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Coraline: medo e coragem na infância

“Na nova casa de Coraline, há uma porta que esconde segredos. Um outro mundo, com pais de pele muito branca e olhos de botões negros. E eles querem que Coraline fique ali. Para sempre.” Com uma sinopse dessas é muito fácil ir colocando Coraline, de Neil Gaiman, na caixinha de histórias de terror. Mas o mundo que Gaiman constrói é muito mais complexo. Medo, coragem e fantasia se entrelaçam tão bem que Coraline impressiona as crianças enquanto assusta os adultos.

Lançado em 2002, a obra conta a história de Coraline, uma menina que acaba de se mudar com os pais para um casarão antigo que foi dividido em diversos apartamentos. Enquanto explora o apartamento da família Coraline se depara com uma porta trancada. A descoberta que parecia pôr fim ao tédio de um dia chuvoso, contudo, se mostrou inútil. A porta, quando aberta, dava para uma parede de tijolos. Mas nem sempre.

Ao atravessar o corredor que surge no lugar da parede de tijolos, Coraline acaba em um apartamento igual ao seu. Os mesmos móveis, objetos e com seus pais e vizinhos. Só que todos são mais pálidos que o normal, quase brancos como papel, e tem botões negros como à noite no lugar dos olhos. Nesse mundo, todos acertam seu nome, são interessantes e parecem querer atender os desejos de Coraline, mas a menina não se deixa enganar pela doçura que há ali.

Quando retorna para o seu mundo, Coraline descobre que a Outra Mãe — a versão de sua mãe com botões do lugar dos olhos — sequestrou seus pais verdadeiros. Uma armadilha para atrair Coraline de volta e fazê-la costurar os botões nos olhos e ficar naquele mundo para sempre.  O único companheiro de Coraline é um gato preto que consegue transitar entre os dois mundos. É ele quem nos dá as pistas de que esse mundo é uma teia de aranha esperando uma mosquinha desavisada se prender por ali.

“— Mas isso é… — começou a dizer Coraline.
— A casa de onde você acabou de sair — completou o gato.
— Mas como você pode se afastar de uma coisa e logo retornar para ela?
— É fácil. Pense em alguém caminhando ao redor do mundo. Você começa a tomar distância de algo e termina voltando para o mesmo lugar.
— Mundo pequeno — apontou Coraline.
— É grande demais para ela — disse o gato — As teias de aranha só precisam ser do tamanho ideal para pegar moscas.

Coraline ficou arrepiada.”  (2020, p. 109).

A narrativa é tão bem construída que Coraline ganhou diversas adaptações, principalmente para quadrinhos. Mas a adaptação mais famosa é a animação da Laika de 2007, em stop motion, dirigida por Henry Selick. O que ninguém imagina é que esse sucesso, que conquista público, leitores e admiradores até hoje, começou de forma despretensiosa, quando o autor de Deuses Americanos e Sandman decidiu escrever uma história para as filhas.

“Eu queria escrever uma história para as minhas filhas que contasse algo que eu gostaria de ter sabido quando era garoto: ser corajoso não significa não ter medo. Ser corajoso significa estar com medo, muito medo, mas mesmo assim fazer o que é certo.” (Gaiman, 2012; p.13).

Gaiman não nos revela completamente o que é aquele mundo ou o que é a Outra Mãe, mas sabemos que ela é uma criatura antiga e que já vitimou outras crianças que foram atraídas pela mesma porta. Elas aceitaram costurar os botões para poderem ficar com a Outra Mãe, mas assim que fizeram isso a Outra Mãe roubou as almas dos pequenos, comendo suas vidas ao longo dos anos. Coraline se arrisca também para salvá-los. É tendo todas essas vidas em mente que a coragem de Coraline se solidifica.

“Porque coragem é quando você sente medo de fazer algo, mas faz mesmo assim, é quando você enfrenta o medo.” (2020, p. 90).

O que me conquista nessa história é a familiaridade. Quando crianças, todos nos sentimos em algum momento abandonados pelos adultos, que sempre têm outra coisa para fazer. Nos sentimos entediados em casa durante uma tarde chuvosa e nem TV, livro ou brinquedo era capaz de nos distrair. Todos nós, em algum momento, desejamos uma porta como essa e uma aventura assustadora e cheia de fantasia em que venceríamos a criatura malvada.

Quando somos crianças, uma casa é um mundo e parece que tudo pode render uma aventura. A coragem infantil é a mais bonita de se ver porque os medos infantis são os mais profundos, desde a escuridão ao barulho estranho no alto da escada. Na infância, vemos o mundo com encanto e terror.

As diferenças entre livro e filme

A animação de 2007 é um daqueles raros casos em que podemos dizer que o filme é tão bom quanto o livro. O ponto central da história continua ali, mas no filme ganha novas nuances como a questão do “cuidado com que se deseja”. Entre as principais diferenças está a inclusão do personagem Wybie, um menino que se torna amigo de Coraline e ajuda a transpor os pensamentos dela para a tela. Wybie é um personagem tão cativante que chega a fazer falta no livro.

Outro ponto é que a animação aprofunda a relação de Coraline com os pais. Apesar do livro mostrar que Coraline é deixada de lado em alguns momentos pelos pais, ela não se mostra insatisfeita com a relação familiar — exceto sobre a questão de o pai cozinhar. O homem não manda bem, gente. No filme, Coraline está frustrada com a mudança, por ter que deixar a escola e os amigos para trás.

Além disso, há um conflito passivo-agressivo com a mãe que raramente escuta Coraline. Como a adulta que sou hoje, consigo entender os pais — que no filme trabalham em home office —, mas todos esses elementos colaboram para que ela se sinta atraída para o mundo “perfeito” da Outra Mãe. Talvez, a maior mensagem que Coraline consegue deixar em todas as suas versões seja a importância de se escutar as crianças.