórias são contadas também interfere em sua forma: quadrinhos, filmes, séries e livros precisam de recursos diferentes para despertar medo em quem os consome. Além desses fatores, a arte também registra o que causa pavor em pessoas de sua época e registra padrões que acompanham a própria história.

Com isso em mente, surge a questão: como o medo aparece na literatura de terror brasileiro dos dias atuais? O que assusta e amedronta cidadãos colonizados por um país cristão com um histórico de longo período de escravidão de povos vindos de África e dominação dos nativos? Quanto do momento presente está registrado nos livros de terror? E como essas histórias costumam ser narradas?

O jeitinho brasileiro de aterrorizar

Para traçar um perfil informal e rápido da literatura de terror no Brasil dos tempos atuais, é preciso primeiro considerar a história cultural do país, que recebe influência de povos nativos diferentes, carrega consigo a cultura da grande população escravizada vinda de África e tem a herança do cristianismo europeu que nos colonizou.

No livro O Corpo Encantado das Ruas, o historiador Luiz Antônio Simas afirma que “a cultura é o território de sofisticação e do encontro entre gentes”. Na encruzilhada da cultura brasileira se encontraram gentes com uma tradição oral forte, logo, as culturas atuais e múltiplas de um Brasil diverso também carregam muito da oralidade em si.

Também por ser fruto de tantas misturas, é uma cultura onde não há um limiar nítido entre o que é vivo e o que é morto. Não sabemos quem ou o que é “do bem” e quem ou o que é “do mal”, e logo, o mundo espiritual e o material, o bem e o mal, se misturam. Assim, nossos personagens não vão a casas mal assombradas, porque sabemos no que dá nos meter onde não somos chamados. São os nossos fantasmas que vêm até nós, nos visitam ou nos acompanham no nosso cotidiano, em meio a afazeres e terrores mais práticos. E as lendas urbanas convivem conosco nas esquinas que cruzamos no dia a dia.

Nem mesmo a causa do medo é algo definido para nós. Enquanto há aqueles que se aterrorizam com a ideia de fantasmas, o cristianismo popular, o espiritismo de mesa branca e as religiões de matriz africana e as algumas de origem nativa, trabalham junto com as almas, as entidades e os encantados. Há respeito e até mesmo temor, mas também há proximidade e parceria, e as criaturas que nos assustam verdadeiramente são outras.

Temos pavores mais palpáveis que o mundo espiritual: o medo da fome, do assalto, da bala perdida, de andar sozinha à noite. Nosso horror maior é a realidade, mas a violência dela também é tão banalizada que nem sequer nos apavoramos em excesso — ainda que os medos internalizados nos causem nossos próprios traumas. O horror, então — este que a literatura de terror tem como característica causar — é normalmente apenas um incômodo que nos pega no dia a dia.

Um terror que come quieto

Contos de Descômodo

Contos de Descômodo é o livro de estreia da poeta e contista Larissa Fonseca. Além de todas as características do terror e da fantasia brasileira, Larissa é mineira, então, obviamente, sua literatura é tocada também por todos os causos que o interior de Minas Gerais tem a oferecer a quem cresce ali. Misturando também lendas urbanas, o terror que a autora traz para as páginas é tipicamente brasileiro.

Divididos em pequenos grupos com temas em comum, os contos trazem uma linguagem variada: normalmente simples e direta, porém mais elaborada em alguns momentos. Às vezes o linguajar passa pelo sotaque mineiro de uma forma tão precisa que faz sentir em casa os leitores de Minas, principalmente do interior. Aliás, muitos dos contos estão tão próximos da vivência de cidades pequenas e também do cotidiano não tão interiorano assim que poderiam ter sido lendas urbanas e interioranas ouvidas nas esquinas de cidadezinhas ou grandes cidades. Os cenários sempre são muito familiares e os enredos — como os causos — se tornam ainda mais interessantes de se acompanhar justamente por serem bem contados e próximos ao que com certeza já ouvimos um dia para que nos causasse medo.

A maneira como a história é contada tem a herança da oralidade dos causos, nos deixando em suspense e trazendo narrativas em que o sobrenatural se mistura ao cotidiano e não causa susto, mas aquele temor respeitoso que nossas avós e avôs nos ensinam. Não parece ser à toa que o livro se inicia com a dedicatória “A todos (e tudo) que me contam histórias.” Como num resgate das narrativas cotidianas de um terror local, a citação de “Nocturno IV”, de Mário Quintana abre o livro, indicando o que podemos esperar das páginas a seguir.

“Mas
A primeira coisa que um morto faz depois de enterrado
É abrir novamente os olhos…”

O livro tem o poder de colocar o fantástico, o misterioso, o intrigante muito perto de nós, já que os personagens são gente como a gente. Nos identificamos com eles e suas rotinas e de uma forma muito sutil — quando a gente menos espera — nos percebemos assustados, surpreendidos, apavorados ou pensativos. E embora Contos de Descômodo traga um número grande de textos curtos, as reviravoltas e revelações não são feitas de forma repetitiva. Pelo contrário, os narradores ou personagens nos surpreendem com seus casos quase inacreditáveis — mas sempre deixam um gostinho de dúvida: tudo pode ser real ou mentira, como em todo bom causo. Também é notável o projeto gráfico muito cuidadoso, intercalando imagens de paisagens tão familiares para olhos mineiros e introduções que dão o tom de cada bloco temático no qual o livro se divide.

O livro é inteiro uma obra de arte, e Larissa Fonseca uma grande autora de suspense, terror e realismo fantástico. O domínio que a escritora tem dos gêneros e a maneira como a identidade tipicamente brasileira se manifesta em elementos do texto é o que torna a publicação um achado da literatura independente. A publicação da editora Coverge é atemporal, ainda que reúna contos escritos entre 2014 e 2020, e chega a ser tão surreal como algumas das histórias que conversam muito com o contexto pandêmico e os pavores da época em que foi publicado — principalmente com relação ao ano de 2021, auge da pandemia, quando as vacinas ainda não eram amplamente distribuídas no país.

Para leitores atentos, é interessante perceber a conexão entre certas narrativas e o modo como alguns dos contos apontam para um universo em comum com criaturas, personagens e organizações que se repetem entre si e vão compondo uma teia de possibilidades narrativas. Entre os contos, se destacam “Espírito Natalino”, de um realismo tão cruel quanto surreal, enquanto “Autômata” e “Perdido” que usam da linguagem para causar terror e suspense tecnológicos. O mais aterrador pode ser “Talvez Seja Tudo Uma Ilusão” que é um labirinto de ideias que nos aprisiona e conduz a reflexões um tanto quanto desoladoras sobre a vida.

Descômodo é um sinônimo de incômodo, e talvez seja isso que cause medo a nós, brasileiros dos tempos atuais, que já estamos acostumados a coisas ruins, e tememos apenas que os pesadelos nunca acabem.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!