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O fenômeno What We Do in the Shadows

Antes de levar o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por Jojo Rabbit, dirigir Thor: Ragnarok, ser responsável por Love and Thunder, que estreia em 2022 e vai levar Jane Foster às telas do cinema, e até mesmo ganhar sua própria trilogia de Star Wars, o neozelandês Taika Waititi escreveu, dirigiu e estrelou What We Do in the Shadows, ao lado de Jemaine Clement. Com o formato de falso documentário, ou mockumentary se você preferir, o longa chegou em 2014 e mostra a vida de três vampiros velhos, isolados e tradicionalistas que vivem no subúrbio da Nova Zelândia, acompanhando a rotina deles e suas dificuldades para se adaptarem em uma sociedade moderna. O filme é, sem nenhuma dúvida, uma das melhores produções de comédia dos últimos tempos. Engraçado, divertido e complemente autoconsciente com a mitologia dos vampiros em si e as possibilidades que ela traria para uma sátira, Waititi criou o que seria o começo de um universo expandido que, apesar de não ser incrivelmente popular, é muito satisfatório. E talvez por causa do seu sucesso com suas obras da Marvel, ou apenas porque o material ali é simplesmente muito precioso para ser desperdiçado, a emissora FX deu o sinal verde para que outras produções como a primeira fossem produzidas.

O resultado é uma série que carrega o mesmo nome do filme de 2014. Mas quem estrela dessa vez são Nandor (Kayvan Novak) e o casal Nadja (Natasia Demetriou) e Laszlo (Matt Berry), três vampiros que vivem em Staten Island, Nova York. Eles também têm a companhia de Guillermo (Harvey Guillen), o familiar de Nando, e Colin Robinson (Mark Proksch), um vampiro de energia (uma sacada genial). O formato é basicamente o mesmo e mostra a dificuldade deles em se adaptarem ao mundo moderno mas, por se estender em dez episódios e não apenas pelas duas horas habituais de um longa, o leque de possibilidades do que dá para ser feito se expandiu de forma considerável. O resultado é brilhante e apesar da primeira temporada ter passado despercebida pela maioria dos votantes do Emmy, esse ano uma indicação para Melhor Série de Comédia chegou de forma quase surpreendente — e, arrisco a dizer, leva a franquia a outro patamar.

What We Do in the Shadows concorre ao lado de séries incrivelmente maravilhosas, como a popular The Marvelous Mrs. Maisel e a veterana Curb Your Enthusiasm. Ela também aparece junto de Insecure (que entregou sua melhor temporada até então), a ultra realista e sombria Dead to Me e até mesmo de Schitt’s Creek, uma das melhores séries dos últimos anos, com arcos perfeitamente orquestrados para todos os seus protagonistas. A lista também contém The Kominsky Method, que preferimos ignorar. No meio dessa mistura de produções incríveis (ao contrário das categorias de drama), o que fez, então, com que What We Do in the Shadows se destacasse?

Atenção: este texto contém spoilers!

A história do mockumentary começa contando como Nandor, Nadja e Laszlo chegaram da Europa para os Estados Unidos. Com costumes bem datados, que refletem até mesmo na forma como eles se vestem, os três saíram da sua zona de conforto com um objetivo em vista: conquistar o novo mundo. Mais de 200 anos depois, no entanto, eles não poderiam estar mais longe disso. Na segunda temporada de Buffy, the Vampire Slayer, o — até então — vilão Spike (James Marsters) diz que os vampiros gostam de “falar muito”. Sua teoria é que eles dizem que gostariam de colonizar e acabar com o mundo mas que, no geral, eles gostam de viver lá. “Eu gosto desse mundo. Ele tem corrida de cachorros, o time Manchester United e pessoas andam para lá e para cá como se fossem McLanches Felizes”, ele diz. E foi nesse discurso que pensei quando comecei a ver a série. Apesar deles claramente terem certa dificuldade em se adaptar a forma como as coisas são nos dias atuais, os três parecem aproveitar cada momento de conforto e privilégios que os vampiros têm uma sociedade como a nossa. Quanto mais eles dependem de Guillermo para absolutamente tudo, mais eles colocam os pés pelas mãos. E a primeira temporada foca justamente no fato de que eles são ambiciosos e prepotentes tanto quanto são egoístas e inadequados.

A segunda temporada chega mais ou menos com a mesma proposta, mas com uma confiança maior para ousar dentro do seu próprio escopo. É possível perceber o quanto as coisas ficaram mais ambiciosas em episódios como “On the Run”. A premissa aqui é simples. Laszlo reencontra um vampiro chamado Jim, que aparece para fazer uma cobrança de uma dívida que ele nunca quitou. Ao invés de ficar e encarar seus problemas, o inadequado Laszlo — que grita “BAT” toda vez que vai se transformar em um morcego — resolve simplesmente fugir e criar uma nova identidade para si: um dono de bar humano chamado Jackie Daytona, que ama vôlei e treina o time local. Para disfarçar sua aparência, ele usa apenas um colete simples e um palito de dente (e isso parece funcionar sem maiores problemas). E ah, claro, Jim é interpretado por Mark Hamill — que parece estar tendo uma das maiores diversões da sua carreira (ele é um fã assumido da produção, tendo várias vezes já falado sobre a mesma no seu Twitter).

O episódio é um dos melhores da temporada e, apesar de uma premissa simples, é a forma como o roteiro incorpora a personalidade narcisista e até meio canastrona de Laszlo que faz as coisas funcionarem tão perfeitamente, em uma narrativa que se torna até um pouco ambiciosa, mesmo que não se leve nem um pouco a sério. Esse mesmo conhecimento profundo da natureza dos personagens é algo que pode ser visto também em outros episódios. No capítulo “Brain Scramblies”, eles vão até uma festa do Super Bowl achando que é sobre uma Superb Owl [coruja suprema] e que de alguma forma eles vão poder apreciar essa coruja. Apesar da premissa em si já ser absurda e ridícula o suficiente, Nadja descobre uma senhora na casa que ela costumava infernizar quando era criança e que ela tem um colar seu que procura faz séculos. Tudo ali serve para reforçar a personalidade cínica e autocentrada da personagem, que não hesita em tentar pegar o que é seu de volta. No final, no entanto, ela apenas desiste. “Resgato quando eles estiverem mortos.” Essa frase frisa um retrato de pessoas imortais que já viveram tanto que acabaram ficando um pouco entediados no processo. Um tédio que, devo acrescentar, funciona muito bem para a estrutura da série em si.

What We Do in the Shadows

No começo, costumava me incomodar o fato de Nadja ser basicamente a única personagem feminina recorrente na série. Mas, ao entender mais sobre a sua personalidade, e como ela vê seu próprio empoderamento individualista, faz sentido dentro do que a narrativa se propõe. Nadja é amoral, cínica e talvez a mais absurda de todos eles, mas é também a melhor personagem de What We Do in the Shadows, de longe.

Em “The Curse”, os três vampiros entram em uma espiral de loucura após receber um e-mail de um “Mailer Daemon” passando a maldição da Bloody Mary para frente. Assim como a maioria das correntes que nascem na internet, eles têm que mandar a mensagem para outras pessoas antes que a maldição recaia sobre os mesmos. Esse roteiro, em específico, reforça a personalidade quase ingênua de Nandor — que apesar de ser um vampiro com mais de mil anos, não consegue lidar com pequenas coisas do dia a dia e depende de Guillermo para absolutamente tudo. É interessante perceber como as criaturas da noite, os vampiros, que supostamente são superiores aos humanos, têm dificuldade para assimilar detalhes e, apesar de terem personalidades que contêm sarcasmo, cinismo e outros componentes como esses, são alheios aos mesmos quando eles aparecem ao seu redor.

Às vezes, existe a sensação de que What We Do in the Shadows tem coincidências demais no roteiro e que algumas piadas se prolongam muito para serem realmente engraçadas. Mas tudo isso é proposital e serve para criar uma sensação de desconforto entre os personagens e as pessoas que estão conduzindo o documentário em si. Tudo isso só alimenta a estranheza pelo qual a série se sustenta e triunfa. A produção é extremamente divertida, com personagens carismáticos e, no final, muito (muito) ridícula. Parte do seu charme é justamente essa mistura de misticismo com coisas mudanças, a “logística” de ser um vampiro, ao que é reforçado pela presença de Guillermo e do próprio Colin.

What We Do in the Shadows

É engraçado perceber que todas as situações absurdas acontecem entre os três vampiros protagonistas, e não com Colin ou Guillermo. Esse último, inclusive, tem um dos arcos mais interessantes de acompanhar durante as duas temporadas. Quando a série começa ele é apenas um familiar e sua história não é nada mais do que uma tragédia. Ele acabou indo trabalhar para os vampiros com principal objetivo de servir Nando para que um dia ele fosse transformado pelo “mestre” e pudesse desfrutar dos prazeres da vida imortal. Mas Nando não parece muito interessado em ajudá-lo e, assim como muitas pessoas na vida real, Gizmo sofre com péssimas condições de trabalho. Ele dorme em uma cama velha, recebe pouco pelo seu trabalho, não tem nem um dia sequer de folga e é constantemente abusado pelos três vampiros, mesmo que ele apenas sirva a Nandor (não que isso seja uma justificativa). Mas, no final da primeira temporada, as coisas tomam um rumo inesperado: ele descobre que tem sangue de Van Helsing correndo nas suas veias e, por isso, é um caçador de vampiros. Da noite para o dia, ele entra em contato com seus poderes e apesar de lutar com todas as forças contra isso, acaba desenvolvendo os mesmos. Ele se infiltra em um grupo de amadores que tem como principal objetivo caçar vampiros (mesmo alegando que seja para salvar seu mestre) e nessa jornada acaba criando um pouco de autoestima e percebendo que, talvez, Nandor não seja um mestre muito bom — ou que ele sequer pretendia transformá-lo em um vampiro.

É óbvio que isso muda a dinâmica dos seus dois de forma drástica e Guillermo ameaça abandoná-lo mais de uma vez, sendo que Nandor começa a fazer pequenas mudanças na forma como ele trata o seu familiar, seja por uma dependência bizarra dele ou simplesmente porque por trás daquela postura canastrona de um vampiro com mais de mil anos, ainda existe um pouco de humanidade dentro dele. Como se, de certa forma, ele tivesse se apegado ao seu servo, ainda que lhe custe admitir. Todas as explanações de poder de Gizmo são incríveis e uma coisa fica clara quando chega o fim da segunda temporada: ele é o protagonista dessa história. Apesar de Nadja, Laszlo e Nandor serem os objetos do documentário que dita a obra em si, é um humano familiar que dedicou sua vida a servir vampiros com esperança de se tornar um, mas acabou se tornando um caçador, é que brilha como o papel central. É difícil prever para onde Guillermo vai a seguir, mas existem infinitas possibilidades para o seu arco narrativo — e isso é animador.

Apesar de Colin Robinson não ter um arco específico de crescimento, como acontece com Guillermo, sua presença na segunda temporada também foi bem mais marcante. Sempre achei a sacada do vampiro de energia bem interessante desde o começo, mas liguei pouco para seu espaço dentro da narrativa. Isso muda um pouco agora. Colin é uma pessoa que está sempre por perto, preparado para sugar suas energias e triunfar diante disso. Ele mora em um quarto no porão e passa grande parte do seu tempo apenas espreitando pela casa (e pela sua vida) esperando uma oportunidade para se aproveitar das picuinhas infantis dos três vampiros, ou qualquer drama que eles estejam envolvidos na hora. E é impressionante como ele é mais esperto (e melhor no que faz) do que os protagonistas. Isso fica claro durante a maior parte dos episódios, mas principalmente em três deles. Em “Colin’s Promotion”, por exemplo, o personagem ganha uma promoção no trabalho e percebe que, pela primeira vez na vida, as pessoas têm que escutá-lo, por causa da sua posição. Ele usa isso ao seu favor e cria um ambiente completamente infernal onde abusa da sua posição e seus poderes para ganhar ainda mais força. É uma explicação bem interessante do porquê todos os escritórios têm aquela essência deprimente embutida em si. Já em “The Return”, ele aparece usando seu tempo para infernizar e fazer comentários preconceituosos nas redes sociais. Cada vez que alguém rebate seus comentários, ele suga um pouco de energia. No final, ele arranja confusão com um troll de internet que acaba sendo literalmente um troll, sendo que mais uma vez a série mistura as linhas do real com fantasia. E, por fim, em “Collaboration”, quando ele se intromete na parceria musical de Laszlo e Nadja (Laszlo and Nadja, the Human Music Group) para colocá-los em um palco na frente de humanos e conseguir sugar toda a infelicidade dos mesmos após verem as composições de ambos.

What We Do in the Shadows

Para um personagem que está constantemente à sombra dos outros, a narrativa cria uma forma de trazê-lo para o centro sem necessariamente tirá-lo do seu status quo. O que faz toda a história do vampiro de energia se tornar ainda mais fundamental para fazer a série funcionar e criar aquele tom de “família disfuncional”.

Não é atoa que atores como Evan Rachel Wood, Tilda Swinton e até mesmo Wesley Snipes (o próprio Blade) já quiserem fazer aparições na série. No dicionário, fenômeno é descrito como uma “manifestação, sinal, sintoma: fenômeno da natureza. Tudo o que está sujeito à ação dos nossos sentidos, ou que nos impressiona de um modo qualquer”. Fiquei em dúvida se uma palavra tão grandiosa quanto essa poderia ser aplicada no caso de What We Do in the Shadows e depois de alguma consideração, levei em conta que sim. A franquia, que começou apenas como um mockumentary com um público fiel, porém pequeno, agora é todo um universo expandido. Não só isso, como sua série mais recente recebeu uma improvável indicação ao Emmy, com outras produções que são excelentes no que se propõem. Então, sim, eu diria que estamos diante de um pequeno fenômeno da cultura pop. Com alguma sorte, a série ainda tem uma longa jornada pela frente e mal posso esperar para ver o que o futuro reserva para Nadja, Laszlo, Nandor, Colin e Guillermo. Com certeza será algo bem absurdo e extremamente ridículo.

Quem diria que a versão gótica e vampiresca de The Office seria algo tão prazeroso de acompanhar.