Categorias: TV

Sobre nostalgia, comunidade e revisionismo: a tag da novela Esmeralda no twitter

O mundinho noveleiro no Twitter é um lugar interessante. Talvez seja um aftermath [resultado] de uma pandemia global, talvez seja o estado que nos encontramos como sociedade, talvez seja a natureza humana — o fato é que me peguei fazendo o que sempre abominei: sendo nostálgica.

Sempre achei a nostalgia brega e um tanto perigosa. Como mulher afro-brasileira sempre olhei para a romantização do passado como nefasta. Não há muita coisa boa para nós no passado. Eu odeio novelas de época, por exemplo. Não quero romantizar a família real portuguesa, não quero empatizar com o fazendeiro do vale do café. A volta dos looks dos anos 2000? Horrível, mas não apenas: não tinha uma menina com cabelo afro na revista Capricho, não tinha ninguém fora do padrão em Malhação.

Porém, abalos emocionais em ordem mundial acontecem e me peguei lembrando do passado com certa doçura. Não esqueci de nada, mas lembrei que existiram momentos de conforto em meio ao esgoto. A televisão me proporcionou muitas neuras sim, mas também alguns alívios. Revivi um deles esse ano e gostaria de compartilhar o que aprendi com essa volta ao passado.

Esmeralda

Quem viveu o início dos anos 2000 e era apaixonado por novelas sabe que essa foi uma época de ouro para as produções off-Rede Globo. A Record iria começar em alguns anos seus grandes sucessos como Prova de Amor (2005) e Chamas da Vida (2008), antes de embarcar em um caminho sem volta de mutantes e novelas bíblicas. Já o SBT tinha um grande contrato com a Televisa, emissora mexicana conhecida mundialmente pela exportação de novelas. Desse contrato de compras de textos e dublagens de novelas mexicanas combinando com a vida de atores globais para a emissora nasceu clássicos como Pícara Sonhadora (2001), Marisol (2002) e Canavial de Paixões (2003).

Mas a novela central para esse texto é Esmeralda, remake feito pelo SBT em 2004 de uma novela venezuelana de mesmo nome de 1970 e depois produzida pela Televisa em 1997. Assim que fiquei sabendo que o clássico protagonizado por Bianca Castanho estava reprisado nas tardes do SBT, corri para o Twitter. O fato é que assistir televisão depois dos anos 2010 virou outra coisa: o que já era uma ação comunal (quem não se lembra de comentar o último capítulo da novela com os colegas de classe/trabalho?) ficou ainda mais compartilhado com as redes sociais. Quem não trocou o avatar do Twitter na última semana de Avenida Brasil que atire a primeira pedra.

Sim, cheguei tarde para a brincadeira. Mas uma coisa que a pandemia me ensinou foi a usar a internet para falar com completos estranhos sobre aquilo que estou assistindo em tempo real. Isso não é nada novo, especialmente para os noveleiros. A bolha noveleira do Twitter já foi a bolha do Orkut que, por sua vez, já foi a bolha de fóruns especializados etc.

No caso de Esmeralda, eu sabia que não seria a única animada para assistir e não estava errada. A tag estava mais do que viva em outras pessoas que também estavam contaminadas pelo espírito da nostalgia. Esmeralda é uma história simples, dessas que emocionam quando estamos na pré-adolescência. Até agora, com a reprise terminada (com um grande corte de capítulos que só o SBT de Silvio Santos poderia proporcionar), não existe outra explicação para que ela funcione tanto senão a memória afetiva.

O remake de 2004 é bastante fiel ao texto de Delia Fiallo, de 1970. Mesmo os anacronismos não são alterados para se adaptarem à realidade dos anos 2000 — aparentemente, porque o contrato de aquisição do texto era bastante tradicional e não permitia muitas mudanças ao material original. Assim, uma história cheia de machismo, elitismo, racismo, capacitismo e outros tantos -ismos chegou quase sem alterações ao público brasileiro, agora ambientada no interior paulista ao invés da Venezuela ou do México.

De acordo com o site NaTelinha, a trama conta a história de amor entre Esmeralda (Bianca Castanho), uma moça com deficiência visual, e José Armando (Cláudio Lins), um rapaz de classe alta. No passado, eles tiveram suas famílias trocadas após o parto, mas o destino tem um plano para reunir os dois. E é isso. Com mais algumas subtramas regadas a muito, muito machismo. Quando cheguei na tag, achei que veria muita coisa pesada. Achei que veria pessoas torcendo para que o mocinho machista ficasse com a mocinha, que as pessoas iam relevar tudo em nome de um amor latino emocionado, mas tive uma grata surpresa.

Quase ninguém torcia pelo mocinho. Nada contra o ator: Cláudio Lins estava perfeito como José Armando — galã, educado, rico, médico. Completamente machista. Mas se em 2004 morríamos de paixão pelo médico bonitão, hoje ninguém compra o seu papinho close errado.

Não é pouco que José Armando faz Esmeralda passar. Em dado momento, Esmeralda sofre um suposto estupro por um dos vilões da história, quando estava desacordada, e acaba engravidando. Sem saber se o filho é seu ou fruto da violência sofrida pela moça, José Armando não só se separa de Esmeralda como não assume a criança. Ele só a “perdoa” quando escuta do próprio vilão que o estupro nunca aconteceu. José Armando não aceita ver Esmeralda ser independente, não entende porque a amada fica chateada com o fato dele não conseguir aceitar um bebê que pode ou não ser seu. Ou seja, um grande otário: tanto que, quando a Televisa fez um novo remake em 2017, agora intitulado Sin Tu Miranda, os autores fizeram alterações na história e Esmeralda acaba por não ficar com o mocinho tóxico no final.

Racionalmente, odeio tudo o que essa novela representa. não tem um reedeming factor [fator de redenção] fora ver a Lucinha Lins atuando. Mesmo assim, a nostalgia me faz gostar dela. Ela me transporta para 2004, tempos terríveis, mas que, de alguma forma, sinto saudades. Assistir a reprise acompanhada da comunidade noveleira do Twitter foi quase terapêutico: ter pessoas com quem falar mal de José Armando e perceber que tínhamos evoluído como sociedade desde 2004. Analisávamos os anacronismos (não havia Lei Maria da Penha naquela época? Onde estava a polícia do povoado?), os requintes de racismo que só uma fazenda no interior paulista pode proporcionar, o machismo não só do mocinho, mas praticamente de todos os homens da novela. Sem contar a história avassaladora de Graziela (Karina Barum) e Adrian (Daniel Andrade), os protagonistas morais da novela.

O capacitismo é outra fonte de discussões pertinentes. A protagonista da novela é deficiente visual e tudo o que se possa escrever de equivocado sobre sua vida está na novela. Novamente, é um texto de 1970, mas não tem como não perceber o quão anacrônico ele é e o grande desserviço que faz ao tratar a deficiência visual como um castigo, que é o caso do texto de Delia Fiallo.

Durante todo esse tempo em que a reprise esteve no ar nas tardes do SBT, uma pergunta ficava na minha cabeça: seria ético consumir esse tipo de mídia mesmo com contexto? Particularmente, mesmo assistindo e apontando todos os crimes contra a humanidade e falando mal do galã, sigo achando que talvez seja um desserviço. Ao mesmo tempo, sei que alguma coisa ali me fez gostar da novela em 2004 e em 2022. O que, precisamente, não sei dizer. Talvez o potencial da coisa. Talvez amaria uma versão da história adaptada para o contexto de hoje. Talvez, porque somos seres humanos que vivemos de nostalgia — não tenho uma resposta certa. O que sei é que assistir a produção do SBT de 2004 em 2022, acompanhada de desconhecidos no Twitter foi uma experiência antropológica que não estava esperando, que não me prometeu absolutamente nada, mas me entregou muito.

2 comentários

  1. Eu tive uma sensação bem parecida revendo Mulheres Apaixonadas no canal Viva, cheguei inclusive a escrever sobre essa experiência de tão interessante que ela foi. Obrigada por compartilhar seu texto maravilhoso conosco.

Fechado para novos comentários.