Categorias: TV

De Yang a Pierce: o ABC das cardiodeusas de Grey’s Anatomy

Cardiocirurgiões são hardcore. Autoconfiantes, ousados, arrogantes. Essa é a premissa básica de Grey’s Anatomy desde que conhecemos Cristina Yang (Sandra Oh), ainda como interna, na primeira temporada, capaz de realizar já no primeiro ano de residência cirurgias complexas para acobertar seu então mentor e namorado, Preston Burke (Isaiah Washington). Na época, ela ainda não tinha uma especialidade definida, mas já era claro que Yang estava em um nível superior de habilidade. Nos despedimos da personagem no final da décima temporada, mas o posto de cardiogoddess oficial do Grey-Sloan Memorial Hospital não ficou vazio desde então — no lugar dela ganhamos Maggie Pierce (Kelly McCreary), uma anti-Cristina Yang em muitos sentidos, mas nunca na habilidade.

Atenção: este texto contém spoilers!

As diferenças entre as duas médicas começam, e provavelmente são moldadas em algum nível, pelas suas histórias de vida. Cristina não só perdeu o pai aos nove anos de idade, como segurou-o em seus braços até que ele morresse, o que moldou inicialmente seu desejo de se tornar médica e tem, também, relação com a escolha da sua especialidade. Além disso, a personagem tem uma relação conflituosa com a mãe em razão de suas personalidades e prioridades completamente diferentes, mãe esta que usa da sua posição para tentar impor seus gostos sobre a filha, como pudemos observar nos poucos episódios em que Helen Yang Rubenstein (Tsai Chin) apareceu em nossas telas. Competitiva e determinada a ser a melhor, Yang se formou como a primeira da sua turma na faculdade de medicina da Universidade de Stanford, e nunca deixou de ser a melhor em tudo o que faz.

Apesar do que possa parecer, porém, esse destaque não é fruto (apenas) de uma habilidade natural, e sim de muito esforço e dedicação, tendo em vista que a personagem sofre de dislexia. Cristina Yang é apaixonada pela sua carreira e faz disso sua prioridade, abrindo mão do que for preciso em nome dela, o que inclui relacionamentos amorosos — afinal, nunca vamos esquecer de quando ela ofereceu o então namorado Owen Hunt (Kevin McKidd) em troca de que Teddy Altman (Kim Raver), apaixonada por ele, não fosse embora e continuasse a ser sua mentora. Nada disso faz de Cristina uma personagem sem coração; apesar de seu jeito diferenciado, ela se importa genuinamente com as pessoas que lhe são caras, com destaque para sua melhor amiga, sua pessoa, Meredith Grey (Ellen Pompeo). Desde o primeiro minuto, Cristina Yang foi uma personagem intrigante e complexa, e não é à toa que se tornou a queridinha de muitos, mesmo com sua personalidade nem sempre muito adorável.

No outro extremo, Maggie é filha biológica de Ellis Grey (Kate Burton) e Richard Webber (James Pickens Jr.), mas foi dada em adoção nas primeiras horas de vida e só descobrimos sobre sua existência na décima primeira temporada da série, quando ela chega ao Grey-Sloan Memorial para ocupar a posição de Chefe de Cirurgia Cardiotorácica. Ainda bebê, Maggie foi adotada pelo casal Diane e Bill Pierce (LaTanya Richardson JacksonRichard Lawson, respectivamente), com quem compôs uma família maravilhosa e amorosa até a idade adulta. Possuindo um QI extremamente alto, ela sempre esteve adiantada na escola e se formou cedo em todas as etapas, desde o Ensino Médio até a faculdade de medicina, seguindo os passos da mãe biológica sem saber.

Apesar da vantagem intelectual, Maggie sofreu por sua dificuldade de socialização, em parte por ser sempre mais jovem que os colegas de classe. Essa dificuldade se perpetuou quando ela chegou à equipe do Grey-Sloan Memorial em busca de informações sobre a mãe biológica e desejando se relacionar com a irmã, Meredith, e demorou a conseguir formar vínculos. Apesar disso, aos poucos, ela foi se integrando na grande família que é a equipe de cirurgia do hospital e, ao que parece, finalmente encontrou seu lugar, incluindo uma relação de irmãs com Meredith e Amelia Shepherd (Caterina Scorsone), com quem mora, ajudando a cuidar dos sobrinhos. Outro grande desafio que Maggie teve que superar em sua chegada a Seattle foi a desconfiança dos colegas de trabalho, precisando lutar para afirmar a própria competência e sua capacidade para ocupar o lugar deixado por Cristina Yang. Apesar de ter uma história de vida relativamente alegre, tivemos a chance de observar sua passagem por momentos difíceis, como o divórcio dos pais e, principalmente, a luta da mãe contra o câncer e sua morte, aprofundando as camadas da personagem, à semelhança de todas as outras personagens femininas da série.

“If you want crappy things to stop happening to you, then stop accepting crap and demand something more.” — Cristina Yang

“Se você quer que coisas bosta parem de acontecer com você, então para de aceitar bosta e exija algo mais.” — Cristina Yang

Cristina e Maggie são opostas também em muitos outros sentidos. Yang é o epítome do “dark and twisty” [sombria e tortuosa], com sua personalidade não muito amigável e seu humor sombrio. Ao contrário, Pierce é descrita como “perky and chatty” [animada e faladeira], frequentemente alegre e sempre tentando ser simpática com os outros, apesar da certa dificuldade de socialização. Essas personalidades determinam com frequência a forma com que elas são percebidas pelos outros e o que todos nós esperamos delas. Por exemplo, a primeira expectativa que se tem ao interagir com Cristina Yang é de que ela seja sarcástica e ácida (como ela normalmente é), o que não significa que ela não tenha seus momentos de exceção, em que deixa transparecer seu lado soft, como na despedida dela com Meredith, em seu último episódio; nos momentos de interação com Zola (interpretada atualmente por Aniela Gumbs, e anteriormente por Jela K. Moore), filha de Meredith e sua afilhada; ou em toda a sua amizade com o Dr. Craig Thomas (William Daniels) durante o período em que trabalhou na Mayo Clinic, em Minnesota. Por outro lado, sempre esperamos que Maggie Pierce se comporte com a gentileza e a simpatia que lhe são características, o que não impede que ela “invoque o trovão” (“bring the thunder“) quando precisa se impor, como aprendeu a fazer com ninguém menos do que Miranda Bailey (Chandra Wilson) no episódio “Puzzle With a Piece Missing” (“quebra-cabeça com uma peça faltando”, em tradução livre), no começo da décima primeira temporada.

Não obstante todas as diferenças, se existe um elemento no qual as duas não são opostas é em inteligência e habilidade. Apesar das resistências inicialmente sofridas por Maggie ao chegar ao hospital por ter que corresponder ao padrão de excelência estabelecido pela antecessora e, provavelmente, em parte também por ser uma mulher negra e jovem, ela não demora a mostrar a que veio e convencer a todos de sua habilidade. A superação desses obstáculos, entretanto, não apaga o possível viés racista e machista que eles demonstram, uma vez que nenhum homem que tenhamos visto se juntar à equipe antes dela sofreu esse tipo de questionamento, e a única pessoa que viveu algo próximo — mas nem de longe tão generalizado — foi a Dra. Teddy Altman (Kim Raver), que ingressou na equipe também como Chefe de Cirurgia Cardiotorácica após ter cumprido anos de serviço militar e não possuía reconhecimento profissional suficiente para alcançar os padrões exigidos pela própria Yang. Ainda no quesito competência, tanto Cristina quando Maggie demonstram um grau de autoconfiança bastante alto, além de uma compostura invejável que permite que elas mantenham a calma sob pressão e brilhem dentro da sala de cirurgia.

Entre diferenças e semelhanças, o que temos tanto em Cristina Yang quanto em Maggie Pierce (e, por que não, em Grey’s Anatomy como um todo), são personagens complexas e profundas, que cativam e encantam justamente pela multiplicidade considerável de facetas pelas quais são formadas. Se a saída de Cristina foi e sempre será uma facada nos corações dos fãs da série, que aprenderam a amar e admirar cada vez mais sua personalidade no curso de dez anos de convivência, pelo menos temos a certeza de que seu posto profissional foi preenchido à altura. Nesse processo ganhamos também mais uma personagem incrível e admirável para amar na forma de Maggie, que chegou com seu jeitinho desajeitado e adorável de ser, e conquistou seu lugar nos corações dos outros personagens e dos expectadores. Felizmente, nossos corações têm espaço para as duas e para quantas mais surgirem no curso desse grande desfile de mulheres maravilhosas que é Grey’s Anatomy.

Semana especial: Grey's Anatomy


** A arte do texto é de autoria da editora Ana Vieira