Categorias: LITERATURA

A frustração cintilante de Cleópatra e Frankenstein, de Coco Mellors

Livro de estreia de Coco Mellors, Cleópatra e Frankenstein traça uma colcha de retalhos formada por personagens fascinantes e decepcionantes em uma Nova York que se mostra, ao mesmo tempo, cintilante e sombria.

Guiado por Frank e Cleo, o intenso e imperfeito casal protagonista, o livro se desdobra em diversos círculos sociais compostos de amizades questionáveis e familiares excêntricos, que, facilmente, ganham vida com a narrativa fluida e assertiva de Mellors.

Sem perder tempo com grandes descrições para além do panorama muito vívido de uma cidade que se desenrola como um ponto central da história, como se parte inerente da essência dos personagens, a autora concentra seus maiores esforços em diálogos existencialistas de tirar o fôlego em uma tentativa de deixar ao próprio leitor as impressões e sentimentos dali advindos.

Cleópatra e Frankenstein

Um exibicionista nato bem sucedido profissionalmente, Frank busca a glória e a emoção da juventude eterna aos quarenta e poucos anos; enquanto Cleo, aos vinte e quatro, ainda tenta encontrar seu lugar no mundo. Inglesa e imigrante, a pintora tenta satisfazer, ao mesmo tempo, os próprios anseios melancólicos, alimentados por um passado de traumas, e a imagem impetuosa e criativa que o mundo tem dela.

Com bagagens mais pesadas do que aparentam, os dois entram em um casamento conveniente, mas repleto de altos e baixos, que reflete muito bem o que são internamente, quando não se encontram rodeados pelo brilho enganador de uma Nova York esmagadora e exigente, pessoal e socialmente.

“— O buraco é a solidão — explicou Cleo baixinho. 
— Porquê? — disse Audrey. 
— Você não pode ficar acima de alguém e dizer para que saia de lá. — Ela disse. — Ou ensinar ou incentivar. Você tem que estar junto com a pessoa. 
— Você realmente acha que é isso? — perguntou Zoe. 
— É por isso que é um enigma — falou Cleo. — Alguém estar no buraco com você significa que você não está mais no buraco. 
[…]
— É assim que você se sente com Frank? — perguntou Zoe. — Como se alguém estivesse no buraco com você? 

Cleo olhou para os prédios apagados. A rua abaixo delas estava quieta e vazia. Parecia que elas eram as únicas pessoas ainda acordadas em toda a cidade. 

— Às vezes — disse. Ela parou para pensar mais um pouco. — E às vezes… Frank é o buraco.”

Muito mais do que um romance, Cleópatra e Frankenstein mergulha em relacionamentos intrincados, que retratam de maneira profunda grandes e atuais frustrações, sejam aquelas que caminham com uma jovem de vinte e pouco anos ou as que embalam um estilo de vida forçadamente boêmio e perigoso no auge do que deveria representar a maturidade, ainda que se passe em uma era pré-redes sociais.

Enquanto Frank mergulha no álcool e nas drogas em busca de uma abstrata e momentânea sensação de euforia, Cleo, no início muito vivaz, colorida e cética, retratada como uma verdadeira it-girl da Nova York dos anos 2000, cada vez mais se refugia em si mesma após o casamento e, consequentemente, em seus próprios traumas não tratados, em detrimento do impulso e emoção que inicialmente os conecta de maneira arrebatadora.

“— Ela era uma artista, como você. Com… Não sei explicar muito bem… o ego grande, mas a autoestima pequena?
— Parece correto. 
— Isso é uma coisa perigosa.”

Complexa e repleta de camadas, Cleo, que supostamente carrega em si a tristeza inerente a todos os grandes artistas, exige um cuidado mental que desemboca em um dos acontecimentos mais dramáticos e decisivos do livro. Na cidade cintilante de Mellors, todos carecem de alguma coisa; seja ela muito básica, como um salário digno na hora de pagar o cartão de crédito ou o aluguel superfaturado de um lugar, muito obviamente, supervalorizado; seja ela mais profunda, como a necessidade de representatividade e verdadeira expressão.

E todos, sem exceção, mergulham em algum tipo de vício autodestrutivo para sanar o desapontamento de expectativas próprias e alheias, carregadas de estereótipos cuidadosamente construídos socialmente para dobrar mesmo os indivíduos mais fortes de espírito, afinal são todos cidadãos do mundo que se encontram em Nova York, a cidade onde tudo é permitido, capaz de concentrar uma suposta pluralidade quase infinita — algo que é retratado na diversidade de personagens que cercam os protagonistas.

Se Cleo se mostra uma mulher padrão muito autoconsciente de sua beleza; Eleanor, uma mulher descendente de judeus, luta contra o que vê no espelho e a baixa autoestima em detrimento de tudo o mais que tem a entregar; Zoe, que acabou de deixar a adolescência para trás e tenta se encaixar na vida adulta como uma mulher, ainda busca se encontrar sexualmente em meio às frustrações de uma idade repleta de autocobranças e comparações; e Quentin, em meio a machismos e egocentrismos, tenta se encaixar em um mundo que rejeita a todo o momento tudo o que é LGBT, mesmo que faça parte do lado “cool” da cidade.

“Ela ficou em silêncio e ambos ficaram sentados na ausência da confissão, um entendendo o outro, os dois totalmente sozinhos nesse entendimento.”

Coco Mellors coloca Nova York e seus personagens em um aquário, um retrato moderno de onde vão parar os adultos quando esmiuçados, revirados, de dentro para fora, pela vida e por si mesmos, sendo, portanto, responsável por uma obra muito palpável, tão reais se tornam, assim como suas questões existenciais ao ressoarem diretamente com o leitor.

Tanto quanto eles, este mergulha em dores, anseios e pequenas alegrias muito tangíveis, se decepcionando, caindo e se reerguendo ao mesmo tempo em uma sensação agridoce e momentânea, a qual só pode ser proporcionada pela vida real, vivida tanto coletivamente, afetada por redes intrínsecas de relacionamentos, quanto pessoalmente, na solidão que todos enfrentam quando ninguém está olhando.

Assim são Cleópatra e Frankenstein, repletos de vida real.

“Eu acho que é assim que a vida deveria ser; partir em uma longa viagem de carro com todas as suas preocupações e esperanças amarradas ao seu redor, as pessoas que nos amam acenando freneticamente enquanto nos distanciamos.”

Publicado em doze países e finalista de Melhor Ficção e Melhor Romance de Estreia do Goodreads Choice Awards, Cleópatra e Frankenstein será adaptado para a TV pela Warner Bros, enquanto Coco Mellors foi listada pela Porter Magazine como uma das dez estrelas em ascensão de 2023.


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