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A força de Jane Eyre, uma mulher que desafiou seu destino

Ninguém se surpreenderia com a afirmação de que, na Inglaterra do século XIX, o futuro de uma mulher estava traçado desde o seu nascimento. Questionar esse destino era considerado impensável, ou, ainda, uma ideia subversiva. Muitas mulheres da época nem mesmo cogitavam algo tão inalcançável quanto a liberdade, que dirá sonhar com ela e agir para que se tornasse real. Diante disso, só consigo imaginar o alvoroço entre os leitores da Era Vitoriana ao se depararem com Jane Eyre, protagonista do livro que leva seu nome, escrito por Charlotte Brontë, uma heroína que ousou buscar a independência e desejar mais do que aquilo que lhe apresentavam como alternativas para a vida de uma mulher.

Atenção: este texto contém spoilers!

“Tem-se a crença de que as mulheres, em geral, são bastante calmas, mas as mulheres sentem as mesmas coisas que os homens. Precisam exercitar suas faculdades e ter um campo para expandi-las, como seus irmãos costumam fazer. Elas sofrem de uma restrição, tão rígida, e de uma estagnação tão absoluta, como os homens sofreriam se vivessem na mesma situação. É um pensamento estreito dos seres mais privilegiados do sexo masculino dizer que as mulheres precisam ficar isoladas do mundo para fazer pudins e cerzir meias, tocar piano e bordar bolsas. É fora de propósito condená-las, ou rir delas, se elas desejam fazer mais ou aprender mais do que o costume determinou que fosse necessário para pessoas do seu sexo.”

Durante uma infância marcada por rejeição, maus-tratos e injustiças, Jane aprende a se virar sozinha e começa a sustentar uma personalidade autêntica que não agrada àqueles que pretendem dominá-la. E, a partir daí, nunca mais para de desconcertar ou impressionar, enquanto despeja verdades com uma língua sempre muito afiada. Falar o que vem à mente sem se importar com quem está ouvindo é uma característica julgada “pouco feminina” por muitos dos homens que cruzam seu caminho. Jane ainda demonstra uma fome de viver coisas novas e aparece constantemente avaliando se está ou não no lugar certo, por mais cômodo que ele seja.

Para completar, ela é descrita como “feia”, e se heroínas quase nunca são definidas dessa forma em livros contemporâneos, imagine em obras publicadas há mais de 100 anos. A verdade é que Jane Eyre apenas não se encaixava no modelo de beleza vitoriano, o que deve ter sido um bálsamo para as leitoras que também passavam longe desse padrão e finalmente tiveram com quem se identificar.

Não é por acaso que Charlotte Brontë é considerada revolucionária. Eu diria que corajosa também é uma palavra muito apropriada. Quando publicou Jane Eyre, em 1847, ela usou o pseudônimo masculino de Currer Bell, e o conteúdo do livro, com questionamentos sobre o papel da mulher, gerou desconfianças a respeito de sua autoria. “Afinal de contas, um homem dificilmente pensaria dessa forma”, eles devem ter dito, e o mais triste é que provavelmente tinham alguma razão. Depois de Brontë ter sua identidade revelada, um autor com quem ela trocava correspondências lhe escreveu dizendo que a literatura não poderia — e não deveria — ser o objetivo de vida de uma mulher.

Escrever era e continua sendo um ato de resistência. E assim como deve ter sido para sua criadora, a força de Jane Eyre reside justamente em sua coragem para resistir. A narrativa em primeira pessoa, nos moldes de uma autobiografia, não me parece uma escolha aleatória. Este livro é, acima de tudo, a história de uma sobrevivente. O romance com Mr. Rochester é apenas parte de uma vida inteira de outras experiências. Desgosto bastante do personagem e consigo enxergar problemas em várias de suas interações com Jane, enquanto patrão ou par romântico. Me incomoda o tom condescendente e o modo como, por vezes, ele a diminui, mesmo em suas declarações apaixonadas. Sem contar os erros egoístas que comete em relação a ela. Mas Jane o ama profundamente e o elege, o que não a impede de enfrentá-lo e de mostrar a todo momento que as coisas acontecerão em seus termos.

Muito antes de ser fiel ao amor que sente por ele, Jane é fiel a si mesma e tem orgulho disso. Então, quando finalmente chegamos até uma das frases mais famosas do livro, “leitor, eu me casei com ele”, pouco importa se gostamos ou não do personagem. Ficar com Mr. Rochester foi escolha dela e, no decorrer de toda a sua trajetória, Jane Eyre sempre procurou fazer valer sua vontade.

“Eu não sou um pássaro, e não fui presa em uma armadilha. Sou um ser humano livre com minha vontade independente.”

Taryne Zottino é formada em jornalismo, mas gosta mesmo é da ficção. Maratona séries e filmes antigos para fugir um pouquinho da realidade. Lê, escreve e está sempre pensando em viajar. Você pode encontrá-la no Twitter e no Medium.


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2 comentários

  1. Não é porque é clássico, que não vai ser spoiler: “leitor, eu me casei com ele”.
    Terminei de ler esse livro ontem, ainda bem que não li esse post antes, teria estragado minha experiência.

    No mais, concordo com suas palavras.

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