Categorias: LITERATURA

“O comum é ser vulgar”: A Proclamação da Vulgaridade ou Quantos Furos Uma Calcinha Pode Ter?

Mila Teixeira proclama uma vulgaridade especial em sua escrita. Ao encontrarmos em seus versos partes da vida que geralmente não se compartilha com ninguém, somos levados ao que originalmente significa vulgar: comum, corriqueiro, banal. É curioso pensar em como o que era comum e corriqueiro vira alvo de mistério, de tabu. De repente, o que era público vira íntimo. Mas a poeta, em seu primeiro livro, desvirtua o vulgar. Traz o sabor da língua do povo em suas próprias palavras e abre as cortinas de sua janela, convidando o leitor a espiar sua literatura intimista e vislumbrar a si mesmo.

“até que ponto o adiamento das coisas faz com que as coisas se 
tornem incontornáveis
te pergunto isso porque o tanto que eu adiei dizer o que tenho
pra te dizer e parece
pelo menos prosaico por que me veio essa palavra agora ela não
faz parte de mim e
parece pelo menos vulgar que também é outra palavra que não
faz parte de mim quer
dizer faz um pouco a vulgaridade faz parte de mim eu não
preciso olhar a definição eu
só quero que faça quero proclamar minha vulgaridade (…)”

Um dos poemas que dá título à obra revela o carinho que Mila tem por suas palavras, buscando se pronunciar antes que o não dito se torne incontornável. “Eu não quero falar num idioma incompreensível”, ela defende, enquanto presenteia o leitor com as coisas que ele talvez não saiba como dizer. Muito além do retrato de emoções e memórias, a sua inspiração vem das mais diversas sensações que se pode provar. As aventuras de um corpo livre, que se conhece bem, a visão que engana ao se apaixonar apenas por uma foto, o odor que o mundo tem, o calor que desafia um “arno turbo silêncio maxx”. O que muitas vezes é jogado fora acaba se transformando em poesia. Na composição de seus versos até mesmo a decomposição de uma barata e uma casca de banana encontram seu lugar, testemunhando as ações do tempo.

A Proclamação da Vulgaridade ou Quantos Furos Uma Calcinha Pode Ter?

Entre os seus versos, que são genuinamente seus, ela estabelece paródias com diversos nomes e personagens que fazem parte do cenário da literatura brasileira. Não somente em suas referências, a cultura brasileira é latente em seus escritos. É o que vemos em “agora, um poema sobre o destino”, em que o trágico fim de “isabela” encontra A Hora da Estrela e Machado de Assis. Em “Ismália (tomou o rumo dela)”, personagem que já retornou a nós entre tantas metamorfoses — como a música “Ismália”, do Emicida —, Mila brinca com o seu destino e a superação de infernos astrais. Se corrige quando diz “Quando Ismália enlouqueceu”, pois, quer dizer, “quando dizem que Ismália enlouqueceu”. Ela se desprende das amarras de sua zona de (des)confortos, toma o que é seu por direito e recomeça a vida em um quiosque em Cabo Frio (queria, certamente, a lua do mar).

Ainda no campo das inspirações, Mila conversa com Virginia Woolf, Adélia Prado, Adília Lopes, Hilda Hilst, Valeska Popozuda e outras personalidades que são convidadas a habitar o cotidiano de seu eu lírico. Revela ao leitor suas referências, os seus gostos, os caminhos que suas palavras trilharam até se tornarem a obra em tela. E dedica um espaço para a reflexão do ser poeta, afinal, sua dedicatória é feita às mulheres que escrevem, e que sabem que tudo que escreverem/dizerem será usado contra elas.

“Hilda Hilst disse que esse negócio de poesia
não dá dinheiro nenhum (…)
poetas acumulam: 
(as que não são herdeiras, pelo menos)
boletos
saldos negativos
empréstimos
ligações de São Paulo e
precisam trabalhar em agências
de publicidade
escrever comerciais
dá algum dinheiro
não se engane não
muito” 

A sensualidade, palavra que muitas vezes é sinônimo de vulgaridade na boca do povo, se apresenta em sua escrita de forma nua e, por vezes, crua, natural. Como o poema “Possibilidades”, que intercala atos de prazer à narrativa do primeiro encontro de um casal barulhento, de espantar os vizinhos. Fruto de uma poesia de sensações, em que o eu lírico desnuda um corpo livre, que decide por fogo nas calcinhas, “declarar guerra ao poliéster”, como Caio Riscado ressalta em seu prefácio, e retirar a polarização existente entre roupas íntimas e gênero.

Também em versos livres, as imperfeições são retratadas como parte do cotidiano. Diagnósticos, alergias, cicatrizes preferidas que, lado a lado, contam um percurso de vida. Abre-se espaço para hábitos duvidosos, movidos pela curiosidade ou pelo ritmo automático da vida: um remédio fora da validade, arroz a 25 reais o quilo, um caderno amarelo que cai, escritos que são espiados e o fogo que consome as provas do crime. Uma série de pequenas inconveniências que são inerentes ao dia a dia ou acabam por transformá-lo completamente.

Contudo, a impressão que nos atravessa é a de que, em suas palavras, é possível encontrar sinceridade. São sensações humanas, genuínas, às vezes em tom de humor ou paixão, uma paixão singela por todos os retalhos da vida. São traduções verbais de elementos que apenas podemos sentir. Por isso a proclamação, palavra que nos desperta uma imponência, está presente no título da obra. Trata-se de um manifesto pelo direito a retratar as banalidades da vida, o que nos torna verdadeira e imperfeitamente humanos.

“eu não quero falar num idioma incompreensível 
se os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo
e os limites do meu mundo passam por te limitar e limitar.”


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes, que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados. Se interessou pelo livro? Clique aqui e compre direto no site da Amazon!