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Malcolm & Marie: você é o que você cria?

Dirigido e roteirizado por Sam Levinson, Malcolm & Marie resgata a fórmula minimalista de filmes que trazem discussões mais profundas sobre temas específicos: temos apenas dois atores, um cenário mais limitado — no caso, uma única casa filmada sob uma bela fotografia em preto e branco, um tempo limitado no qual a história se desenrola e muitos diálogos nos revelando um pouco mais de quem são os protagonistas do título, e elaborando sobre questões que vão além dos fatos apresentados ali. O roteiro de um filme com essa proposta precisa ser eficiente em revelar o passado dos personagens e ainda conseguir explorar aquele cenário para que as palavras e expressões dos atores se destaquem no ambiente reduzido. Além disso, histórias com essa ambição precisam ultrapassar as particularidades daqueles personagens, o cenário e as limitações de um roteiro puramente baseado em fatos para alcançar temas universais que conversem com mais pessoas que assistem o filme. A execução do longa acaba sendo competente em explorar reflexões que vão muito além daquela discussão do casal.

Atenção: este texto contém spoilers!

Malcolm, vivido por John David Washington, é um cineasta que acaba de voltar da estreia de seu primeiro grande filme. Ele está animado, ao contrário de Marie, a namorada bem mais jovem que vive com ele naquela casa isolada. Marie é interpretada por Zendaya e é uma modelo com ambições de se tornar atriz que demonstra uma insatisfação — disfarçada como indiferença — à empolgação de seu companheiro. Por alguns minutos, temos praticamente um monólogo de Malcolm, comentando sobre o evento que nunca vimos, até que enfim Marie começa a falar e entendemos o que houve durante a première que a deixou irritada: Malcolm se esqueceu de mencioná-la nos agradecimentos, em seu discurso sobre o filme.

Malcolm & Marie

A partir desse ponto, o casal começa a lavar toda a roupa suja de seu relacionamento. Os dois são extremamente imaturos: Malcolm tem um ego inflado e uma certa arrogância, pensamentos questionavelmente problemáticos apontados por Marie e uma relutância inicial em admitir seus erros. Já Marie é expressivamente dramática no sentido mais literal: não só ela exagera ao colocar suas emoções pra fora, com choros, gritos e expressões faciais e corporais que revelam seu interior, mas também usa de representações e atuações para provar seus pontos. Mas não são exatamente estas características que tornam Malcolm e Marie infantis.

Nas brigas daquela noite, que assistimos ao longo dos 105 minutos do filme, alguns dos pontos debatidos não parecem ser olhados com clareza por nenhuma das partes, e as discussões acabam voltando sempre nos mesmos pontos porque os dois não se propõem a construir algo que seja justo e compense a ambos. A disputa é muito mais sobre ego e tentativas de fazer com que um admita os incômodos que causam ao outro, embora pareça claro que há entre eles amor — o que aparentemente os mantêm unidos, apesar de um machucar o outro, no passado e durante a noite de brigas.

A própria forma como a discussão se desenrola não demonstra a postura disposta a construir algo em comum que solucione as diferenças entre Malcolm e Marie, pois não temos exatamente diálogos. O que vemos entre os dois são monólogos alternados em que um desabafa tudo que sente com poucas intervenções do outro e depois que tudo foi dito, o outro rebate e refuta as ideias em outro longo monólogo. Diálogos são construções em conjunto, pergunta e resposta, tese e antítese para que se chegue a uma síntese, a uma solução. O fato de não haver esse tipo de construção conjunta propriamente dita é um reflexo da incapacidade do casal de se conciliar, e o fim do filme nos aponta para a ideia de que aquele ciclo se repetirá com outras discussões, porque não só os argumentos levantados durante aquela noite são pontos antigos que não haviam sido resolvidos, mas também porque nenhuma proposta de conciliação surgiu entre toda aquela discussão.

Malcolm & Marie

No entanto, embora a maturidade dos personagens seja pouca, é compreensível que a briga se desenrole ao redor do fato de Malcolm não ter agradecido Marie em seu discurso. O que descobrimos depois de algumas rodadas de monólogos alternados é que, na verdade, a disputa não é meramente por ego porque um quer ser maior que o outro. O longa, na verdade, pode ser encarado com uma tese sobre o que é autoria, na qual Malcolm defende argumentos opostos aos de Marie.

O que de fato incomoda Marie não é exatamente ter sido esquecida no discurso. Aparentemente, teria sido menos doloroso ter sido esquecida se a história do filme de estreia de Malcolm fosse mais distante de sua vida. A protagonista criada por Malcolm viveu uma história de dependência de drogas, como Marie, e existem muitos pontos em comum levantados por Marie que poderiam indicar que sua trajetória pessoal havia inspirado a criação de seu namorado. Mais tarde, descobrimos também que Marie gostaria de ter atuado nesse papel, e um dos questionamentos que aparecem é: porque ela não foi escalada? Ela teria sido uma atriz muito melhor já que a história contada era — assim pensa ela — a dela. Afinal, a modelo de fato viveu todos aqueles sentimentos, ao contrário da atriz escolhida. Até mesmo o ciúme que parece ter a ver com a relação de Malcolm e a outra, na verdade se revelam relacionados ao protagonismo do tal filme de Malcolm

Os argumentos não são meramente egoístas, e Marie tem razão em questionar Malcolm. Afinal, o que dá a alguém o direito de recontar uma história que não aconteceu a ele, modificá-la e ainda adicionar camadas de significado diferentes sem sequer agradecer a pessoa que o inspirou por aquilo? Negar a participação e a inspiração de Marie no processo criativo é negar também parte de sua identidade. Não permitir que ela seja, no mínimo, reconhecida por sua contribuição e inspiração é justo, já que o filme pode dar a ele sucesso? É justo ser reconhecido por uma história que não é sua quando a co-criação foi negada a quem de fato a viveu na pele?

Malcolm contra-argumenta em seus monólogos, e ele também tem razão. Mesmo admitindo que sim, deveria ter agradecido a namorada, ele discorre sobre o processo de criação artística. Que sim, é uma interpretação da realidade, mas não apenas uma cópia precisa e exata. A ideia relembra o conceito de poiesis, termo grego que designa o impulso do espírito humano para criar algo a partir da imaginação e dos sentimentos. Mesmo que se inspire em matéria real, a poesia (daí o nome poiesis), e a arte como um todo, só existe a partir de como seu criador sente o mundo e o reimagina para criar algo novo. Malcolm entende assim sua autoria da obra cinematográfica que gerou aquela discussão entre os dois. Ele diz que, na realidade, a história do filme é uma coleção de várias memórias e observações que ele viveu ao longo de sua vida. A protagonista que ele criou tem algumas coisas em comum com Marie, mas ao recolher alguns dos acontecimentos para colocá-los no roteiro, Malcolm também coleciona impressões de suas ex-namoradas e outras mulheres em sua vida. Ao criar a personagem e o texto, Malcolm adiciona um pouco de si e de sua própria história e de outras pessoas.

Criar é, de fato, recolher um pouco dos outros e misturar a si mesmo para que algo novo surja, mas o impulso criativo parte de dentro do artista que reconta aquilo tudo sob uma nova perspectiva. Então, a autoria de seu filme de estreia não pode ser negada a Malcolm apenas porque ele se inspirou na vida de outras pessoas. Afinal, ele é o meio através do qual a história vivida por Marie ou pelas outras pessoas em quem se inspirou — incluindo ele mesmo — se ressignifica e se realiza em algo novo: a arte.

Tanto Malcolm como Marie têm razão na discussão, e o que parece ser uma mera disputa de egos é na verdade uma busca de reconhecimento de autoria. Isto porque todo criador põe um pouco de si naquilo que faz, e ter negada essa autoria é uma negação da própria existência. Essa dor que vem pelo não reconhecimento de Marie também é sentida por Malcolm quando a namorada argumenta que a história pertence a ela por ter sido inspirado nela, já que dizer isso é recusar-se a admitir que a arte é um olhar transformador do que existiu previamente.

Malcolm & Marie

Por serem ambos imaturos dentro daquela relação, mesmo que Malcolm seja alguns anos mais velho que Marie, os personagens não conseguem enxergar que talvez seja por isso que estão brigando e não por causa dos pequenos pontos levantados na conversa. Talvez, se fossem capazes de se enxergar com um olhar mais compreensivo, entenderiam que só querem (ou querem também) reconhecimento pelo que criaram, já que a arte é uma forma de deixar legados no mundo. Então, poderiam ter olhado um para o outro com compreensão, teriam reconhecido a co-autoria de ambos naquele projeto cinematográfico, e talvez a relação deles seria diferente, com ambos participando ativamente daquela reconstrução de suas histórias. Aí, a noite de estreia teria sido diferente para os dois, e aquela briga que se arrasta por toda a noite não teria acontecido.

Neste caso, Malcolm & Marie, o filme que assistimos, sequer existiria. Mas ao menos, o relacionamento dos dois poderia chegar a algum lugar, ao qual aparentemente não chegarão depois que os créditos sobem e paramos de acompanhar aquele relacionamento. Talvez, não resolver a questão abertamente seja também uma forma de demonstrar o que os dois, em suas infantilidades, não conseguem enxergar: os dois têm parte praticamente igual na criação daquele filme.