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Unpregnant: direitos reprodutivos sem culpa

Duas amigas cruzando o sul dos Estados Unidos de carro em uma viagem cheia de problemas. Se você já assistiu a Thelma & Louise, essa sinopse provavelmente te fez pensar no clássico do início dos anos 90. Mas ela também se aplica a Unpregnant, filme original HBO Max, lançado em setembro de 2020.

A produção é uma adaptação do livro Desgrávida, de Ted Caplan e Jenni Henkins, e conta a história de Verônica Clark (Hayle Lu Richardson), adolescente do Missouri que, aos 17 anos, descobre uma gravidez indesejada. A protagonista decide fazer um aborto e, para isso, precisa ir até Albuquerque, no Novo México, onde não será exigida a autorização de seus pais. Com medo do julgamento em seus relacionamentos aparentemente perfeitos, Verônica só consegue pedir ajuda à sua ex-amiga de infância, Bailey Butler (Babie Ferreira). As duas partem, então, em uma roadtrip com muitos obstáculos, incluindo perseguições policiais, militantes anti-aborto, um passeio no parque de diversões e o surgimento de um herói improvável.

Diferentemente de Thelma & Louise, que envolve uma tentativa de estupro, o assassinato do agressor e uma perseguição policial com final trágico, Unpregnant tem um tom mais leve. Por se tratar de uma produção coming of age, existe um forte apelo ao humor e o amadurecimento das personagens é uma das tramas centrais. No entanto, apesar de endereçamentos diferentes, o clássico vencedor do Oscar de Melhor Roteiro é uma referência clara na nova produção. Para além da referenciação constante (incluindo uma cena de citação direta), ambos os filmes trazem às telas a amizade entre mulheres corajosas, pautam debates relevantes e dialogam com o papel que elas ocupam em momentos e épocas diferentes.

Poucas vezes vi o aborto ser retratado na cultura pop de uma forma tão natural quanto em Unpregnant. Verônica vem de uma família que já aceitou outra gravidez na adolescência: sua irmã mais velha passou por uma situação parecida e optou por ter o bebê. Além disso, o namorado, que se revela um stalker, a propõe em casamento e se alegra com a notícia da gravidez. Toda essa situação de aparente “conforto”, no entanto, não exerce influência sobre sua decisão de interromper a gestação.

É uma abordagem um tanto quanto corajosa, já que o aborto costumar ser representado próximo da culpa, da dor e colocado como necessidade — o que é verdade em muitos casos. Mas a perspectiva da escolha é pouco representada ou debatida. Verônica não é a única jovem de 17 anos a encarar tal situação e optar por um futuro diferente da maternidade. Trazer essa personagem às telas num filme com forte apelo à nova geração, é uma forma de avançar também na divulgação de conhecimento sobre direitos reprodutivos. Os 20 minutos finais do filme são uma aula sobre como ocorre o procedimento. Considerando que faço parte da parcela de audiência que vive em um país onde esse tipo de direito não pode sequer ser discutido, acho louvável que essa informação ocupe um espaço de tanto destaque.

Existem ainda outros temas relevantes que entram em pauta: a descoberta da sexualidade de Bailey, o abandono parental sofrido pela personagem, a retomada da amizade entre as protagonistas e um certo deboche com a militância “pró-vida” estadunidense. Com pitadas de ironia e bom humor, o filme usa a linguagem de um gênero cinematográfico que nem sempre traz grandes novidades, mas com uma trama ousada, que consegue falar sério sem abrir mão do entretenimento.


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