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O nome dela é Vanessa Freitas: uma estreia literária excelente para leitores contemporâneos

Por muito tempo, as histórias sobre pessoas LGBTQIA+ que se popularizaram na mídia carregavam uma série de estereótipos nocivos a uma comunidade já socialmente estigmatizada e acabavam exibindo uma lógica baseada no punitivismo do pensamento cristão ocidental. Era preciso que essas pessoas sofressem para que seguissem existindo, como se a penitência as autorizasse a estar entre as pessoas ditas normais — aquelas dentro de padrões cisheternormativos. Reclamações sobre esse tipo de narrativa são recorrentes entre membros da comunidade com uma consciência mais ampla sobre o poder das tramas para influenciar não apenas o que se pensa sobre pessoas LGBTQIA+, mas também o imaginário de possibilidades que se materializam na realidade.

Sofrimentos fazem parte da vida de qualquer ser humano, mas nem tudo que atravessa a existência de uma pessoa LGBTQIA+ tem relação com sua dissidência dos padrões e histórias — sejam elas livros, filmes, séries ou qualquer outro formato — raramente são contadas sem conflitos para mover a trama. Recentemente, porém, há um movimento de incentivo à criação de narrativas que enxerguem e criem oportunidades de ver essas pessoas sob outros prismas, ampliando a visão que se tem sobre elas. Autores jovens que também integram a comunidade têm trazido ao mundo cada vez mais histórias assim e a tendência do movimento é se fortalecer e se tornar maior à medida que a internet oferece mais ferramentas para que essas histórias cheguem a mais pessoas.

A literatura LGBTQIA+ nacional contemporânea tem alcançado bastante visibilidade e tem furado bolhas. Abraçado principalmente por um público mais jovem e desligado das tradições literárias — não as desconsiderando, mas buscando ressignificá-las ou recriá-las com um toque mais inclusivo —, o movimento tem encontrado nos e-books bastante espaço para crescer. A ampliação dessas leituras é visível quando olhamos a quantidade de livros, leituras, avaliações, comentários e seguidores de jovens autores do gênero em plataformas como a Amazon ou mesmo Wattpad.

Vanessa Freitas

Vanessa Freitas é uma das autoras que acabam de chegar para reforçar esse movimento. Tendo vários contos publicados em antologias e recentemente um último também presente na Amazon, a escritora do Rio de Janeiro estreou seu nome no ranking de vendas da Amazon com o romance O Nome Dela é Sophia. Lançado em 2012, o livro segue a mesma proposta do movimento e conta uma história envolvente que não tem como ponto principal a identidade das personagens principais enquanto integrantes da comunidade LGBTQIA+, ainda que não ignore discussões sociais e políticas ligadas à sexualidade, gênero, classe e raça.

A trama é narrada por Priscila Ramos, uma jovem atriz em ascensão. Em seu primeiro papel de maior destaque, Priscila — que se tornou famosa por interpretar as genéricas “vizinha gostosa” e “gostosa de academia” — ainda tem que lidar com a hipersexualização de seu corpo aberta e descaradamente comentada nas redes sociais. Em tempos de internet, uma atriz não é apenas uma atriz; ela precisa também estar nas redes sociais fazendo publicidade de marcas interessadas em influenciar o maior número de seguidores das pessoas famosas. Mas a presença on-line não é apenas uma obrigação de trabalho, porque mexe pessoalmente com a autoestima e o emocional da protagonista. Ainda que papéis que destaquem seu corpo garantam a ela para interpretar e contratos com marcas, seu destaque na mídia é motivo de conflito interno e externo e, inevitavelmente, um impulsionador de atritos com sua mãe, uma mulher religiosa com quem a relação de Priscila não é muito boa. Além de ter a bissexualidade ignorada e reprimida por parentes, seu único apoio na família — Gabi, sua irmã mais nova que é cabeleireira no subúrbio carioca — tem outras preocupações: ela é mãe solo da pequena Luiza e muitas vezes Priscila, que se mudou para um bairro diferente depois da fama, encontra na geografia e na cultura diferente do lugar que deixou obstáculos que também a afastam da irmã.

O primeiro papel de destaque de Priscila é em uma emissora pequena e, embora a trama não seja boa e tenha muitos defeitos morais que já a incomodam, as incoerências e preconceitos da equipe da novela se escancaram quando a trama coloca uma mulher trans em um papel estereotipado. É nos bastidores das gravações que Priscila conhece Sophia, que na realidade caminha em sentido profissional quase contrário: famosa na internet por suas maquiagens artísticas, ela está em seu primeiro papel na TV. Sophia tem que lidar com um tipo de assédio diferente daquele que vive Priscila, já que Sophia é uma mulher trans. Ainda assim, a dor de Sophia é sentida pela protagonista que já entende a própria sexualidade e sabe que o que acontece com a nova colega de elenco não é justo.

Explosiva e impulsiva, Priscila acaba gerando um primeiro encontro conflituoso entre as duas. Mas depois de entenderem o ponto de vista e as reações uma da outra em relação às situações de preconceito e discriminação vividas, as atrizes se aproximam e, da afinidade que tem uma com a outra, vai crescendo uma atração que não se sabe se será correspondida. Quando começam a demonstrar interesse pela companhia uma da outra, Priscila narra suas incertezas quanto à sexualidade de Sophia, mas as duas acabam por se revelar interessadas uma pela outra. E, de maneira fácil e livre, elas entram em um relacionamento que fica oculto do público, até que as duas são pegas por fotógrafos que expõem a sexualidade e a relação entre as atrizes a contragosto.

A exposição pública do relacionamento acarreta em diversas questões que vão revelando e relembrando inseguranças e questões demonstradas anteriormente através da narrativa em primeira pessoa. Priscila e Sophia são muito diferentes uma da outra. Suas origens culturais, suas classes sociais, suas percepções políticas do mundo e tantos outros pontos são motivos de conflito que surgem no contato entre elas, que sofre com novas camadas de pressões após o relacionamento se tornar um escândalo para uma sociedade conservadora como a nossa. As pequenas e grandes violências virtuais e diretas sofridas pelas personagens acabam sendo gatilho para explosões e mais atrito entre as duas, que já têm pontos de vista muito diferentes em relação aos conflitos com que lidam.

O interessante da trama traçada por Vanessa Freitas é que muitas dessas tensões são elaboradas lentamente, com uma ou outra pista deixada ao longo da história e que mais tarde acabam retornando com mais força, revelando que as pequenas pistas de comportamentos eram na verdade pontas de icebergs emocionais profundos, que em alguns momentos causam acidentes trágicos nas superfícies.

A história escrita por Vanessa Freitas é muito mais do que um drama sobre um relacionamento. A trama passa por questões psicológicas sem fugir de todas as implicações sociais que causam e surgem a partir das imaturidades das personagens. O mais bonito em O Nome Dela é Sophia é justamente perceber que as personagens, por mais carismáticas e bem intencionadas que sejam, são humanas, e, sendo assim, apresentam muitas falhas. Não esconder as falhas ou criar pessoas moralmente perfeitas para protagonizar as histórias é justamente o que permite que autores consigam se aprofundar na alma humana. E, numa história com protagonistas LGBTQIA+ essa visão honesta e imperfeita permite que se veja mais em Sophia e Priscila do que a maneira como se identificam. Obviamente, uma narrativa consciente sabe que é politicamente impossível narrar uma história de amor entre uma mulher trans lésbica e uma mulher cis bissexual sem perpassar as questões da identificação LGBTQIA+ e os reflexos de crescer sabendo-se diferente do padrão esperado pela sociedade. No entanto, um dos grandes méritos de Vanessa Freitas é tornar esses pontos apenas mais algumas das questões que as definem — como de fato é o que acontece na realidade e deveria ser mais recorrente: ter uma identidade de gênero ou uma sexualidade dissidente da norma não deveria ser o centro das questões da vida de ninguém.

Tanto Priscila quanto Sophia têm passados familiares difíceis e essas questões permitem que discussões sobre abusos na família se abram, revelando mais e mais camadas de hipocrisia da nossa sociedade. As diferenças entre Priscila e Sophia acabam se mostrando também um bom recurso narrativo para tratar essas questões. Enquanto a narradora tem um entendimento prático de várias dificuldades, sua namorada tem de outras, e o modo como compreendem as questões uma da outra em relação ao mundo acaba por trazer uma visão completa e ampla da sociedade em si.

Ao invés de se focar nos sofrimentos que poderiam destruir a humanidade das personagens, Vanessa Freitas opta por se concentrar nos processos de amadurecimento de ambas diante dessas dificuldades. Priscila vai se resolvendo com a mãe — que, além do fanatismo religioso, tem um segredo complicado do passado que apenas a filha mais velha conhece — e também aprende a lidar melhor com o olhar sexualizado sobre ela, até se livrar dele em momentos importantes. Sua agressividade e impulsividade vão se amenizando com a terapia à qual recorre quando seus conflitos já não se resolvem com os seus recursos disponíveis. Já Sophia vai curando suas mágoas e cuidando de pendências do passado em relacionamentos anteriores e traumas. Alguns desses desenvolvimentos surgem porque as duas estão juntas, e outros acontecem enquanto estão juntas ou tentando estar, o que dá a cada parte do casal uma individualidade importante e cada vez mais madura.

O tempo é um fator crucial para que a narrativa mostre tal maturidade. Não apenas o tempo de leitura — que pode ser curto para leitores mais velozes, mesmo que o livro seja longo, já que os ganchos deixados em cada capítulo nos prendem à tela de leitores digitais —, mas também o tempo que acompanhamos da vida das personagens é longo. Seguimos Priscila e Sophia por um período de quase quatro anos, ainda que com intervalos. A esperança e a paciência são fatores importantes para o amadurecimento e, no livro, ele não é negligenciado. Pelo contrário, ele é respeitado como parte do processo de entendimento e desenvolvimento das personagens. Diferente de autores que se apressam para dar aos leitores um final feliz, Vanessa Freitas se preocupa em resolver cada dilema das personagens, respeitando e humanizando seus problemas, mesmo os que possam parecer complicados demais.

Sem revelar muitos detalhes, pode-se dizer que não apenas a resolução dos conflitos é eficaz e realista, mas também é bonita, porque as personagens — mesmo com todos os erros, falhas e conflitos — são movidas pelo amor que sentem uma pela outra e pelo desejo de encontrarem amor e respeito também em quem as cerca. O amor se mostra nos diálogos respeitosos, compreensivos e pacientes das duas quando as emoções já não estão tão afloradas — mais um mérito de Vanessa Freitas, que escreve com sabedoria, leveza e emoções verossímeis os diálogos de reconciliação.

É também o afeto que faz com que outras pontas da trama se fechem, e isso é muito importante em uma trama LGBTQIA+ porque por mais que dificuldades — relacionadas à sexualidade, identidade de gênero ou à própria vida — surjam, ninguém ali está sozinho em sua condição. As redes de apoio das personagens vão se mostrando fortes e acolhedoras à medida que os conflitos surgem. E este cuidado também é um sinal de escrita responsável e madura, ainda que a carreira de Vanessa Freitas seja tão recente.

O Nome Dela é Sophia é um marco da literatura LGBTQIA+, condizente com uma visão realista e otimista, livre das amarras e condicionamentos que a sociedade deseja impor sobre as histórias deste grupo. Além de tudo, o livro é uma ótima leitura, intrigante e com personagens bem construídos lidando com uma trama bem pensada e costurada com linhas de leveza entre pontos doloridos. E, algo que é importante e marcante: um final catártico e simbólico para aqueles que se veem como parte da comunidade contemporânea LGBTQIA+.


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