O diálogo mais famoso de As Virgens Suicidas — “você nem tem idade o suficiente para saber o quanto a vida fica difícil”/“doutor, você obviamente nunca foi uma menina de treze anos” — diz muito sobre como enxergamos, enquanto sociedade, as aflições das meninas que estão crescendo e criando suas identidades à nossa volta. As angústias que acompanham não só a adolescência como um todo, mas especificamente a adolescência feminina, que adiciona toda uma carga de machismo — inclusive aquele inveterado dentro de nós mesmas, absorvidos de tudo o que nos cerca — à experiência, parecem tornar as garotas adolescentes particularmente interessantes para os contadores das histórias que na verdade não são sobre elas, e sim sobre seus pais. Dana Brody em Homeland, Grace Florrick em The Good Wife, Paige Jennings em The Americans, Sally Draper em Mad Men: todas foram parte de séries que dedicaram uma quantidade considerável de tempo de tela às filhas adolescentes de seus protagonistas, fossem eles oficiais da marinha/supostos agentes terroristas, advogadas de volta ao mercado de trabalho após o afastamento para serem mães em tempo integral, espiões soviéticos à noite e pais suburbanos de dia ou então publicitários alcoólatras e tristes.
As quatro séries partem exatamente da mesma premissa, a de que criar filhos é difícil, e é possivelmente mais difícil quando você é um espião, ou alguém que se virou contra o próprio país, ou uma boa esposa cujo marido acabou de ser preso muito publicamente por corrupção ou talvez apenas vazio por dentro. Quando Dana Brody (Morgan Saylor) segue o caminho mais clichê da adolescente rebelde e tem seus momentos “Dana usa drogas!” “Dana tem um namorado questionável!” ou “Dana odeia seu pai!”, ou Grace Florrick (Makenzie Vega) — cuja mãe está firmemente fincada no território agnóstico-ateu — e Paige Jennings (Holly Taylor) — cujos pais acreditam que religião é o ópio do povo — decidem se dedicar integralmente ao cristianismo, tudo isso é feito com um único objetivo: torná-las um Problema para Seus Pais. O que, em consequência, as torna facilmente insuportáveis e acima de tudo desinteressantes do ponto de vista narrativo, visto que elas só fazem atrapalhar as histórias que são postas em destaque.
Quando Homeland tentou humanizar Dana, buscando explorar as consequências que ser filha de um homem considerado um traidor da pátria, terrorista e inimigo nacional acrescentava à experiência de ser uma garota em idade de formação, já era tarde demais. Porque, dois anos depois, ninguém havia criado empatia alguma com ela e ninguém queria assistir àquela trama, não dentro daquela série. Naquele ponto, Alex Gansa e seu time de roteiristas já tinham feito de Dana apenas uma sombra de uma personagem, completamente unidimensional na medida em que ela existia para que o sargento Nicholas Brody (Damian Lewis) reagisse a ela, assim como Grace existia para criar drama na vida de Alicia, a mãe que trabalha (ela sim uma excelente personagem, complexa e bem desenvolvida). É em não se encaixar perfeitamente nessa categorização tão comum, tão clichê e por vezes tão infeliz (Dana poderia ter sido uma grande personagem) que Sally Draper se torna tão especial.
É claro que entre Sally Draper e as outras três meninas existe uma diferença fundamental, que é a de que, quando Mad Men começou, Kiernan Shipka, sua intérprete, tinha sete anos — ou seja, Sally ainda era uma criança. Naquele tempo, ainda não havia muito para ela fazer na série, exceto demonstrar todo o seu amor incondicional pelo seu pai majoritariamente ausente, mas que às vezes estava lá para colocá-la para dormir. Ela servia principalmente para nos ajudar a ler Don Draper (Jon Hamm) como um pai bastante péssimo — afinal, esse era o homem que, assustado com a possibilidade de que o mundo viesse a descobrir que ele era um desertor do exército e roubara a identidade de um homem morto, sugere fugir com a amante e precisa ser lembrado por ela de que tinha dois filhos para criar. Don parece surpreso ao ser lembrado disso, e garante que iria sustentá-los, como se sua relação com os filhos não passasse de uma questão financeira. Sally também existia, para além do universo de Don, para nos apresentar às dificuldades que Betty (January Jones) tinha com seu papel de mãe, muito embora ela tentasse mais do que Don.
O grande destaque de Sally, que comprovou o talento precoce de Shipka, veio com a terceira temporada da série. É nela que o pai doente e senil de Betty acaba indo morar na residência dos Draper, e é durante esse tempo que Sally desenvolve uma relação muito próxima com ele. Quando o avô vem a falecer, a pequena Sally passa pela sua primeira experiência de luto, em meio à qual ela é incapaz de entender por que os adultos conseguem sentar à mesa da cozinha e rir quando seu avô nunca, nunca mais vai voltar. A pequena Kiernan, então com dez anos de idade, representa com competência os sentimentos que Sally precisou experienciar tão jovem. A situação se torna ainda mais complicada quando o irmãozinho dela nasce logo depois, e recebe de Betty o nome do pai falecido: Gene. Sally precisa conviver não só com o ciúme natural de uma criança com a chegada de um novo bebê para demandar atenção, mas também com o fato de o bebê receber o nome e o quarto que era do avô de quem ela tanto gostava, como se os pais quisessem substituir Gene por um outro, quando ele já não deveria mais estar lá. Esse também é um dos momentos cruciais na complexificação de Don enquanto pai: é ele quem pega Gene e Sally no colo para dizer a ela que aquele era seu irmãozinho, apenas um bebê, não o avô — para ser a única pessoa a dizer que estava tudo bem.
Sally jamais se torna insuportável porque Matthew Weiner e seus roteiristas tomam a decisão acertada de não escrever a ela ou às suas tramas como um mero problema com o qual Don precisa lidar. Pelo contrário, a relação de pai e filha existe justamente para acrescentar nuances a um personagem que sempre foi deveras complexo. Estamos falando de um homem que era cronicamente infiel e viciado em aventuras extraconjugais, mas que, quando Peggy sugere uma campanha para uma companhia aérea baseada na sexualização da figura feminina, afirmando (não erroneamente) que sexo vende, sugere outro caminho — um baseado no cartão de “eu te amo, papai” de Sally que ele tinha sobre a mesa. O que vende de verdade, ele diz, é despertar algum sentimento. É uma discussão que ele tem dentro do âmbito da publicidade, mas também é uma discussão que ele tem consigo mesmo, sobre ser mais do que um executivo padrão que “gosta de saias curtas”, como Peggy (Elisabeth Moss) coloca (não necessariamente erroneamente), sobre não ser o homem que não entenderia a poesia de Frank O’Hara, como presume o desconhecido de visual menos engessado que ele vê lendo Meditations in an Emergency no bar, ou sobre não ser só o homem que não consegue mais transar com a esposa — tudo que constrói o contexto que o cerca em “For Those Who Think Young”, um dos muitos episódios que enfatizam que Don há tempos já não é mais um jovem às margens do sistema.
Seria fácil dizer que, nesse contexto, Don simplesmente não liga para Sally e preferiria não precisar lidar com ela para poder se dedicar integralmente às suas aventuras — como no detestável episódio em que, depois do divórcio, ele está num fim de semana de visita dos filhos e resolve sair para um encontro, deixando-os com a vizinha. Mas não é verdade, e parte do problema é que, devido às suas próprias questões internas, incluindo o fato de não ter tido nenhuma figura paterna decente, Don não sabe como ser um bom pai. A ponto de acreditar que uma mulher que acabou de conhecer sua filha saberá melhor como conversar com ela do que ele. E é isso que torna o personagem tão rico e fascinante. Mesmo quando Sally existe para que o pai reaja a ela, é de um jeito bom, adicionando e somando complexidade a ele justamente porque ela não é uma personagem unidimensional que existe para causar problemas.
Um dos momentos mais importantes nesse relacionamento é “Favors”, na sexta temporada, quando Sally flagra o pai e a vizinha, sua amante, na cama. A situação não era apenas desconfortável como seria para qualquer um, mas Sally sabia que a vizinha era esposa de um homem que Don chamava de amigo, um homem que ela vira agradecendo sinceramente ao pai quando este livra seu filho de ser recrutado para a guerra. Mesmo depois de Sally ser submetida a tanta coisa por conta do pai, é esse o grande momento de ruptura entre eles. Se todos nós descobrimos eventualmente que nossos pais e mães são falhos e tão humanos quanto qualquer um, e isso faz parte do processo de amadurecer, Sally precisa encarar o fato de que o pai dela é absurdamente falho e, mais do que isso, passa muito, mas muito longe do pai-herói que ela havia idealizado por tanto tempo simplesmente porque passava a maior parte do tempo bem longe dele, mas sob os constantes esporros da mãe, a quem ela sempre o opunha. Mad Men opta por explorar os efeitos bastante devastadores dessa ruptura não apenas para Don, seu protagonista, mas também para Sally. Essa escolha resultou numa das cenas mais famosas da garota, em que Betty oferece a ela um cigarro, afirmando que Don certamente já teria lhe oferecido uma cerveja naquele ponto, ao que Sally responde, cigarro na mão (numa posição que mimetizava em muito a própria Betty): “meu pai nunca me deu nada”. Era um óbvio, mas ainda assim poderoso, duplo sentido.
Foi a partir de seu destaque na terceira temporada, e conforme Sally crescia, que ela começou a ganhar tramas próprias em alguns episódios. Talvez a boa aceitação dessa escolha tenha relação com o fato de Mad Men ser essencialmente character-driven, de não existir nela nenhum grande enredo para além de seus personagens, o que tornava comum que uma miríade deles fossem destacados em episódios diferentes. Por isso, na sexta temporada somos presenteados com a trama de Sally no internato, finalmente livre da mãe de quem ela tanto reclamava. É lá que Sally fuma, bebe e leva garotos para o dormitório ilicitamente, incitada por suas colegas de quarto e corredor. Poderia ser o estabelecimento de Sally, a-garota-rebelde, mas não é. Porque nada do que acontece lá reflete em Don ou Betty, não são momentos “Sally fuma um cigarro! E agora, Don Draper?”, e sim momentos em que Sally está pela primeira vez longe de casa e precisa decidir por ela mesma quem ela é o que ela quer fazer. Essas pequenas transgressões do código de conduta da escola (às vezes da lei) não tornam Sally uma “garota má”, bem como suas crescentes interações, cercadas de um flerte discreto, com os garotos que atravessam seu caminho não os tornam o centro absoluto de sua vida. Tudo isso faz parte de Sally, mas não a define. Ela não é uma garota-problema, tampouco é a garotinha do papai.
“Eu sou tantas pessoas”, diz Sally ao pai na temporada seguinte. Em “A Day’s Work”, ela vai passar um dia na cidade para participar do velório da mãe de sua amiga, mas também para fazer compras. Sally perde a carteira e é obrigada a recorrer ao pai, o adulto que ela tinha em Nova York. Nesse ponto, ela e Don já haviam voltado a se falar, depois que ele revela sua verdadeira história a ela, logo depois de ser colocado em uma licença compulsória pelos outros sócios da agência. Sally não sabia da segunda parte, e descobre da pior maneira: procurando o pai no antigo escritório, convicta de que ele só poderia estar lá. Diante de mais uma mentira gigantesca, Sally fica mais uma vez amuada e respondendo às tentativas de Don com monossílabos. É só quando ele finalmente explica o que estava acontecendo, que se envergonhava, que não sabia exatamente como resolver, e Sally naquele momento se vê tratada como uma adulta e uma igual, que eles se resolvem novamente. É depois dessa conversa que ela telefona para uma das amigas de escola com quem fora a Nova York, e menina que quer conversar apenas sobre trivialidades — no mesmo dia em que estiveram velando o cadáver de alguém querido a uma amiga. Sally corta a conversa com impaciência para logo depois declarar ao pai que o velório fora horrível, mas que só estivera lá para poder passear depois. Don responde que duvidava, e é fácil perceber que ele estava certo. Sally também parece considerar o que ele diz, declarando que é tantas pessoas diferentes logo depois.
Mad Men permite que Sally seja tantas pessoas, seja a versão de si mesma que apresenta para a mãe, para o pai ou para Megan, sua madrasta. Permite que ela seja a versão de si mesma que apresenta para Glen (Marten Holden Weiner), seu vizinho de longa data, ou a que ela apresenta para suas colegas de quarto e para o garoto bonitinho no hall do prédio chique onde Don mora. Permite que ela se preocupe com botas e sandálias, mas que também seja afetada por um velório. O roteiro da série permite que ela seja muito mais do que um mero acessório nas narrativas dos adultos que a cercam, tradicionalmente considerados mais importantes e relevantes. Matthew Weiner permite que Sally enfim enxergue com muita clareza a seus pais, numa maturidade que por vezes parece ultrapassar a deles. É notório que ela declare, logo antes de sair em uma longa viagem com outras garotas, ter esperanças de ser uma pessoa muito diferente dos pais, e que seu sonho é viver bem longe de ambos, num episódio em que os dois ficam ridiculamente lisonjeados com a atenção que recebem dos amigos adolescentes da filha.
Eventualmente Sally é obrigada a voltar para casa pelas circunstâncias, até porque nada na vida é tão simples, e nesse finzinho fica evidente a repetição de alguns dos trejeitos de Betty nela. Mas é na responsabilidade que a garota assume automaticamente com seus irmãos no momento necessário, é em saber que se existe uma pessoa com quem não pode contar, essa pessoa é seu pai, é em entender que o jeito frio e estoico de sua mãe não significa que ela não esteja sentindo dor, que Sally mostra uma maturidade admirável. São momentos que mostram que a garotinha que vimos crescer ao longo de sete temporadas e dez anos é alguém que tem a chance de ser mais feliz — e uma pessoa melhor — do que seus pais foram. Ao fim de Mad Men, a história de crescimento e amadurecimento de Sally Draper funciona como um formidável romance de formação: de uma personagem complexa, sólida e bem estabelecida, que era pessoas demais para ser apenas a pedra no sapato de seus pais.
Adorei o texto!!
Até hoje ainda espero a noticia de um spin-off de Mad Men sobre Sally Draper na década de 70. Haha
Isso seria fantástico.
Que texto sensacional. Mad Men é minha série predileta, e é maravilhoso ver como você pegou aspectos que tinham me passado meio despercebidos e mostrou como acontecimentos aparentemente soltos foram formando um personagem complexo e apaixonante. Parabéns, ow!
Que gostoso ler o que eu senti ao assistir à excelente série! Obrigada pelo texto!
Amei!!!!
Texto fantástico. Foi me trazendo de volta pros momentos da série (inclusive algumas que eu nem me lembrava mais). Me sinto obrigado a rever Mad Men depois dele.