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O sonho-pesadelo que é Eu Não Sou Um Homem Fácil

Se Damien (Vincent Albaz) não é um homem “fácil”, Eu Não Sou Um Homem Fácil, lançamento recente do catálogo da Netflix, não é uma comédia romântica. Ao usar a metáfora da ilustração de Magritte, a diretora e roteirista francesa Eléonore Pourriat dá a entender que o protagonista de seu filme realmente não é um “homem fácil”, assim como mulheres não são “fáceis” em nossa sociedade, já que essa é uma noção sexista usada para rebaixar um gênero específico. Do mesmo modo, a sátira de Pourriat não é comédia e não é romance, embora tenha elementos de ambos os gêneros e fale sobre eles.

A sociedade apresentada no filme lembra as sociedades utópicas e/ou distópicas que figuram em filmes de ficção científica, uma criação imaginária usada para satirizar e explicar traços de nossa realidade que uma parcela dela nunca experimentou — a parte que provavelmente não é oprimida. Em 1984, de George Orwell, é o cidadão comum que ousa tentar enxergar além do que lhe é oferecido. Em Fahrenheit 451, livro de Ray Bradbury adaptado para o cinema por François Truffaut, esse sujeito é quem tenta ter acesso a algo que não lhe é permitido. Jogos Vorazes apresenta a espiral de opressão quebrada pela garota que vem do lugar mais pobre daquela sociedade.

No filme de Pourriat, um homem de nossa sociedade patriarcalista vai parar em uma realidade onde o matriarcado é real. São as mulheres que dominam essa sociedade em que os papéis de gênero são invertidos. A cineasta já havia explorado a ideia de uma sociedade matriarcal e femista (que é diferente de feminista) em outra obra, o curta Maioria Oprimida, de 2010, que ganhou a internet apenas em 2014, se tornando rapidamente um vídeo viral na época. Sem contexto ou ligação com o conceito de realidades paralelas, o curta não introduz um protagonista acostumado a uma sociedade patriarcal tendo que se comportar em novo território como acontece em Eu Não Sou Um Homem Fácil. Em Maioria Oprimida acompanhamos um homem, Pierre (Pierre Benezit), que sempre viveu nessa sociedade femista.

No curta, acompanhamos um abuso sexual sofrido por esse personagem. Parece chocante a forma como todos ao redor respondem a esse abuso, tanto as mulheres daquele universo, a gangue que o comete, passando pela policial que o atende na delegacia, terminando em sua própria esposa. Mas essa reação de choque só ocorre devido aos papéis invertidos. Para as mulheres da nossa sociedade, a situação que acontece com Pierre é comum. As que nunca viveram algo do tipo são consideradas “sortudas”.

Em seu longa-metragem, Eléonore Pourriat conserta erros cometidos na obra anterior, como racismo e islamofobia que havia sido acusada de propagar no roteiro do curta, e nos imerge mais profundamente em sua sociedade, agora realmente apresentada como um mundo paralelo. Damien vai parar nesse mundo por causa de uma concussão, o que confere um invólucro etéreo para a trama. Se é tudo sonho ou realidade paralela, não é possível dizer, mas é também por uma concussão que a escritora Alexandra (Marie-Sophie Ferdane) vem para nosso mundo patriarcalista. Apesar do surrealismo, a opressão que os dois protagonistas experimentam é real.

Atenção: este texto contém spoilers!

No início, Damien se deslumbra por esse mundo comandado pelas mulheres. Ele estranha que seu ambiente de trabalho esteja repleto de mulheres, mas para o protagonista isso é algo bom. Sua chefe, que antes era uma colega para quem ele fazia convites e insinuações indecentes, agora se oferece para que ele cresça na empresa. Mas isso só se Damien fizer algo por ela, o que ele fica feliz em fazer até tocar em suas pernas peludas. O nojo e a repulsa de Damien pelos pelos das pernas de sua chefe é igual ao de Sybille (Blanche Gardin), que se recusa a dormir com ele por causa de seu peitoral peludo.

As roupas de Damien não são as mesmas. Os modelos são feitos para atrair o olhar feminino. Suas camisas são agarradas e as calças apertadas. Seu terno é composto por um blazer e um short curto que mostra suas pernas quase inteiras. Parece um absurdo. Um exagero. Uma realidade paralela onde mulheres assumem o papel em que homens têm na nossa deveria ser mais fiel. Em nossa realidade, mulheres não se vestem com roupas parecidas com as de Damien e não são relegadas apenas a empregos vistos como menos valorizados. Ou são?

Quando Alexandra acorda de sua concussão, presa em nossa realidade, é exatamente isso que ela vê. A sexualização do corpo feminino de um modo que beira a obsessão. Os anúncios e outdoors, as lojas. As roupas curtas e a objetificação de um jeito que a aterroriza. Ela descobrirá em breve que não é mais uma escritora famosa, mas sim apenas a secretária de um escritor — que costumava ser seu secretário. Enquanto isso, Damien tem o mesmo emprego nas duas realidades.

A guerra dos sexos em nosso mundo é uma falácia. O patriarcado é poderoso demais para que haja sequer uma comparação equivalente. Mas na realidade paralela de Alexandra essa guerra também não existe. O femismo e a misandria — realidades daquele mundo, mas não do nosso — são fortes o bastante para que o “masculinismo” seja uma piada recorrente entre mulheres em papéis de poder, algo que não passa de falsa simetria. A maternidade de Alexandra no mundo em que nasceu é temporária e conveniente para ela, apenas quando ela deseja ver a filha, já que é papel dos homens cuidar de crianças. É genético e hormonal deles. São os homens que tem o “instinto paternal” e que devem ficar na casa e educar os filhos.

Os homens são sensíveis e emotivos e as mulheres são racionais, o “sexo forte”. É assim que sempre foi para Alexandra e é inconcebível para ela viver em um mundo diferente. É genético e social que mulheres sejam as provedoras do lar, que elas sejam mais fortes fisicamente, e que sejam mais inteligentes. Uma mulher sem camisa é natural, não sexualizado, mas algo que mostra o quanto ela é “fêmea”. Um homem sem camisa ou com mamilos aparentes está pedindo para ser assediado. As inúmeras vezes que Alexandra aparece em cena sem camisa ou com ela entreaberta não são de forma  alguma sexualizadas para o olhar dessa sociedade. É impossível sexualizar o peitoral de uma mulher em um mundo onde ela dita as regras. Já o peitoral de um homem, quando depilado, pode ser motivo para um abuso. Ele estava pedindo.

Esse mundo sufoca. Damien se sente oprimido, pronto para voltar para seu próprio mundo onde transa com qualquer mulher que quer e seus pais não estão a toda hora lhe perguntando quando vai se casar. Onde Christophe (Pierre Benexit), seu melhor amigo, não é traído pela esposa, mas é ele quem trai. Onde o filho desse amigo não sofre um abuso no banheiro da escola. Damien não sabe nem como responder a isso. “Mulheres não podem te forçar a chupá-las, isso é insano!” Porém, isso apenas é absurdo em um mundo onde as mulheres não são as opressoras. No mundo de Damien, são os homens que forçam mulheres ao sexo oral, ou a qualquer outro tipo de sexo.

Sendo a mulher femista que é, o livro que Alexandra vem a escrever, inspirado na história de Damien, não se trata de um mundo bizarro que ela veio a conhecer, uma sociedade distópica onde mulheres são oprimidas. É sobre uma mulher que seduz um homem masculinista e ingênuo que tem ideias diferentes sobre como o mundo deveria ser. As obras de Alexandra não são sentimentais ou bobas como a dos escritores homens. Elas envolvem política e assuntos relevantes, realismo e suspense, mas não romance. Pelo menos não com finais felizes, pelo que observamos em Não Sou Um Homem Fácil, o livro.

Já em nosso mundo, romances e comédias românticas são uma espécie de resistência ao machismo e a dominação masculina. Não há vergonha alguma em histórias sentimentais, e muito menos em gostar de acompanhá-las. O clichê do homem poderoso que é subjugado pelo amor que sente pela garota ingênua é uma resistência feminista. A garota que não sabe como o mundo funciona ou que não se importa como ele funciona e vive por suas próprias regras, ou a feminista que age de maneira tradicionalmente masculina. São livros românticos que mostram a percepção da dinâmica de poder de nossa sociedade e como ela pode ser quebrada.

A reação de Damien ao saber que Alexandra já é casada é intrinsecamente masculina. Tanto em nosso mundo quanto na realidade paralela femista. Os sentimentalismos são legados aos homens, mas os rompantes de raiva também. O primeiro no mundo paralelo, o segundo no nosso. Aos homens é muito comum se enraivecerem e tomarem atitudes impulsivas, ferir suas companheiras, quebrar coisas; até mesmo matar. Mesmo que o rótulo de histeria seja legado às mulheres. É por isso que o tapa que Damien dá em Alexandra choca tanto. O espectador do filme é alguém que vive na sociedade machista que mata mulheres, que as espanca e mutila. O golpe parece desnecessário, fora de proporção, pois mesmo quando se sabe o funcionamento dessa sociedade paralela, não se pode escapar da consciência da violência que as mulheres estão sujeitas diariamente.

Mas alguns tipos de violência, em especial a sexual, não são passionais, não são respostas a patologias. São violência como demonstração de poder. O estupro sofrido por Damien não tem nada de “calor do momento”. É apenas uma amostra da mulher “alfa” no bar. Uma reivindicação de posse de qualquer corpo masculino às mulheres desse universo. Os homens não são deles mesmos, seus corpos não são de si mesmos, mas sim das mulheres, que podem fazer o que quiser com eles, quando quiserem e onde desejarem.

A homossexualidade, a transexualidade, tudo o que foge do padrão imposto pela sociedade femista, parece não ter espaço aberto nesse mundo de Eu Não Sou um Homem Fácil. A cultura drag — nascida e pertencente aos movimentos LGBTQ+ — vem ganhando a mídia e popularidade nos últimos tempos em nossa realidade. Porém, no mundo de Alexandra, todo o universo LGBTQ+ parece ainda pertencer ao submundo das casas noturnas. A boate/balada “RV” (“Retro-verso”) faz Damien se sentir de volta à nossa sociedade. Já a reação de Alexandra à felicidade dele a faz pensar que ele é gay, mesmo que ela pareça claramente conhecer o lugar e as pessoas que o frequentam. Alexandra saberia que a sexualidade e os gêneros são mais complexos que apenas como um homem ou uma mulher se vestem. Calças ou vestidos não fazem de uma mulher lésbica ou hétero e vice-versa.

Apesar de tudo, da homofobia e transfobia, do machismo e de todas as vidas tiradas por esses atos, nossa sociedade patriarcal parece estar mais aberta ao diferente do que a de Alexandra. Nas ruas da Paris femista, não existem lésbicas ou gays, apesar de no patriarcado ser “comum” vermos casais que fogem da heteronormatividade. Não existem travestis na vida noturna parisiense do mundo paralelo de Alexandra. Talvez Pourriat tenha escolhido retratar apenas uma classe elevada, sem pensar em detalhes além dos óbvios que nos são dados, exemplos caricatos e marcados. Talvez ela não quisesse ter que lidar com a repercussão que viria ao inserir personagens de orientações sexuais diversas em sua obra ou com características de gênero ambíguas. Já que o filme é uma sátira, talvez a diretora quisesse fugir de outras questões que surgiriam sobre esse universo que não estivessem dentro do assunto satirizado.

Como a própria Eléonore Pourriat diz através da personagem que interpreta no filme, a psicóloga de Damien, ela gostaria de ver um mundo balanceado, onde não houvesse apenas um gênero no poder. Onde a dicotomia feminino versus masculino não existisse. Esse sonho de Pourriat parece utópico e faz paralelo a realidade etérea “sonhada” por Damien. Ou melhor, em que Damien protagoniza seu pesadelo. Ao acordar em nossa realidade, Alexandra experimenta exatamente os mesmos sentimentos de Damien ao perceber que sua realidade foi alterada. Alexandra acorda de um sonho em meio a um pesadelo.

Ao final da obra, temos uma jornada do herói idêntica a seu início: um ciclo que se repete. Alexandra fará o mesmo caminho de descobertas que Damien. Algumas perguntas ficam sem ser respondidas, para a imaginação do espectador (Damien se lembra da realidade paralela? É provável, já que está na marcha feminista. Mas por que não estava na ambulância com Alexandra? Estaria ela no lugar de Damien e Christophe quando Damien acorda? Fugindo de homens que a estavam perseguindo?). Sua principal mensagem, contudo, Pourriat consegue passar: uma sátira ao poder que um gênero exerce sobre outro, e todas as suas consequências.

1 comentário

  1. Muito bom 👏👏. Acabei de assistir esse filme que gostei muito ….tudo foi pensado em detalhes da inversão. E o final me deixou no ar….mas hoje é comum deixar essa abertura para que possamos tirar nossas conclusões.

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