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Supergirl: palavras têm poder

Um dos argumentos mais comuns usados por fanboys machistas, racistas e homofóbicos para defender sua posição é a de fidelidade à fonte e coerência do universo. Thor não pode ser mulher porque sempre foi homem; Homem-Aranha não pode ser negro porque sempre foi branco. E, apesar das adaptações terem se tornado cada vez mais diversas em seus personagens e diretores — Mulher-Maravilha (dirigido por Patty Jenkins e lançado em 2017), Pantera Negra (dirigido por Ryan Coogler, com lançamento previsto para 2018), Thor: Ragnarok (dirigido por Taika Waititi e também lançado em 2017) são exemplos marcantes —, não é sempre possível contar com isso: a Sony, por exemplo, tem até mesmo um documento garantindo que o personagem Homem-Aranha será sempre branco e heterossexual nas adaptações cinematográficas, enquanto a adaptação do Hulu dos quadrinhos The Runaways colocou uma atriz magra para fazer o papel da personagem gorda Gert (mostrando que negar o cânone do texto-fonte é considerado irrelevante se isso significar encaixar uma personagem nos padrões estéticos da televisão).

Atenção: este texto contém spoilers

Supergirl, no entanto, tem surpreendido ao fazer questão de usar uma linguagem politicamente progressista mesmo quando implica em incoerências narrativas. No terceiro episódio da terceira temporada, “Far From The Tree”, vemos o chá de panela de Alex Danvers (Chyler Leigh) e Maggie Sawyer (Floriana Lima), que estão noivas. Maggie vem de uma família conservadora de origem mexicana (infelizmente, interpretada por uma atriz branca, não latina) que a rejeitou quando ela se descobriu lésbica, mas da qual tenta se reaproximar através do pai, Oscar Rodas (Carlos Bernard), em momentos tristes e emocionantes do episódio.

Em um desses momentos, o pai declara: “They’re building a wall to keep us out, because in their minds, we’re nothing but rapists and murderers” [“Estão construindo uma muralha para nos expulsar, porque acham que somos todos estupradores e assassinos”]. A declaração é claramente uma referência aos planos racistas e xenofóbicos do presidente americano Donald Trump de construir uma muro separando os Estados Unidos e o México; no entanto, no universo da série, a presidente é a progressista Olivia Marsdin (Lynda Carter, a Mulher-Maravilha da série dos anos 1970), cuja política é abertamente pró-imigração e pró-refugiados, inclusive extraterrestres — ela própria é alienígena). Mesmo assim, Supergirl preferiu o peso da mensagem de um homem mexicano fazendo referência explícita à situação política atual dos Estados Unidos a se ater ao puritanismo da coerência do universo narrativo.

Não é a primeira nem a última vez que Supergirl se mostra explicitamente política, particularmente em resposta ao crescente movimento de políticas conservadoras nos Estados Unidos e em outros países do mundo nos últimos anos. Não só a presidente dos EUA, no universo da série, é uma alienígena refugiada, como Cat Grant (Calista Flockhart), inicialmente editora da revista para a qual Kara Danvers (Melissa Benoist) trabalha na primeira temporada, retorna no segundo ano da série como secretária de imprensa da presidente, apresentando mensagens explicitamente feministas e de resistência. No penúltimo episódio da segunda temporada, frente a uma invasão violenta, Cat faz um discurso na televisão claramente direcionado ao público da série, mas que faz referência ao slogan trumpista:

“Now I can imagine that you’re feeling afraid and feeling like your world is spinning out of control but, believe me, you have power and right now you have a job to do. Resist. Resist these invaders with everything you’ve got. They come with empty promises and closed fists. They promise to make our world great again and yet they know nothing about the people that make this world great. They think they can con us and if that doesn’t work, what, they’re going to beat us into submission? They have no idea what they’re up against. Aliens and Humans, we need to band together and we need to stand up and fight back. Everyone needs to be a superhero. Everyone needs to get up and say: Not in my house.”

“Imagino que vocês estejam com medo, sentindo como se o seu mundo estivesse saindo de controle, mas, acredite, vocês têm poder e agora vocês têm um trabalho a fazer. Resistam. Resistam esses invasores com toda a força que têm. Eles chegam com promessas vazias e punhos fechados. Eles prometem fazer nosso mundo ser poderoso de novo, mas não sabem nada sobre as pessoas que fazem este mundo poderoso. Eles acham que podem nos enganar e, se não funcionar, o quê?, espancar a gente até cedermos? Eles não fazem ideia do que estão enfrentando. Aliens e humanos, precisamos nos juntar, nos erguer e lutar. Todo mundo precisa ser um super-herói. Todo mundo precisa se erguer e dizer: Não na minha casa.”

Para reforçar ainda mais a mensagem e deixar clara sua posição, o episódio seguinte, o último da segunda temporada tem o título de “Nevertheless, She Persisted”, expressão que ganhou popularidade no movimento feminista e anti-Trump estadunidense no começo do ano. Outro momento de destaque é o monólogo de apresentação de Kara Danvers, que abre todos os episódios. A primeira versão, da primeira temporada, era a seguinte:

“When I was a child, my planet, Krypton, was dying. I was sent to Earth to protect my cousin. But my pod got knocked off-course, and by the time I got here, my cousin had already grown up and become… Superman. And so, I hid my powers, until recently when an accident forced me to reveal myself to the world. To most people, I am an assistant at CatCo Worldwide Media. But in secret, I work with my adoptive sister for the D.E.O. to protect my city from alien life and anyone else that means to cause it harm. I am Supergirl.”

“Quando eu era criança, meu planeta, Krypton, estava morrendo. Eu fui mandada para a Terra para proteger meu primo. Mas minha nave saiu de rota e, quando cheguei aqui, meu primo já tinha crescido e virado… Super-Homem. Então, escondi meus poderes, até recentemente, quando um acidente me forçou a me revelar para o mundo. Para a maioria das pessoas, sou uma assistente na CatCo Worldwide Media. Mas, em segredo, trabalho com minha irmã adotiva no D.E.O. para proteger minha cidade de invasões alienígenas e de quem quer que queira causar danos. Sou a Supergirl.”

O monólogo sofreu pequenas alterações na segunda temporada, mas a partir da terceira, apresentou uma mudança marcante e explicitamente política: Kara Danvers passou a se identificar como refugiada.

“My name is Kara Zor-El. I’m from Krypton. I’m a refugee on this planet. I was sent to Earth to protect my cousin. But my pod got knocked off-course, and by the time I got here, my cousin had already grown up and become… Superman. I hid who I really was until one day when an accident forced me to reveal myself to the world. To most people, I’m a reporter at CatCo Worldwide Media. But in secret, I work with my adoptive sister for the D.E.O. to protect my city from alien life and anyone else that means to cause it harm. I am Supergirl.”

“Meu nome é Kara Zor-El. Sou de Krypton. Sou uma refugiada neste planeta. Fui mandada para a Terra para proteger meu primo. Mas minha nave saiu de rota e, quando cheguei aqui, meu primo já tinha crescido e virado… Super-homem. Escondi quem eu era até um acidente me forçar a me revelar para o mundo. Para a maioria das pessoas, sou uma repórter na CatCo Worldwide Media. Mas, em segredo, trabalho com minha irmã adotiva no D.E.O. para proteger minha cidade de invasões alienígenas e de quem quer que queira causar danos. Sou a Supergirl.”

O uso de aliens, mutantes ou outras espécies não-humanas como metáfora para situações de preconceito humano não é uma novidade. Os quadrinhos (e adaptações) de X-Men sempre usaram mutantes como representação metafórica de minorias raciais e da população LGBTQ+ e até a série True Blood usava linguagem ligada à população LGBTQ+ para se referir à situação dos vampiros no universo da história. Mesmo assim, a declaração de Kara como refugiada (o que ela realmente é, tendo escapado de seu planeta em condições inóspitas e sendo recebida na Terra) leva a metáfora para um nível de clareza inescapável.

Supergirl não é uma série sutil em seus roteiros, em seu visual ou em suas escolhas narrativas; no entanto, quando diz respeito à sua mensagem política, essa falta de sutileza é extremamente importante, poderosa e eficaz. Em um mundo como o nosso, elaborar metáforas em subtexto ou se preocupar mais com manter um fio coerente de detalhes do universo devem mesmo ficar em segundo plano, em prol de uma posição política clara. E, sem sombra de dúvida, a posição de Supergirl é anti-conservadora, anti-Trump e, essencialmente, de resistência.

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