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Personagens coadjuvantes e a falta da presença feminina nas aventuras

Frequentemente, quando lemos um livro, assistimos a um seriado ou nos envolvemos com algum personagem, encontramos uma certa base estrutural comum na história. Há um protagonista, um vilão, personagens ao redor dessas pessoas, o bem, o mal, aquele por quem torcemos até o fim e aquele a quem a gente sente prazer em odiar. Essas categorias são comuns em um tipo de narrativa que chamamos de jornada do herói, um jeito de contar histórias bem clássico no qual um indivíduo sai em busca de algo que pode mudar a sua vida e, obviamente, encontra obstáculos, mas depois os enfrenta bravamente.

A gente pode identificar essa estrutura em vários ambientes do entretenimento, principalmente em enredos mágicos, imaginários e contos de fadas. Esse tipo de narrativa é usado até hoje para ensinar lições de moral, dar alertas, passar ensinamentos à nossa sociedade. Além de ser uma forma mais fácil e lúdica de chamar a atenção para alguns assuntos difíceis de serem tratados, é através dela que se ilustra muito da realidade além da “nossa bolha”, permitindo assim explorar diferentes histórias e contextos.

Quem auxilia o herói?

Na jornada que o herói transpassa, muitas vezes ele tem ajuda de alguém mais: o coadjuvante, que, segundo o Dicionário Aurélio é a presença que acompanha o personagem principal atrás do objetivo final, sendo seu companheiro, ouvinte, confidente e raciocínio. Porque consumimos tantas histórias diferentes com tantos personagens complexos, comecei a pensar a fundo sobre os personagens coadjuvantes para analisar se existia alguma repetição nas relações entre eles e os heróis. Por isso, vamos aos questionamentos:

Será que os coadjuvantes das tantas histórias com que temos contato têm algum padrão de relacionamento e comportamento dentro das narrativas? Será que eles foram criados para influenciar as atitudes do herói ou só existem para desfocar a atenção da narrativa? Pensemos em alguns exemplos de coadjuvantes que conhecemos:

Harry Potter tem Hagrid; Tarzan tem Terkina; Quasímodo, o Corcunda de Notre Dame, tem as gárgulas; Mogli tem Balu; Shrek tem o Burro; Gru, de Meu Malvado Favorito, tem os Minions; Ariel tem Linguado; Branca de Neve tem os Anões; Cinderela tem os Ratinhos; Merida tem seus irmãos; Aladdin tem o Gênio; Edmundo, de As Crônicas de Nárnia, tem o rato Ripchip; Relâmpago McQuenn tem Matte; Sherlock Holmes tem Watson; Mulan tem Mushu; Percy Jackson tem Grover; além de milhares de outros exemplos.

O que todos eles têm em comum, olhando de uma forma superficial? A lealdade, o aspecto humorístico e um lado mais “humano”, por assim dizer. Mas o que isso tudo significa? Começando por esse aspecto da lealdade, poderíamos deduzir que os coadjuvantes são uma espécie de representação da consciência do herói. Eles são figuras que têm peso, opinião, personalidade de manipulação. Além de interagirem com o ambiente, criando novos aspectos dentro da narrativa, seu próprio universo particular se intercala com o que acontece na busca principal, aquela conduzida pelo protagonista. E isso nos leva a crer que sim, eles influenciam o desfecho da história, já que são agentes transformadores da busca junto do herói.

Mas o coadjuvante tem um aspecto que o herói não tem: a permissão para fracassar. E é exatamente por isso que ele pode representar aquela pontinha de “humanidade” que existe nas histórias, o pé no chão. Isso acontece porque idealizamos o herói como um personagem incrível, que nos salva de tudo e todos, que não erra. Já o coadjuvante pode ser esse outro lado da moeda, e que ajuda as pessoas a se identificarem quando se dão conta de que ninguém é perfeito.

No quesito bom humor, podemos tentar lembrar de todas as risadas que já demos com um coadjuvante. Seu papel se desenvolve conforme traz soluções diferentes em momentos difíceis ao analisar as coisas por outro ângulo. É ele quem ajuda a trazer um clima mais leve para grandes confusões, algo que todos identificamos de uma forma ou de outra (eu, por exemplo, me dei conta disso ao pensar na quantidade de personagens que Eddie Murphy dubla na televisão e cinema, sendo um deles o Burro Falante de Shrek, e também Mushu na versão de Mulan da Disney.)

Quem, exatamente, auxilia o herói?

É aqui que entra um terceiro questionamento sobre os coadjuvantes na jornada do herói: por que um número tão pequeno de coadjuvantes são mulheres, até mesmo quando a protagonista é mulher/menina?

Embora as personagens femininas também tenham se tornado personagens principais, alguns aspectos, como a fragilidade e a necessidade de resgate, foram incluídos em sua caracterização e transformaram totalmente a construção de tantas imagens femininas que vemos até hoje. Quando a personagem feminina não possuía esses aspectos, ela era automaticamente colocada na posição de vilã, representando o lado da tentação e do que era proibido. Para além disso, poucas histórias colocam uma persona feminina no lugar de coadjuvante em relação a outra mulher, talvez porque a cultura que nos cerca é a de competição entre as mulheres e, por isso, nesse contexto não faria sentido uma ajudar a outra.

Assim, conforme vemos no fenômeno da Síndrome de Smurfete (que discute o fato de as personagens femininas se encontrarem sempre sozinhas numa multidão de homens), a presença de mulheres poderosas como protagonistas, ou então como coadjuvantes de um herói masculino, com frequência ainda se resume à quantidade de uma mulher para vários homens. O universo Star Wars consegue representar muito bem essa visão. Mesmo com Rey (O Despertar da Força) e Jyn (Rogue One) como personagens principais na nova geração de filmes (sem falar de Leia e Padmé nas trilogias passadas), o seu universo continua rodeado, em sua maioria, por personalidades masculinas. Hermione (Harry Potter), Viúva Negra (Vingadores), Mulher-Maravilha (Liga da Justiça), Jessie (Toy Story), Doris (Looking), Fiona (Shrek), Anabeth (Percy Jackson), são outros exemplos. A impressão e conclusão que se tem é que sempre existe uma personagem feminina para a “cota de mulheres” do enredo — pelo menos uma pra que a história consiga sexualizar, ou então que serve para garantir que o público feminino também consuma aquela narrativa.

Outro ponto possível de observar é que, se pensarmos rapidamente, é bem possível que as únicas coadjuvantes mulheres que venham à mente sejam masculinizadas e companheiras de aventura de um personagem homem, o que faz total sentido frente ao que se construiu dentro da indústria cultural e de entretenimento. O meu maior exemplo é dentro do universo Disney, no filme Tarzan. Terkina é aquela amigona do peito, despojada, que está sempre com o “meninos” e que não tem medo de nada. Temos outros personagens, como Denise, em Master of None, sendo a melhor amiga de Dev há anos e a única personagem lésbica do show; 13, médica de House que era a única representante feminina na equipe e que era sempre desafiada por ter uma vida particular diferente dos demais; Charlie, em Supernatural, que durou tão pouco, mas que representou exatamente isso dentro da série — uma personagem lésbica no meio de muitos caras.

coadjuvantes

Nossas relações sempre serão pautadas também por aquilo que consumimos, e se essa for a única “verdade” a ser aprendida, esse padrão continuará a falhar com as mulheres. Depois de tantos anos de lutas por direitos iguais ou maior presença feminina no mercado audiovisual, os exemplos de rixa feminina e falta de sororidade ainda existem aos montes. Nesses últimos tempos já conseguimos ver algumas mudanças de paradigmas e uma maior amostragem de personagens mulheres que são amigas de verdade. Mas, infelizmente, exemplos problemáticos não faltam — pelo contrário, existem aos montes. Vide seriados como Gossip Girl, onde a competição constante entre suas personagens femininas as deixa quase malucas de tanto vai e volta, ou Greek, que também teve sua fase em que as meninas roubavam os namorados alheios e culpavam uma à outra sobre as mancadas masculinas, isso sem falar de todas as produção narrativas em que somente há uma personagem feminina em meio a todo um bando de homens.

A figura masculina que conta história e ganha as glórias de herói só tem real valor quando tem um coadjuvante à altura. E ainda hoje isso significa colocar mais um homem/menino nas histórias. Não é preciso dizer que isso não está certo, porque é óbvio — é por isso que tanto clamamos por produções com personagens mulheres se aventurando, descobrindo coisas diferentes e tendo mais e mais amigas de verdade ao lado, ao invés de terem sempre somente personagens homens como seus coadjuvantes. O que queremos, afinal, é visibilidade de verdade, é a real oportunidade de ser e fazer mais — e não ficar para sempre em terceiro plano.