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Saúde mental e cultura pop: um bate papo com a psicóloga Emanoella Ruffo

Antes mesmo que escolhesse a Psicologia como profissão, Emanoella Ruffo já conhecia o impacto que a terapia poderia ter na vida de uma pessoa: na adolescência, ela mesma já havia se submetido ao tratamento e sabia que os efeitos podiam ser muito significativos — o que, mais tarde, também viria a influenciá-la na escolha da carreira. “Na época de escolher um curso, Psicologia sempre foi uma das minhas opções; eu gostava da ideia de poder trabalhar com pessoas em sofrimento mental e ajudá-las a encontrar uma forma de lidar com seus problemas”.

Natural do Paraná, Emanoella formou-se no final de 2013 na Universidade Estadual de Maringá e há quase cinco anos trabalha com psicoterapia de orientação analítica, tanto no setor público quanto no privado. Desde julho deste ano, ela também tem dedicado parte de seus esforços à produção de conteúdo para redes sociais, na tentativa de desmistificar e conscientizar mais pessoas sobre a atuação da psicologia e a importância dos cuidados em saúde mental, além de promover a ruptura com estigmas associados a transtornos de origem psicológica — assuntos destrinchados em nossa conversa, onde também falou sobre o papel de produções culturais na quebra de paradigmas e a recente onda de conteúdos online a respeito de transtornos como a depressão e a ansiedade, e saúde mental de maneira geral.

Queria começar essa conversa falando sobre uma questão que pode parecer simples, mas que desperta dúvidas em muita gente, que é sobre a terapia em si. O que ela busca, como funciona, quais as diferenças básicas entre as diferentes vertentes da psicologia? Você pode explicar um pouco pra gente? 

EMANOELLA RUFFO: O objetivo de todas as psicoterapias, independente da abordagem do profissional, é fazer com que a pessoa encontre uma forma mais saudável de lidar com o sofrimento e também encontrar uma maneira individual de entender os próprios desejos e ansiedades, e tomar decisões. É um processo que tem como fim desenvolver a autonomia da pessoa nas suas relações e isso significa que o psicólogo não pode trabalhar como um professor ou seguindo a ideia de um médico com uma “receita” para a felicidade e para a solução de problemas. O psicoterapeuta está ali como um mediador, alguém que pode ouvir a pessoa sem censuras e estimular que ela encontre suas próprias soluções.

As primeiras psicoterapias partiram da ideia de cura de quadros de doenças psíquicas através da fala sem censura e eu acredito que essa imagem ainda é a mais popular no imaginário das pessoas — o paciente deitado em um divã que fala praticamente sozinho. Essa é a terapia psicanalítica mais tradicional e, a partir dela, outras abordagens foram sendo desenvolvidas. Aqui no Brasil, as abordagens mais comuns são as psicoterapias psicodinâmicas, centradas na conversa e na compreensão da história de vida e dos pensamentos do indivíduo com o objetivo de que ele chegue ao entendimento dessas situações e os motivos que lhe causam sofrimento; e as terapias que se desenvolveram a partir da teoria comportamental, que focalizam no aprendizado de novas formas de agir e pensar em substituição a antigas ideias e atitudes que não funcionam muito bem. É uma linha teórica que se utiliza da conversa, mas também pode incluir outras atividades que estimulem e reforcem a construção de outros modos de se relacionar com o ambiente. Embora as terapias individuais sejam mais conhecidas, também existem terapias em grupo ou familiares, que visam entender os problemas existentes dentro daquele contexto grupal, e também psicoterapias de tempo limitado em contraste aos processos psicoterapêuticos mais longos.

Hoje, quais os motivos mais comuns que levam as pessoas a buscar a ajuda de um psicólogo? 

E.R: Acho que os maiores motivos ainda são quadros de depressão e ansiedade. Nem todas essas pessoas são diagnosticadas segundo critérios médicos, mas são muito comuns os sintomas mais característicos dessas doenças, como o desânimo, a baixa autoestima e pensamentos ansiosos que acabam afetando e prejudicando as pessoas em seus respectivos contextos. Existe também uma grande busca por acompanhamento psicológico no caso de crianças, normalmente por mau comportamento ou agitação excessiva.

E como fazer a escolha do profissional? Como saber se ele é, de fato, adequado às necessidades particulares de cada um? 

E.R: O psicólogo utiliza teorias e técnicas diferentes para realizar o seu trabalho, mas a capacidade de ser empática e sensível também é uma ferramenta na sua prática. Por mais que exista uma preocupação das pessoas em entender se uma abordagem é melhor ou mais eficaz do que outra, é importante perceber que todas elas têm os mesmos objetivos de aumento da autonomia e diminuição do sofrimento. Levando isso em consideração, a escolha de um profissional pode ser feita com base no vínculo que se estabelece entre a pessoa e o psicólogo, que pode ser observado desde o primeiro contato e que é muito importante para o desenvolvimento da psicoterapia. Algumas pessoas, por exemplo, se sentem mais dispostas a falar, outras a realizar atividades práticas e essas questões também dizem respeito a preferências pessoais que podem fortalecer ou enfraquecer a relação entre profissional e paciente.

Por conta das diferentes abordagens, o Conselho Federal de Psicologia não oferece critérios especificando como deve ser a psicoterapia, nem um jeito “certo” ou “errado” de fazê-lo, mas algumas atividades vão contra o código de ética da profissão, como o uso de técnicas sem reconhecimento científico (práticas que envolvam fé ou misticismo, por exemplo) ou a indução de determinadas crenças políticas, filosóficas ou morais. Infelizmente, já tive relatos de pessoas que procuraram a psicoterapia e foram orientadas a buscar por religião, participar de terapias alternativas contra sua vontade ou que receberam conselhos de como agir segundo a visão pessoal do psicoterapeuta, o que foge completamente à ideia de que a pessoa que busca a terapia desenvolva suas próprias formas de enfrentar dificuldades. O fato de que os profissionais, por muito tempo, não informaram ao público sobre a atuação da psicologia e os limites dela também é um problema até hoje e abriu margem para crenças populares de que o trabalho do psicólogo envolve aquilo que é místico e desconhecido, uma questão que precisa ser mais discutida. Em situações que ferem a ética da relação profissional, no entanto, é importante que as pessoas informem e registrem reclamações junto aos Conselhos Regionais de Psicologia, que têm a função de fiscalizar e avaliar a conduta dos profissionais para que o exercício da profissão se dê da melhor e mais ética forma possível.

Quando você fala sobre a falta de informações e como isso abriu espaço para crenças equivocadas sobre a profissão, a primeira coisa que me vem à cabeça é justamente a opinião muito comum de que terapia é “só” uma conversa e que o trabalho do psicólogo é dar conselhos ou brincar com as crianças que atende. Você acha que isso, de alguma forma, pode acabar afastando as pessoas que precisam da ajuda desses profissionais? 

E.R: Penso que parte do papel do psicólogo é trazer às pessoas o conhecimento sobre o que é o processo psicoterapêutico exatamente para que crenças incorretas e preconceitos possam ser superadas. Outra ideia incorreta muito comum é a de que psicólogo é “médico de louco”, o que alimenta tanto um estigma sobre as pessoas que procuram o tratamento quanto a resistência de quem sofre por diversas razões, mas sente que buscar ajuda especializada seria algo fora do normal.

Além disso, com seus objetivos de analisar as condições que levam a pessoa a determinado quadro de sofrimento e a desenvolver diferentes formas de enfrentamento dessas condições, o trabalho do psicólogo não apresenta resultados instantâneos. É um processo que leva algum tempo e em uma cultura imediatista como a nossa, que tem dificuldade em valorizar o processo, essa ausência de progresso imediato pode ser lida como uma evidência de que o trabalho não é eficaz. No entanto, há pesquisas que estudam e validam os resultados da psicoterapia — e que poderiam ser mais divulgadas. Nesse sentido, minha visão é de que os psicólogos ainda precisam trabalhar mais em conjunto para esclarecer esse tipo de mito e fortalecer a importância do seu trabalho.

Essa ânsia por resultados instantâneos é muito perceptível, de fato. Conheço pessoas que, inclusive, foram diagnosticadas com transtornos mentais, mas sempre fizeram acompanhamento somente com o médico psiquiatra, por exemplo. A ausência de um acompanhamento psicológico em paralelo pode ser prejudicial ao paciente nesses casos?

E.R: A formação dos médicos no Brasil tem um enfoque grande nas práticas diagnósticas e curativas, e não conheço muitos psiquiatras habilitados em algum tipo de psicoterapia, que possibilitem ao paciente entender o que lhe causa sofrimento e transformar sua situação. O tratamento medicamentoso é muito importante nos casos mais graves de transtornos mentais, mas sem o acompanhamento psicoterapêutico, não é a melhor forma de tratamento. Vale lembrar que muitos dos medicamentos usados possuem efeitos colaterais a curto ou longo prazo, e essa modalidade de cuidado, salvo em casos específicos, não deve ser entendida como o tratamento principal. Em pacientes com ansiedade, por exemplo, a medicação é muito eficaz em controlar crises e permitir que a pessoa consiga retomar um estado mais tranquilo para fazer suas atividades do cotidiano, mas os padrões negativos de pensamento permanecem, e é neles que o psicólogo atua de modo a promover uma melhora a longo prazo, que permita ao paciente tanto receber alta do tratamento psicológico quanto diminuir a dosagem de remédios. Os medicamentos costumam ser buscados com mais frequência pela rapidez com que agem no organismo, mas é um consenso entre os profissionais da saúde que eles não devem ser entendidos como a única cura para quem está em sofrimento mental intenso.

Se por um lado, muitos falam sobre a terapia como uma experiência capaz de mudar vidas, na contramão, existem aqueles que têm uma impressão negativa sobre esse tipo de tratamento e que desacreditam de sua eficácia — às vezes, dentro de seu contexto específico, outras vezes de maneira geral. Quais motivos podem levar a esse tipo de conclusão?  

E.R: Mais uma vez, me ocorre que vivemos em uma sociedade bastante imediatista, que espera por resultados quase que instantâneos, eficientes e tão milagrosos como o Google. O processo psicoterapêutico mais tradicional, que se estende por um número aberto de sessões, é organizado de forma a estabelecer um bom vínculo entre o psicólogo e a pessoa, compreender sua história de vida, suas dificuldades e buscar entender quais aspectos da personalidade do sujeito estão sendo benéficos ou prejudiciais, além de traçar estratégias para a mudança. Ainda não temos um algoritmo tão eficiente para pesquisar e decifrar nossas próprias emoções, e decodificar as coisas que pensamos e falamos (ou calamos) leva mais tempo do que estamos acostumados a esperar. Além disso, para a maioria das pessoas, a terapia consiste em uma forma de tratamento que só deve ser buscada quando nos sentimos mal por um tempo longo demais. A Psicologia é um campo do conhecimento que obtém destaque no cuidado de alguns transtornos comuns atualmente, mas ela também é uma ciência que oferece às pessoas um potencial de transformação de suas realidades, o que é muito mais poderoso do que apenas regular aquilo que não vai bem. Acho que a ideia de que a terapia é demanda apenas de um público específico é decorrente desta associação do psicólogo com a doença mental, quando poderíamos fazer o caminho oposto e associá-lo a um profissional voltado para a saúde mental e qualidade de vida.

Transtornos como ansiedade e depressão possuem sintomas que não estão reservados somente às pessoas diagnosticadas. Por exemplo: a ansiedade é uma reação natural do ser humano até determinado ponto, da mesma forma que a tristeza, em eventuais circunstâncias, ou a baixa autoestima — comum, sobretudo, entre mulheres. Mas nada disso indica, obrigatoriamente, a existência de um transtorno. Como saber quando essas reações deixam de ser comuns e passam a indicar um problema mais grave?

E.R: Tanto a tristeza quanto a ansiedade são reações comuns do ser humano. Para além dos critérios diagnósticos presentes nos manuais de psiquiatria (que são encontrados com facilidade em uma rápida busca por esses transtornos na Wikipédia, por exemplo), é possível avaliar se algo não vai bem de uma forma mais simples: se alguma dessas reações acontece com frequência e sem razão aparente (é compreensível nos sentirmos ansiosos ao falar em público, mas não ao falarmos com nossos amigos e família) ou, ainda, se sentimos que qualquer um desses sintomas tem causado prejuízo na nossa vida. Embora essas sejam emoções comuns, o sofrimento não deve ser entendido como algo natural quando se estende por tempo demais, quando provoca a vontade de nos isolarmos ou gera um comportamento agressivo, seja contra nós mesmos ou com terceiros. A baixa autoestima, por sua vez, não necessariamente é entendida como parte de um transtorno, mas pode ser considerada razão suficiente para buscar ajuda e mudança se nos causa prejuízo — como manter relacionamentos tóxicos e abusivos, rejeitar oportunidades de emprego ou crescimento profissional, etc. Mesmo sem um diagnóstico formal, o sofrimento é um fator importante e que não deve ser ignorado ao nos autoavaliarmos. Mesmo diante de eventos considerados banais, algumas pessoas não conseguem enfrentá-los e sentem-se muito mal, como se algo catastrófico tivesse, de fato, acontecido. Nessas situações, talvez a própria pessoa tenha dificuldade em lidar com frustrações, por exemplo, e isso também pode ser trabalhado na terapia.

E aqueles que estão ao redor? Existe algo que eles possam fazer para ajudar? Até que ponto essas pessoas podem, de fato, oferecer algum tipo de ajuda? Qual o papel que amigos e familiares podem exercer nesse processo e qual papel é exclusivo do profissional?

E.R: O diagnóstico, a prescrição do tratamento médico (o que é válido ressaltar, já que a prática de emprestar medicamentos para amigos e familiares é bastante comum) e de análise e mudança de pensamentos faz parte das competências do profissional, o que significa que, por mais bem-intencionados, dificilmente amigos e família conseguem agir na raiz do problema e contribuir nas transformações que irão afetar a pessoa de forma significativa. Quando se trata de alguém próximo e querido, é comum que pessoas pertencentes ao mesmo círculo busquem ajuda, sofram pela pessoa e insistam nas mais variadas alternativas que estão ao seu alcance para ajudar. Mas nem sempre essas tentativas são bem sucedidas. Muitas vezes, elas apenas causam mais angústia e tristeza em quem sofre com o transtorno, o que também pode interferir na relação da pessoa com o sofrimento, tornando-se catalisador para mais ansiedade e pensamentos negativos.

É importante entender que, quando se trata de transtornos ou condições de saúde mental, emoções negativas não são decorrentes de uma suposta “falta de esforço” do indivíduo em pensar positivo, tampouco estão sob controle da sua vontade — são estruturas inconscientes de pensamento que se manifestam de maneira recorrente mesmo quando nos esforçamos para pensar positivo. Assim, a melhor forma de ajudar alguém é manter a calma, tanto quanto possível. Nos transtornos mentais, ideias irracionais podem levar a pessoa a crer nas piores possibilidades, o que dificulta a percepção das coisas como realmente são. Ao oferecer um diálogo tranquilo, muitas vezes conseguimos reduzir temporariamente os sentimentos negativos quando estes estão fora de controle. Manter uma postura aberta e acolhedora, que não julgue, culpabilize ou provoque a pessoa e ofereça espaço para que ela possa desabafar, quando e se quiser, é uma boa conduta. Por mais que nos cause alguma frustração não poder solucionar por completo os problemas daqueles que gostamos, essa ainda é a melhor forma de lidar com a situação.

No caso de pessoas com baixa autoestima, é importante ouvir daqueles que são importantes e de confiança que se tem qualidades físicas ou psicológicas. Devido aos pensamentos irracionais e negativos, dificilmente é possível internalizar e acreditar no que o outro diz, mas o que é dito funciona como uma base confiável, que em um momento de crise pode ser bastante útil e tranquilizador. Se quem escuta e elogia sente-se frustrado por se sentir ignorado ou não parecer ajudar de maneira efetiva, comentários a esse respeito podem causar o efeito contrário no indivíduo, que vai sentir-se culpado e decepcionado por gerar frustrações em pessoas queridas.

Quais os erros mais comuns cometidos por pessoas que tentam ajudar um indivíduo com transtorno psicológico?

E.R: Um dos mais comuns talvez seja supor que os pensamentos funcionam da mesma forma em todos e, se uma pessoa mentalmente saudável consegue acalmar-se e ficar feliz sozinha, todos também devem ficar — é exatamente essa dificuldade de recobrar sozinho o equilíbrio das emoções que caracteriza os problemas de saúde mental, e que faz com que elogios e conselhos sejam tão pouco eficazes. Oferecer diagnósticos e tratamentos com base na experiência pessoal ou de pessoas próximas pode ser prejudicial também porque as pessoas não são mentalmente idênticas, e isso se aplica quando se sugere a fé como um possível tratamento: a espiritualidade se manifesta de formas diferentes nas pessoas, e práticas que tranquilizam e fortalecem algumas pessoas podem ter efeitos muito diferentes em outras.

Durante o mês de setembro, principalmente em campanhas ligadas ao Setembro Amarelo, é comum que pessoas sem nenhuma formação em psicologia ofereçam suas caixas de mensagem para desabafos e aconselhamento. Mas por mais que exista boas intenções ao divulgar e reforçar o assunto, atitudes como essa podem ser arriscadas porque não existe uma garantia de que quem se propõe a escutar e aconselhar consegue lidar com o sofrimento e angústias de alguém sem trazer suas próprias experiências em resposta, o que pode motivar pioras no quadro mental, se feito de maneira inadequada.

Na internet, principalmente, cada vez mais pessoas têm falado abertamente sobre seus transtornos e experiências. Até que ponto esse tipo de conteúdo realmente ajuda e quando ele começa a oferecer mais riscos do que auxílio?

E.R: A saúde mental ainda é um aspecto do bem estar que não recebe a devida importância, e discutir a respeito e expor os transtornos que afetam as pessoas nessa área é fundamental para desconstruir estigmas e ideias incorretas em torno do tema. Campanhas como o Setembro Amarelo, por exemplo, oferecem visibilidade para condições que, em sua maioria, podem ser consideradas doenças invisíveis, aquelas cujos sintomas não estão nitidamente aparentes e que, por este motivo, frequentemente tem seus diagnósticos questionados ou desconsiderados. Falar sobre saúde mental é extremamente necessário, mas um dos cenários em que isto se torna nocivo é quando as informações oferecidas são incorretas ou incompletas, o que poderia aumentar estigmas sobre o assunto e desinformar ainda mais as pessoas.

A internet é uma plataforma complexa que, ao mesmo tempo em que amplia a possibilidade de conexão com aspectos muito pessoais de quem a utiliza, também permite o recorte e a edição desses aspectos conforme a necessidade de quem o produz. Quando se trata de compartilhar experiências pessoais, acho necessário reforçar que se tratam de vivências individuais e que não devem ser utilizadas como parâmetro ou recursos de tratamento. Todo tipo de conselho é bem intencionado, mas todos eles também partem de contextos particulares e que podem trazer resultados muito diferentes se adotados indiscriminadamente. Muitos profissionais da área também têm trazido conteúdo de qualidade para as redes sociais, o que é bastante válido e relevante, principalmente considerando a quantidade de tempo que a maioria das pessoas da nossa geração passa na internet. Ter acesso ao conteúdo de um psicólogo ou psiquiatra não equivale a um tratamento individual, mas pode esclarecer muitas dúvidas e mitos, e oferecer informações que fortaleçam um tratamento com bons resultados. Dois trabalhos que acho particularmente válidos nesse sentido são os da psicóloga Cecília Dassi e da jornalista Mirian Bottan, que teve bulimia na adolescência e hoje advoga a favor da aceitação corporal e saúde mental nas redes sociais.

Em um movimento similar, produções culturais têm cada vez mais abordado temas como saúde mental e transtornos psicológicos. Imediatamente, me vêm à cabeça séries como 13 Reasons Why, Crazy Ex-Girlfriend, Sharp Objects, e filmes como To The Bone, Cisne Negro e God Help The Girl, só para citar alguns exemplos, e em comum, todos parecem muito dispostos a abordar o assunto sob diferentes ângulos e olhares muito particulares. Você acredita que essas produções têm ajudado a desmistificar certos estigmas e preconceitos sobre esses temas ou têm criado mais dúvidas, angústias e tornado o diálogo mais complicado?

E.R: De maneira geral, acho que os trabalhos que colocam a saúde mental em foco contribuem muito para gerar visibilidade para o tema e isso acaba trazendo pessoas para a discussão que, de outra forma, não teriam contato com estas condições, tampouco oportunidade de conhecê-las, observar e compreender — ainda que em partes — de que maneira a vida de uma pessoa pode ser afetada por um transtorno psicológico. Para muitas pessoas, ainda há algo de místico e incompreensível por trás dessas doenças, o que suscita curiosidade e interesse quando estes assuntos passam a ser o centro de uma produção de entretenimento.

13 Reasons Why, em particular, trouxe muita polêmica por conta da abordagem de uma temática tão delicada como o suicídio, que raramente é representada de forma tão explícita — que demonstra como existem pessoas preocupadas em, mais do que abordar esse tipo de conteúdo, em ter produtores que o façam de forma realista e responsável. As discussões levantas motivaram a realização de um estudo global sobre o impacto da série no público, e os resultados apontam que tanto jovens quanto seus pais identificaram-se com os temas e puderam se informar mais a respeito dessas questões. Então, as críticas e ressalvas feitas ao excesso de cenas gráficas foram importantes tanto do ponto de vista individual quanto coletivo, porque incentivaram que mais conhecimento fosse produzido em relação a como se deve abordar questões como essa na mídia. Em última instância, acho que quanto mais se fala de saúde mental, mais espaço há para que pessoas tenham espaço para produzir mais informação relevante para um público curioso sobre o tema.

Do ponto de vista profissional, quais obras você recomendaria para quem quer conhecer um pouco mais sobre o assunto?

E.R: My Mad Fat Diary é uma série particularmente sensível que aborda questões de imagem corporal e transtornos mentais na trajetória de uma protagonista adolescente de forma bastante realista, acompanhando sua vida e tratamento numa instituição de saúde mental. Outra boa dica é Toc Toc, que aborda com um viés cômico o Transtorno Obsessivo Compulsivo e a Síndrome de Tourette, mas oferece uma boa ideia do impacto desses transtornos na vida das pessoas e sua dificuldade em resistir a tais comportamentos. E A Redoma de Vidro, que embora não fale sobre nenhum transtorno de forma específica, aborda muito bem a sensação de vazio.

Pessoas diferentes possuem gatilhos diferentes e muitas produções utilizam trigger warnings justamente para alertar essas pessoas sobre a existência de um possível conteúdo perturbador. Essa, no entanto, ainda não é a regra, e sim a exceção, de modo que muitos gatilhos em potencial acabam chegando até pessoas que podem ser afetadas em diferentes níveis por eles. Existe alguma forma de criar barreiras que façam com que, uma vez consumido, esse conteúdo não faça tantos estragos?

E.R: Quando se trata de diminuir o impacto negativo de algumas temáticas, é possível buscar fortalecer as capacidades de enfrentamento da ansiedade e situações de estresse — o que é uma medida individual e também depende da disposição da pessoa que sofre com o transtorno —, além de reforçar os trigger warnings em produções e obras que abordem esses temas — o que fica a cargo daqueles que produzem esse tipo de conteúdo, e é preciso frisar a importância da consciência e responsabilidade com que esses temas merecem ser tratados. O estrago causado depende muito da sensibilidade individual de cada um a determinado conteúdo, mas a informação, quando disponível, permite selecionar com propriedade aquilo que vamos consumir: uma pessoa sensível à temáticas de violência, por exemplo, pode tolerar um conteúdo relacionado em um filme caso se sinta tranquila na ocasião, se estiver preparada para algum tipo de estresse ou se estiver acompanhada de alguém que contribua para a sensação de segurança e autocontrole. Na ausência de informação ou preparo mental, esta mesma pessoa poder perder o controle e se sentir mal. Assim, esse tipo de prática é muita válida e assegura que o público possa apreciar qualquer obra sem que estas causem sofrimento em excesso.

Por fim, existe algo que você gostaria de acrescentar sobre o assunto ou alguma mensagem que queira deixar? 

E.R: Acho importante dizer que a psicoterapia é uma ferramenta fundamental não apenas para o tratamento de problemas de saúde mental, mas como uma forma de buscar maior compreensão sobre nós mesmos, nossos medos e desejos, que tanto auxilia num processo de empoderamento quanto fortalece nossas habilidades para enfrentar angústias comuns da vida de maneira saudável. O cuidado em saúde mental não tem de ser feito só para quem está doente: ele deve ser um cuidado de todos. Precisamos constantemente proteger e estimular nossa saúde mental para que possamos dar conta de cada vez mais desafios e nos tornarmos pessoas melhores.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!