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Uma Separação: um mar de mistérios e divagações

Se você gosta da sensação de embarcar numa tour pelos pensamentos de uma personagem extremamente observadora, Uma Separação é o livro para você. Publicado pela Companhia das Letras, o romance da norte-americana Katie Kitamura é meio que um grande fluxo de consciência que deixa várias questões em aberto sobre os personagens e até, ouso dizer, me lembrou dela: Elena Ferrante. Sim. Eu digitei mesmo essas palavras. Mas vamos com calma.

A história começa com uma conversa entre a narradora, que não tem nome, e sua sogra, Isabella. A pedido da sogra, a narradora embarca em uma viagem repentina para a Grécia para encontrar seu marido, Christopher, que está sem dar sinal ou entrar em contato com a família a ponto de causar preocupação na mãe. O que Isabella não sabe, e a narradora resolve não contar, é que ela e Christopher já não estão mais juntos: o casal se separou há meses e a narradora já vive um outro relacionamento. Ainda assim, ela vai para a Grécia e se hospeda em um luxuoso hotel em uma pequena cidade para se encontrar com Christopher, tranquilizar Isabella e, ela também decide, pedir oficialmente o divórcio. O problema é que Christopher não está mais no hotel e ninguém sabe de seu paradeiro — ele saiu para uma viagem sozinho e deixou todas as suas coisas para trás.

Partindo disso, acompanhamos cada pensamento da narradora enquanto ela espera pela volta de Christopher no hotel. Ficamos sabendo o que ela pensa do ex-marido, do seu casamento, da separação, de Isabella e de personagens gregos que cruzam seu caminho durante a estadia: pessoas que trabalham no hotel, uma mulher que viveu algum tipo de romance com seu ex-marido, um taxista, uma carpideira (uma mulher que cumpre a tradicional profissão de chorar em velórios).

Os temas de Uma Separação são o que me fizeram pensar em Elena Ferrante durante a leitura. Aqui, como nos livros da autora italiana, você vai encontrar a figura da mulher traída, o homem infiel e conquistador, relacionamentos conturbados, pessoas com paixões inflamadas, pessoas cultas, desaparecimento e até um cenário praiano. Apesar dos temas ferrantescos, porém, Katie Kitamura não é tão bem sucedida em nos fazer sentir aquela proximidade que beira o absurdo que sentimos nas histórias da Ferrante. Um dos motivos, talvez, é a sensação de indiferença que a narradora passa. Apesar da narrativa intimista, não espere mergulhar em um poço de sentimentos: a protagonista é bem direta, desfiando pensamentos sem se deixar levar muito por emoções.

“O que uma mulher como ela quer, perguntei, o que ela deseja? (Seria, na verdade, o meu marido?) O que ela deseja? ele repetiu. Casar, ter filhos, morar numa boa casa. Havia irritação na voz dele. Isso era impossível, nenhuma mulher tem uma imaginação tão limitada, Maria não seria exceção. Ela me parecera ambiciosa, mesmo que suas ambições não necessariamente envolvessem requebrar em rede nacional de televisão, mesmo que sua ambição fosse tão somente escapar, de alguma forma ainda indefinida.”

A escolha pela trama se desenrolar na Grécia é bastante cinematográfica. É fácil imaginar os cenários descritos: a paisagem arrasada por incêndios florestais, o pequeno vilarejo, o mar, o contraste entre a vida local e o luxo do hotel e dos turistas. Por outro lado, não acho que esse cenário seja tão indispensável assim para a história. Não fosse na Grécia, poderia ter sido em qualquer outro lugar, sem grandes mudanças. Só entendi a escolha quando li em uma entrevista à Gama que o livro veio de uma inspiração que Kitamura tirou de uma viagem que ela própria fez à Grécia, cerca de uma década antes de começar a escrever.

O que de fato tem peso em Uma separação é Christopher. Não são só as reflexões da narradora sobre o tempo em que ela e Christopher estavam juntos, sobre a separação ou o desaparecimento: todos os outros pensamentos e observações estão impregnados de Christopher. Chega a ser repetitivo o quanto a narradora tenta convencer de quão charmoso e marcante é esse homem.

Ainda assim, as questões em aberto sobre Christopher são uma das coisas que mais gostei na leitura. Acho delicioso conhecer personagens pela metade, sabendo apenas o que outras pessoas pensam dele e não encontrando nenhuma resposta mais concreta. Com Christopher é exatamente isso o que acontece; afinal, ele nunca chega a aparecer na história no tempo presente. Não sabemos como ele age, o que ele diz, como interage com outras pessoas. Tampouco descobrimos o que ele foi fazer na Grécia, para onde foi quando deixou o hotel, qual o motivo de deixar todas as suas coisas para trás nem o que o levou a seu desfecho misterioso e inexplicável. Para citar a autora na já mencionada entrevista à Gama:

“Uma das mentiras mais maravilhosas da ficção é a de que tudo termina de forma bem resolvida. […] E, na vida, há situações em que você simplesmente não sabe, mistérios que não consegue resolver.”

Sabemos apenas aquilo que a narradora nos conta e o muito que ela imagina que pode ter acontecido. A narradora de Uma Separação é uma grande fanfiqueira e essa é a característica que mais gosto nela. Desde encenar pequenos episódios em sua cabeça até criar uma cisma que não vai a lugar nenhum sobre o envolvimento de uma pessoa em uma morte — cada divagação aproxima a protagonista de qualquer pessoa com a mente solta na vida real. Como ela própria diz em certo momento, “imaginar, afinal, não custa nada, viver é que é a parte mais difícil”.

O luto é um tema muito forte na segunda metade do romance. E também é um tema sobre o qual eu sempre gosto de ler. Katie Kitamura conseguiu entregar bons trechos sobre luto, tanto pelo viés do choque e de como lidar com uma morte inesperada quanto pela visão mais anestesiada de alguém que não sabe muito bem como se sentir (ou que, talvez, não soube como transparecer esses sentimentos).

“Havia algo de egoísta não apenas no luto de Isabella, mas em todo luto, que no fundo diz respeito não a quem morreu, mas aos que ficaram para trás. É como um ato de arquivamento: o morto se torna fixo, sua vida interna deixa de ser o mistério insondável e insolúvel que talvez já tenha sido um dia, de certa forma seus segredos já não interessam mais.”

É um livro curto e de leitura fácil. Comecei esperando por algo mais próximo de um thriller, mas não foi exatamente isso que encontrei. No fim, terminei um pouco dividida pela experiência. Gosto dos temas, da escolha pelo não resolvido e da forma de escrever de Katia Kitamura. O suficiente para pensar no que mais virá da autora. Mas, acho que falta alguma coisa. Sabe aquela coisa meio abstrata que te fisga e faz uma história bater de um jeito diferente pra você? Para mim, faltou isso.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.


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