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Sem armadura ou nada: o relacionamento de Kaz e Inej

Quando falamos de pares românticos no universo criado por Leigh Bardugo, muito nomes podem vir à tona, como Alina e Maly ou Alina e Darkling, personagens da Trilogia Grisha. Mas, quando falamos da duologia Six Of Crows, Kaz e Inej protagonizam um relacionamento complexo por sua dinâmica e pelo passado e crescimento mútuo que compartilham ao longo dos dois livros. Seja de maneira individual ou quando os analisamos coletivamente, é encantador e ao mesmo tempo sofrido acompanhar a jornada dos dois personagens ao longo de Six of Crows: Sangue e Mentiras e Crooked Kingdom: Vingança e Redenção.

Atenção: este texto contém spoilers e pode conter gatilhos de tráfico humano, violência e transtornos psicológicos.

Desde os primeiros capítulos da duologia, percebemos que há manchas no passado de ambos os personagens. E não estamos falando dos crimes cometidos por eles, mas sim dos traumas que levam sombras ao comportamento de cada um, ao mesmo tempo que dá base à relação profissional — e à estranha amizade — entre eles. O momento em que os personagens se conhecem é anterior aos acontecimentos do livro, mas é relembrado por eles em flashbacks e relatos: Kaz Brekker e Inej Ghafa se encontraram pela primeira vez em uma Casa de Prazeres, ou seja, um prostíbulo. Lá, a garota vítima de tráfico sexual era escravizada.

Reunindo o restante de coragem que ainda habitava seu corpo, Inej aborda Mãos Sujas e pede por sua ajuda. Ninguém conseguia abordar Kaz Brekker sem chamar sua atenção, mas Inej e seus passos silenciosos surpreendem o líder dos Dregs. Ele, por sua vez, não é tão sensibilizado pela situação da moça, mas vê naquele encontro e nas habilidades da garota uma enorme oportunidade. Ele promete ajudá-la e em troca oferece a ela uma posição em sua gangue, para que ela possa prestar serviços diferentes e, quem sabe, ferir aqueles que um dia a feriram. E é assim que Inej Ghafa se torna a lendária — e temida — Espectro dos Dregs.

A Espectro

Não é mistério para ninguém que lê a duologia de Leigh Bardugo que Kaz é a mente por trás dos Dregs. Seus planos e ações, desde a composição de sua persona aos golpes dados nos mais ricos de Ketterdam, são os grandes responsáveis pelo sucesso de sua organização e o enriquecimento e o poder de sua gangue. E se Inej, enquanto Espectro, poderia ser vista como o corpo físico de execução dos planos frios e calculistas de Kaz, ela também ocupa um papel mais central nos Dregs e na narrativa de Bardugo: o de coração. E isso pode ser observado em especial na parte final de Six of Crows e em todo Crooked Kingdom, uma vez que a amizade dela com os outros membros da gangue é o motor central do enredo do segundo livro.

Mais do que o coração da história, Inej é a cola que une todos os seus companheiros de golpe. Sem ela, nem a astúcia e manipulação de Kaz seriam capazes de manter todo o grupo junto e unido em prol de uma causa (ainda mais quando ela não é tão nobre assim). Suas crenças, seu jeito de encarar a vida e lidar com todas as coisas horríveis que lhe aconteceram no passado e as coisas que precisou fazer em nome de sobreviver são únicas e não poderiam se diferir mais do modo com que Kaz encara a vida.

É importante ressaltar que Leigh Bardugo não baseou a história de Inej apenas em suposições e na sua imaginação. Como a autora menciona em uma entrevista para o Washington Post, durante a sua pesquisa para o livro, ela conversou com três garotas que passaram por diferentes situações de tráfico, sendo cada uma delas de diferentes backgrounds. Já se tratando de Kaz, algumas das características do personagem estão mais próximas da vivência da autora: como Bardugo, Brekker também precisa de uma bengala para se locomover. Porém, enquanto a criadora sofre de osteonecrose, uma doença degenerativa no tecido ósseo, a criatura sofre de dores decorrentes de uma ferida mal curada durante a infância — algo que para Kaz Brekker vai além do físico.

A autora conta que mesmo assim, com intensa pesquisa e até mesmo vivências pessoais, passou por vários momentos de autocrítica, cobrança e dúvida, em que ela não se sentia confortável ou até mesmo digna de escrever sobre alguns temas retratados em sua duologia. Mas a prova que Bardugo sabe contar uma história repleta de verossimilhança e que o conceito “escrita preguiçosa” não faz parte de seu repertório se reflete também no modo como ela constrói toda a caminhada de Kaz e Inej rumo a um relacionamento que vai além do profissional e da amizade.

Se, em um primeiro momento, Inej se via e era tida por Kaz como um investimento e até mesmo uma ferramenta, logo o laço dos dois vai se estreitando e fazendo curvas impensáveis para ambos. E embora eles prefiram negar o que sentem por inúmeras páginas, o surgimento e até mesmo a tensão e a opressão dos sentimentos entre os dois é visível e percebida com clareza pelos outros membros da gangue. Isso fica claro em uma passagem de Six of Crows em que Nina, melhor amiga de Inej e membro importante dos Dregs, conta para Espectro que percebe a mudança de postura, respiração e até mesmo os batimentos cardíacos de Kaz quando a garota está por perto. Obviamente, grande parte disso se deve às habilidades sobrenaturais da personagem, capaz de reparar e até mesmo manipular o corpo humano. Mas em pouco tempo a mesma percepção se alastra entre todo o grupo e, infelizmente, também entre os inimigos de Brekker.

E entre planos, golpes, truques, facas, bengalas e luvas, vemos breves porém significativos diálogos entre o casal dar forma a discussões importantes sobre eles e sobre os sentimentos de cada um. Por mais que ame Kaz e esteja disposta a tentar algo com ele, Inej também sabe que, no ponto em que Kaz se encontra, uma relação com ele significaria anular a si mesma e tentar ser responsável por tirá-lo do buraco sombrio, cheio de ódio, vingança e auto aversão em que ele se encontra. E dotada de grande maturidade e autoconhecimento, ela sabe que isto não é, e nunca deveria, ser sua tarefa. Para ela, ele precisa tentar. Ele precisa querer melhorar e não ser resgatado pelo poder do amor de Inej.

Inej não é o bote salva-vidas de Kaz. Bardugo entende isso e nos entrega uma história contada com primor e desenvolvida de forma profunda e admirável, impedindo que a história dos dois seja igual a de outros muitos casais encontrados em Young Adults ou New Adults em que o amor salva tudo. Só o amor, como sentimento isolado, não opera milagres. É preciso respeito, entendimento, empatia e esforço de ambas as partes. Neste sentido, além das decisões tomadas na história de Inej, a construção de personagem de Kaz também subverte alguns estereótipos, o que no final soma às possibilidades de sua relação com Inej.

O Mãos Sujas

Em um primeiro momento, Mãos Sujas se encaixa na trope de par romântico Brooding Male. Personagens que seguem este clichê são angustiados, silenciosos, misteriosos e assombrados pelos demônios do passado e procurando por redenção, que quase sempre vem pelas mãos de outra trope, desta vez do lado da mocinha, a Gentle Girl (Garota Gentil, em tradução livre). O problema da maior parte dessa narrativa é a romantização dos atos dos personagens ou daquilo que eles viveram. Mas não em um trama escrita por Bardugo. Mesmo que Inej se assemelhe em alguns pontos com a Garota Gentil com o potencial de salvar nosso anti-herói, o ponto chave já citado anteriormente a tira deste caminho e a faz trilhar uma estrada mais original, interessante e até mesmo honrada, em que a personagem se coloca em primeiro lugar, saindo do papel de apoio masculino.

Quanto a Kaz, o modo nu e cru e real como a escritora nos apresenta o personagem logo quebra com nossas expectativas e com a trope que o precede. A autoconsciência de Kaz em relação às suas ações, desumanidade e maquinações também o traz para um novo patamar. Suas feridas profundas e cruéis do passado o tornaram uma pessoa horrível. Elas também o fizeram se fechar para o mundo, para o afeto, para a confiança, para qualquer tipo de relação que não seja estritamente de negócios ou comercial. Como alguém que não confia na própria sombra pode abaixar a guarda e se deixar sentir novamente?

A aversão e repulsa por qualquer contato físico, devido ao seu transtorno de estresse pós-traumático, também se refletem na sua frieza de sentimentos. E quando eles vêm, porque em algum momento eles precisam aparecer, isso o aterroriza, o assusta e o deixa desnorteado.

“Ela riu, e se ele pudesse engarrafar aquele som e se embebedar com ele todas as noites, ele teria feito isso. Era algo aterrorizante para ele.”

Ao comparar a risada de sua amada com uma bebida, ele também a compara com um vício. Essa observação é interessante pois algo que chama a atenção de Inej desde o momento em que ambos se conheceram é que Kaz aparenta ser um homem sem vícios: ele não bebia, não usava drogas, raramente jogava (a não ser para aplicar golpes) e mesmo na casa dos prazeres, não tocava em nenhuma mulher. O envolvimento e o toque, como vimos acima, está relacionado com seus traumas. Da mesma forma, a busca por controle e segurança também pode estar, e talvez por isso ele evite qualquer prática ou substância que o tire de seu eixo de sobriedade, raciocínio e planejamento. Ele evita assim a vulnerabilidade, o envolvimento e o amor.

O que nos leva a traçar um paralelo entre ele e um dos mocinhos mais queridos do YA, Jace Herondale (Os Instrumentos Mortais, de Cassandra Clare), ajudando a jogar mais uma luz sobre a opinião de Kaz sobre o amor (em suas diversas formas): “amar é destruir e ser amado é ser destruído.” Essa é a visão arraigada de Kaz, que mesmo durante os acontecimento da trama se prova verdadeira, a exemplo dos acontecimento que finalizam o primeiro livro e como bem apontados pela escritora em entrevista para o site Hypable.:

“He really believes there are punishments for making yourself vulnerable. And the truth is, in this environment that is 100% true. And that fact does not change throughout the book. That is the reality of the world that they live in.”

“Ele realmente acredita que há punições por se tornar vulnerável. E a verdade é que, nesse ambiente, isso é 100% verdadeiro. E esse fato não muda ao longo do livro. Essa é a realidade do mundo em que vivem.”

Se fazer vulnerável vem a um preço alto. Um que Kaz já pagou e conhece muito bem. Mas qual é o ponto de sobreviver se, eventualmente, você não irá viver e abraçar tudo — de bom e ruim — que vem com ser humano?

“(…) Kaz is deciding who is going to be. Because his life has been all about revenge, and one of the questions that Inej poses to him is not really about his attachment to her. It’s about, what comes after that? Are you just going to become exactly like the man you’re looking to destroy?”

“(…) Kaz está decidindo quem será. Porque sua vida tem tudo a ver com vingança, e uma das perguntas que Inej coloca para ele não é realmente sobre seu apego a ela. É sobre o que vem depois disso? Você vai se tornar exatamente como o homem que você está procurando destruir?”

A caminhada

E é neste sentido que Inej é catalisadora, mas não a única responsável, da vulnerabilidade em Kaz. Com sua risada, seus provérbios sulis, sua desenvoltura em uma luta, sua adoração e preocupação com os amigos ela o instiga a ser vulnerável, a se deixar envolver e reaprender a apreciar os sentimentos bons que existem ao se gostar de alguém. Não é até ele estar disposto a enfrentar essa jornada — que é dolorosa e toma tempo e esforço — que o relacionamento deles dá o passo necessário.

Com uma escrita primorosa, consciente e que se desvia de algumas armadilhas espinhosas, Bardugo consegue fazer Inej ser o ponto de partida da mudança em Kaz, de fazê-lo olhar para dentro e encarar o abismo, o enfrentando quando ele olha de volta, mas tudo isso sem as custas do próprio desenvolvimento da personagem, sem relegá-la ao posto de salvadora que carrega toda a mudança do par romântico nas costas.

O amor nunca é fácil ou apenas bonito, mas cheio de percalços, desafios e esforços de ambos os lados. Não é a solução para tudo, a menos que venha acompanhado de outros sentimentos, e essa é uma lição que a escritora aprendeu muito bem e se refletiu de forma orgânica e certeira na construção do relacionamento de Kaz e Inej. Os leitores que amam um bom e digno romance suspiram de alívio — e amores.

Texto escrito em parceria por Debora e Isadora.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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2 comentários

  1. Um dos melhores textos que já li ao retratar o amor de dois personagens, magnífico! O amor deles é fascinante e merecedor de apreciação e aprendizado.

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