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Viúva de Ferro: uma trama chinesa, poliamorosa e fantástica

Viúva de Ferro, livro de estreia de Xiran Jay Zhaon, é uma miscelânea de algumas das minhas histórias favoritas da cultura pop. Pense em O Conto da Aia, de Margareth Atwood, mas pense também em Círculo de Fogo, filme de Guillermo del Toro, em Neon Genesis Evangelion, mangá de Yoshiyuki Sadamoto e Hideaki Anno, e, já que estamos aqui, inclua também uma pitada de Transformers e Dragon Ball. Pode parecer uma grande confusão, mas a autora consegue dar algum sentido — e muitas emoções — à sua história repleta de referências de uma forma particular.

No universo de Viúva de Ferro, os garotos sonham em ser pilotos das crisálidas, enormes máquinas de guerra que protegem a humanidade dos alienígenas que habitam a planície além da Grande Muralha, enquanto para as garotas a maior honra possível é ser escolhida para a função de piloto-concubina desses garotos, doando sua energia vital durante as batalhas para que a crisálida possa combater. A conexão mental entre piloto e piloto-concubina é tão intensa e poderosa que, por vezes, as garotas acabam morrendo durante as batalhas, doando sua essência para que os garotos dominem as máquinas. As famílias das garotas mortas podem receber recompensas financeiras do Estado, caso as mortes ocorram no calor da batalha, mas isso nem sempre acontece.

“Fêmea. Esse rótulo nunca fez nada por mim a não ser ditar o que posso e não posso fazer. Não ir a qualquer lugar sem permissão. Não mostrar pele demais. Não falar alto demais nem de forma brusca demais, ou mesmo falar, se os homens estiverem conversando. Não viver a vida sem estar constantemente preocupada se estou agradável ou não aos olhos dos outros.”

Quando Wu Zetian, uma jovem de dezoito anos, decide se alistar como concubina, ela não está pensando na glória de Huaxia ou em salvar a humanidade dos alienígenas para além da muralha. Nos pensamentos de Zetian residem apenas ódio e vingança pelo Exército que tirou a vida de sua irmã mais velha, vendida como concubina por sua família. A jovem tem um plano bem delineado em mente, e não deixará que nada a tire da rota de colisão com o piloto responsável pela morte da sua irmã, mas as coisas saem de controle e o que, a princípio, era uma missão suicida, dá à Zetian uma alcunha, no mínimo, apavorante nesse universo: Viúva de Ferro.

A Viúva de Ferro é uma concubina que, diferente do esperado, suga a energia vital dos pilotos com quem são pareadas, deixando Zetian em uma posição inesperada e tão poderosa quanto perigosa. Para controlar seu poder, o Exército a coloca como par de Li Shimin, o piloto mais poderoso de Huaxia, que é partes iguais de terror e letalidade. Li Shimin nunca perdeu uma batalha o que para Zetian significa, basicamente, que nenhuma piloto-concubina sobreviveu a ele e seu poder mental. Mas Li Shimin é feito de um material tão perigoso e cortante quanto Zetian, e a garota logo descobrirá que as aparências são capazes de enganar — e muito. Com o poder que agora tem em mãos, Zetian decide mudar o curso de seu plano, mas a palavra “vingança” permanece brilhando em letras garrafais na mente da garota: enquanto tenta sobreviver a um mundo que não foi feito para ela e que a despreza apenas por ser mulher, Zetian decide mudar as regras do jogo usando todas as armas de que dispõe enquanto Viúva de Ferro para fazer com que os poderosos percam tudo o que têm por garantido.

Viúva de Ferro, o livro, é uma trama de ficção científica com pitadas de fantasia que toma emprestado da história real chinesa alguns elementos para a composição de seu enredo. A personagem de Wu Zetian é claramente inspirada na verdadeira Wu Zetian, única mulher na história da China a ocupar o trono imperial. Outros elementos reais polvilham a escrita de Xiran Jay Zhaon como, por exemplo, aspectos da dinastia Tang e outros fatos da história chinesa que elu gosta de dizer que são easter eggs em seu livro. Viúva de Ferro não deve ser encarado como uma fantasia histórica ou um ponto de vista alternativo de acontecimentos reais, mas uma trama à parte que emprega elementos, figuras históricas e personalidades em geral para compor uma narrativa repleta de embates e batalhas entre robôs gigantes e alienígenas.

O enredo com os robôs gigantes — ou mechas, se você está familiarizado com o tema — me despertou a curiosidade desde o momento em que li a sinopse do livro, ainda em inglês. Círculo de Fogo é um dos meus filmes favoritos e passei muito tempo da minha adolescência entre leituras de Neon Genesis Evangelion e, mais tarde, assistindo Code Geass: Lelouch of the Rebellion, anime criado pela Sunrise com projetos conceituais da CLAMP, então estava realmente curiosa para saber como Xiran Jay Zhaon conseguiria transpor o conceito das grandes batalhas de robôs e pilotos compartilhando a consciência para as páginas de seu livro. Elu não se prende à muitas explicações a respeito do universo em que sua trama se passa e nem perde muito tempo explicando como a humanidade chegou até ali, lutando com robôs gigantes (na trama, as crisálidas) contra alienígenas, mas o sentimento de urgência sempre que uma sirene soa é transposto para suas páginas de uma maneira ótima.

“Quando gostamos de uma pessoa incrível, não a arrancamos de suas raízes só para vê-la murchar nas nossas mãos. Ajudamos essa pessoa a florescer e se tornar a coisa incrível que está destinada a ser.”

As crisálidas possuem categorias dependendo das habilidades dos pilotos que a ocupam, assim como poderes específicos dependendo do elemento dominante na dupla. Xiran Jay Zhaon usa, aqui, a Teoria dos Cinco Elementos da Medicina Tradicional Chinesa onde madeira, fogo, terra, metal e água simbolicamente agregam qualidades e sensações às pessoas. Na trama de Viúva de Ferro, os pilotos são capazes de canalizar determinados elementos, dependendo daquilo que se manifesta com maior força em cada um, e as combinações entre piloto e piloto-concubina também levam em consideração a adaptabilidade desses poderes. Combinações ideais como metal e fogo, por exemplo, se saem melhor contra determinados tipos de alienígenas, e assim a autora expande sua mitologia enquanto conta sua história. Há também em suas páginas muito sobre Yin e Yang, o conceito do taoísmo em que tudo no universo existe em dualidade: as forças Yin e Yang são opostas e, ao mesmo tempo, complementares, assim como garotos pilotos e garotas pilotos-concubinas.

Xiran Jay Zhaon é muito inteligente ao usar desses conceitos para tecer sua narrativa, principalmente quando Wu Zetian começa a descobrir os meandros por trás de toda a estrutura do Exército que sacrifica garotas em prol de um bem maior. Em sua protagonista Xiran Jay Zhaon cria uma personagem interessante e feroz, uma jovem mulher que se vê à beira do precipício e não tem medo de saltar se isso significa fazer com que seus planos se concretizem. Wu Zetian é impetuosa e determinada, em alguns momentos não tem a menor ideia do que está fazendo, mas não desiste. Tendo sido criada em uma aldeia na fronteira com a Grande Muralha que separa os humanos dos alienígenas para além da planície, e longe da metrópole e do acesso a informações, às vezes soa um pouco fora de lugar que Wu Zetian seja tão assertiva em alguns momentos, afinal ela nunca conheceu nada além do lugar em que nasceu ou das imagens que conseguiu ver no tablet emprestado de Gao Yizhi, seu melhor amigo. O domínio de seu poder também soa quase fácil demais, mas não é algo que atrapalhe a trama ou a fluidez da escrita de Xiran Jay Zhaon pois o leitor, a essa altura, já está investido na história para se incomodar com a velocidade dos acontecimentos.

“— Estou tão cansada de ser garota.
— É. Se você fosse um garoto, estaria dominando o mundo a esta altura.
— Hum, não sei se é tão simples. Eu precisaria ser o tipo certo de garoto.”

Viúva de Ferro é, de fato, um livro bastante dinâmico. Os acontecimentos se sobrepõem rapidamente e não há muito espaço para Xiran Jay Zhaon trabalhar de fato o universo em que sua história se passa. As explicações quanto aos alienígenas ou as crisálidas, os poderes de seus pilotos ou mesmo o governo que domina Huaxia não são aprofundadas em prol dessa trama mais dinâmica, e mesmo os personagens não são tão desenvolvidos quanto poderiam ser. Mesmo assim, é difícil não se importar com Wu Zetian, Li Shimin e Gao Yizhi, e tudo o que acontece a eles no processo. Por a trama ser tão boa e conter elementos de que gosto muito, é natural querer que ela se estenda por páginas e páginas, mas o que Xiran Jay Zhaon entrega é interessante e divertido, salpicado de questionamentos a respeito de papéis de gênero, feminismo e o poder do patriarcado nas vidas das mulheres. Pode parecer que tais temas estejam na trama apenas para fazer com que o livro seja falado, mas dá pra notar que a autora colocou muito de seu coração e de suas crenças na trama, o que me fez olhar com muita simpatia para todo o seu trabalho.

Viúva de Ferro acaba soando como uma espécie de carta de amor à China, sua mitologia e sua cultura ao mesmo tempo em que não se furta de apontar o dedo para as coisas que estão erradas em sua estrutura, desde as antigas tradições de amarrar os pés de meninas para que se pareçam com flores de lótus, até a submissão feminina diante os homens de sua família que as enxerga como propriedades, somente meios para um fim. Viúva de Ferro é um livro chinês, queer, poliamoroso, corajoso e verdadeiro à sua essência. Xiran Jay Zhaon comete alguns pequenos deslizes na trama e no desenvolvimento apressado de seus personagens e relacionamentos (o fato, por exemplo, de que Wu Zetian quer proteger as meninas de Huaxia, mas não consegue desenvolver um relacionamento sadio com nenhuma outra mulher além de sua irmã morta me incomoda muito), mas, de novo, não é algo que atrapalhe a jornada. A trama cresce em urgência na medida em que descobrimos os meandros de poder em que Huaxia está submersa enquanto Wu Zetian luta com todas as forças para mudar as peças de um jogo que precisa jogar contra sua vontade.

“Às vezes, é a traição da mente o que machuca mais. Muito mais do que a traição do corpo.”

A protagonista é feroz e, se fosse um garoto, suas ações jamais seriam questionadas, mas sendo uma garota demonstra com clareza como vivemos em um mudo moldado para nos subjugar. Xiran Jay Zhaon tem uma escrita instigante que te faz virar página após página, curiosa com o empilhar de acontecimentos. Mesmo que elu use, de fato, de tramas já conhecidas e referenciadas, o que torna alguns plot twists pouco surpreendentes, isso não desprestigia a trama pois há muito que é inteiramente novo e totalmente parte de Xiran Jay Zhaon.

Wu Zetian não é uma protagonista como estamos acostumadas a ver em young adults em determinados momentos a personagem me lembrou muito de Lada Dragwlya, protagonista de A Saga da Conquistadora, de Kiersten White, uma jovem mulher que não mede esforços para concluir seus planos e alcançar seus objetivos —, visto que ela toma algumas decisões movida por ódio puro e raiva. Mesmo o trisal que se desenvolve com o decorrer da narrativa não é algo presente em muitos livros do gênero: relacionamentos poliamorosos, e não triângulos amorosos, são raros de serem vistos em livros voltados para um público jovem e só me recordo de tê-lo visto em O Pacto das Três Graces, de Tessa GrattonViúva de Ferro é o início de uma duologia promissora — e de uma carreira brilhante para Xiran Jay Zhaon. Mal posso esperar para ver o que Xiran Jay Zhaon tem preparado não somente para Wu Zetian como para suas próximas publicações.

“Acho que toda essa ideia de as mulheres serem dóceis e obedientes é só uma esperança de vocês. Senão, por que se esforçariam tanto para mentir? Para aleijar nossos corpos? Para nos coagir com lições morais falsas que vocês alegam ser sagradas? Homens inseguros como você têm medo. Podem nos forçar a cooperar, mas, lá no fundo, sabem que não podem nos forçar a amá-los e respeitá-los de verdade. E sem amor e respeito, sempre vai existir uma semente de ódio e resistência. Crescendo. Supurando. Espreitando.”


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4 comentários

  1. Ai, miga, queria tanto ter gostado mais desse livro. Foi uma leitura OK, mas que me irritou profundamente. O livro é um rascunho de algo que poderia ter sido incrível, mas sinto que Zhao foi rasa em quase todas as discussões. Por exemplo, Zetian é toda desconstruída, cheia de princípios feministas. De onde isso veio? Cadê a irmã, que desencadeia tudo isso? Não tem nem nome, a coitada.

    Uma pena mesmo, porque um enredo de robôs gigantes em uma China Imperial futurista me ganhou logo de cara, mas o desenvolvimento é muito ruim.

    1. Amiga!!! HAHAHA, então, acho que estava me sentindo benevolente e animada com a leitura, pois eu de fato apontei que falta profundidade em muitas questões como, por exemplo, Zetian só se preocupar com a irmã morta e não criar laços com nenhuma mulher, e ela ser tão “empoderada” mesmo vivendo numa vila pequena, entre tantas outras coisas. Mas eu me diverti durante a leitura. Acho que o que Xiran Jay Zhaon se propôs a fazer me deixou com um sentimento positivo durante o livro, narrando essa cultura chinesa com robôs gigantes e alienígenas. Elu tem potencial, talvez precise amadurecer. 🙂

    1. Oi, Giovanna! Sim, os pronomes de Xiran Jay Zhaon são neutros, portanto, durante o texto, optei por usar ‘elu’. Obrigada pelo comentário! <3

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