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No caminho, havia uma gravidez: quando engravidar é utilizado como recurso narrativo

Toda mulher cis adulta já pensou, ao menos uma vez, sobre gravidez: seja por conta do desejo de ter filhos ou seja por, ao contrário, querer evitar ter filhos — agora ou sempre. Essa situação faz parte das nossas vidas quando pensamos no que queremos para nossos futuros ou nos preocupamos com nossos corpos em uma relação sexual. Assim, não é surpresa ver as inúmeras retratações que o entretenimento faz de mulheres vivenciando a gravidez ou a expectativa de uma. Desde histórias incríveis sobre mulheres lidando com a maternidade, como nas comédia A Vida Acontece ou Plano B, até narrativas que mostram mulheres que não exerceram esse papel, seja por tragédias envolvendo assassinos ninjas, como em Kill Bill, ou simplesmente por não desejarem ou não se sentirem aptas para isso como no clássico Juno.

Entretanto, existe uma tendência nada positiva de usar a gravidez como instrumento único de mudança de personagens femininas, com o objetivo de movimentar a história mesmo que isso não faça muito sentido em meio àquilo que estávamos assistindo. Nesse contexto, a narrativa da gravidez geralmente acontece de um desses modos:

1. interrompendo a evolução de uma personagem que já conhecemos, a levando para outra direção e nos fazendo não reconhecê-la mais;

2. sendo usada como lição para a irresponsabilidade ou para atitudes ruins que a personagem teve;

3. sendo usada como contraponto para sua falta de vontade de ter filhos, apresentando-a um desejo que não sabia ter.

Em todos os três casos, há uma similaridade: a sensação de injustiça e de falta de escolha para a mulher ali representada.

Atenção: este texto contém spoilers das séries Modern Family, Gilmore Girls, How I Met Your Mother e Grey’s Anatomy!

A descaracterização da personagem que já conhecemos

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Aqui, a narrativa é construída seguindo uma fórmula: existe uma personagem que conhecemos há várias temporadas (ou capítulos) e já sentimos que a entendemos. Sabemos como ela é, o que gosta e o que quer para seu futuro. Acompanhamos sua trajetória até o momento em que várias pequenas situações acontecem — entre elas, uma gravidez inesperada —, o que a joga para uma direção totalmente diferente do que estávamos assistindo no início. Agora, aquela personagem tem uma nova vida como mãe que parece estar um tanto quanto dissociada do que conhecíamos antes. A sensação é de, literalmente, não encontrar aquela mesma pessoa ali.

É óbvio que gravidezes inesperadas acontecem, o objetivo aqui não é de forma alguma considerá-las negativas ou não merecedoras de representação no entretenimento — o que, inclusive, já o fez muito bem como em alguns dos exemplos citados acima. O problema se encontra quando ela acontece e, por conta dela, vemos a personagem tomar um rumo ou decisões desconexas com a sua personalidade ou construção narrativa de antes. Muitas vezes, chega até mesmo a acontecer um apagamento da evolução que a mesma teve durante a história que acompanhamos e, esse em específico, é o caso de Haley Dunphy (Sarah Hyland), de Modern Family.

Haley é a filha mais velha de Phil (Ty Burrell) e Claire (Julie Bowen) e, no início, é o estereótipo de menina popular que vemos em filmes: ela é linda, adora fazer compras e não tem nenhum interesse nos estudos. Briga constantemente com sua irmã mais nova, Alex (Ariel Winter), por conta de suas personalidades muito diferentes, e está sempre enfrentando os pais por querer ir a festas no meio da semana ou por qualquer outra coisa que eles achem irresponsável. Ela envelhece e parece continuar igual, tendo um namoro cheio de idas e vindas com o menino que os pais consideram “um fracasso”, chegando até mesmo a perder sua vaga na universidade  por ter sido pega fugindo de uma festa com bebidas enquanto ainda era menor de idade.

A mudança acontece quando, em algum ponto entre ser expulsa da faculdade e voltar para casa, Haley começa a amadurecer. Ela arruma um emprego sério na área de moda e, pela primeira vez, não o abandona após algumas semanas. Também passa a ser mais paciente com sua família e começa a se relacionar com Andy (Adam DeVine) — primeiro como amiga e depois como namorada —, um cara responsável e que a motiva a correr atrás do que quer. Não é possível dizer exatamente o ponto de virada da personagem porque essa evolução acontece lentamente e de modo muito natural, sendo fácil se identificar com esse processo bonito de descoberta pelo qual ela está passando. Várias temporadas depois, Haley já é uma pessoa bem diferente de quando era adolescente: a essência de sua personalidade ainda está lá, mas agora no corpo de uma mulher adulta, ambiciosa e que participa do dia a dia da família.

Tudo vai bem até o momento em que ela volta a se relacionar com o antigo namorado do ensino médio e engravida dele: não sabemos o ponto de início do amadurecimento de Haley, mas sabemos bem que esse é o ponto em que os roteiristas se esqueceram de sua evolução e resolveram mudar sua trama para focar em sua gravidez e na descoberta da maternidade. Não que ver Haley como mãe não seja interessante, mas é muito triste não podermos ver a sua ascensão profissional também. Pudemos vê-la conquistar seu primeiro emprego, uma vaga melhor e até mesmo ter medo de perder uma promoção ao anunciar que estava grávida — momento com o qual muitas mulheres se identificam. Então, por que não vê-la sendo uma  profissional incrível enquanto tenta aprender a lidar com seus novos bebês?

Esse desenvolvimento da história fica ainda mais revoltante quando percebemos que os roteiristas quiseram fazer um paralelo entre Haley e Claire. As duas eram populares quando adolescentes, tinham uma personalidade um pouco rebelde e namoravam meninos que os pais não gostavam: por que não fazê-la ter uma gravidez não planejada, que nem a mãe? Semelhanças nas trajetórias de pais e filhos é um recurso narrativo muito utilizado no cinema e na televisão e pode dar muito certo, como no clássico O Poderoso Chefão ou em Grey’s Anatomy, mas também pode não ser a melhor saída. Haley se encaixa no segundo caso. Junto dela, há outra personagem que também acompanhamos por anos e vimos crescer: Rory Gilmore, de Gilmore Girls.

A gravidez como consequência de uma lição a ser aprendida

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A filha que todo pai quer ter: essa era Rory (Alexis Bledel), uma adolescente brilhante que nunca quebra as regras e que ama a família. Lorelai (Lauren Graham), sua mãe, engravidou muito jovem e a pouca diferença de idade as fez muito próximas. Conforme Rory envelhece, a vemos descobrir que, na verdade, ela não é exatamente aquela menina perfeita que todos achavam. Rory comete erros, abandona a faculdade e sai de casa, mas tudo é  resolvido na sexta temporada — a penúltima das temporadas clássicas —, e passamos a conhecer uma nova Rory, mais humana e, agora, adulta. Durante o último ano da série, inclusive, conseguimos perceber sua evolução ao se sentir preparada para  assumir um novo emprego longe de casa e por recusar um pedido de casamento que não se encaixava em seus planos futuros.

Após sete temporadas, Gilmore Girls acabou. Até que, em 2016, quatro novos episódios foram lançados contando como estão Lorelai e Rory nove anos depois. Com o especial, os fãs do seriado foram surpreendidos ao ver que a jovem seguiu um caminho inesperado: ela não era uma jornalista bem-sucedida e com a vida estável como todos esperavam, e sim uma adulta de trinta anos à procura de um emprego e que volta a morar com a mãe. Até aí, tudo bem. Acompanhar um segundo processo de amadurecimento da personagem foi muito interessante, mesmo quando nos irritamos com suas escolhas. O problema surge quando, após mais de quatro horas de Rory sendo irresponsável e tendo que lidar com os fracassos de sua vida profissional e pessoal, ela engravida.

Para quem acompanhou o seriado, as semelhanças entre Lorelai e Rory são óbvias. As duas têm o pensamento rápido, adoram comer fast food e falam muito. A lista continua interminavelmente, representando com excelência os dizeres “tal mãe, tal filha”. Entretanto, as diferenças também eram grandes, principalmente quanto à criação e crescimento de Rory, que não teve uma vida tão restrita como a da mãe. Dito isso, é importante ressaltar que ver como as duas tiveram jornadas totalmente opostas e mesmo assim terminaram no mesmo lugar seria um paralelo interessante, mas por que fazer isso por meio de uma gravidez inesperada? Rory cometeu muitos erros durante a nova temporada, entretanto foi aprendendo com cada um deles.

Quando descobrimos que ela está grávida (no último minuto da série, literalmente), temos a sensação de que esse crescimento ocorreu por conta desse fato, tirando a força dela ter seguido aquele caminho simplesmente porque achava que era o correto. Engravidar não é uma lição de vida a ser aprendida, não é uma luz quando estamos perdidas, então colocá-la nesse contexto não pareceu justo com a trajetória de amadurecimento de Rory nesses quatro episódios.

A falsa possibilidade de escolha

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Usar a maternidade como punição não é exclusividade de casos como o de Rory. É muito comum vermos histórias onde mulheres que não queriam ter filhos, ou que apenas estavam felizes levando suas vidas sozinhas, e passam a ter que encarar uma gravidez inesperada que resulta, sempre, na personagem escolhendo ser mãe  porque viu que essa era uma parte que lhe faltava. O filho (ainda na barriga ou já nascido) muda aquela mulher: se ela era egoísta, agora se preocupa com os amigos; se era brigada com a família, agora há a oportunidade de se reconectarem. Tudo isso é muito bonito e pode acontecer na vida real, claro. O problema é que também existem mulheres que não querem ter filhos simplesmente porque sim e que estão muito bem resolvidas com essa decisão.

Quantas vezes você viu, em um filme, série ou livro, uma mulher descobrindo estar grávida e tomar a decisão do aborto não porque não tem condição de criar o bebê ou algo do tipo, mas porque é o que deseja fazer? Ser um momento difícil não significa que a escolha em si seja difícil para todas. Cristina Yang (Sandra Oh), em Grey’s Anatomy, exemplifica bem uma parcela dessas mulheres. Bem-sucedida, com um homem apaixonado por ela querendo ser pai, ela tem que tomar essa decisão não só uma, mas duas vezes, e em todas escolhe o que sempre pensou para o seu futuro: não ser mãe. Assim, é muito triste quando finalmente vemos outra personagem que parece saber bem o que quer, mas que rapidamente abandona suas convicções quando tem que encarar a possibilidade de ser mãe: e, aqui, introduzimos Robin, de How I Met Your Mother.

Determinada e ambiciosa, sempre ficou claro para os espectadores quem Robin Scherbatsky (Cobie Smulders) era e o que desejava para o seu futuro: tornar-se uma jornalista de sucesso, mantendo a independência que tanto prezava. Casar ou ter filhos não estava dentro de seus planos, sendo, inclusive motivo de conflito entre ela e alguns namorados. Então, na sétima temporada, nos deparamos com um episódio em que a personagem descobre não poder engravidar, tudo isso enquanto a vemos imaginar filhos que nunca teria. Naquele momento, Robin passa por um baque, pois teve que, como a mesma diz no episódio seguinte, “largar sonhos que nem sabia que tinha”.

Não acredito que alguém considere How I Met Your Mother uma sitcom feminista, mas, não bastasse alterar todo esse aspecto da personalidade de Robin em apenas 20 minutos, a série ainda nos apresenta esses fatos de maneira extremamente emotiva, tentando nos fazer aceitar que o que estamos vendo faz algum sentido. Entendo que descobrir que você não pode engravidar é muito diferente de não querer engravidar, e, exatamente por isso, me parece forçado colocar as duas situações no mesmo saco. Ao final do seriado, Robin parece ter a vida que sempre quis, viajando o mundo todo trabalhando e sendo reconhecida pelos seus feitos. Esse mesmo término poderia ter sido alcançado sem essa trama, deixando óbvio para nós o quanto ele era desnecessário para a narrativa e para o próprio desenvolvimento da personagem. A sensação final é de que os roteiristas simplesmente não conseguiram deixá-la ficar sem um momento em que desejasse ter filhos, como se  esse fosse um sonho, mesmo que escondido, de todas as mulheres.

Engravidar e se tornar mãe é um processo difícil e complicado; não deve ser usado como uma punição nas histórias que vemos porque uma gravidez não ilumina nosso caminho e nos mostra como ser melhores, mas traz uma série de outras dúvidas ou medos que serão resolvidos com o tempo. Analisando cada história, fica fácil ver quando esse momento foi bem ou mal representado no entretenimento. E, caso esteja na dúvida, temos aquela velha dica: imagine um personagem homem no local daquela mulher que você está vendo — a narrativa seria conduzida da mesma maneira? Temos que começar a nos questionar a respeito disso para que as personagens que tanto gostamos tenham finais dignos de suas trajetórias.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!