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Corpo Desfeito, coração presente

Jarid Arraes já é um nome conhecido no cenário literário brasileiro pela potência de seus cordéis, contos e poemas. Entre as histórias publicadas, faltava um romance na prateleira da cearense. Sua estreia nesse formato, intitulada Corpo Desfeito, foi publicada pela Alfaguara, selo da Companhia das Letras, em junho deste ano. Ambientado no interior do estado onde a autora nasceu e acompanhando a rotina de uma menina que sofre com os abusos físicos e psicológicos da avó, a escritora compõe o retrato de uma juventude partida, mas que ainda tem um coração que bate forte, apesar dos desejos da garota.

“Queria esse descompasso, queria que meu coração arranjasse sua própria velocidade, diferente das batidas de todas as outras pessoas, e que eu pudesse me exibir na escola falando que a vida era distribuída em marcha lenta por minhas veias.” (p. 17-18).

Família queimada pelas letras do silêncio

A narradora Amanda tem poucos anos de vida quando já entende o sofrimento de sua mãe, que deu à luz a ela quando ainda era uma adolescente. No alto dos seus 16 anos, é a jovem quem assume as contas de casa, dando conta de três empregos diferentes durante a infância da filha. Enquanto isso, a criança vive entre o avô, agradável ou indiferente à menina, porém agressivo e cruel com as outras duas mulheres, e a avó, que endossava o ciclo de violência ao destratar filha e neta. Mesmo presas nessa teia complexa, a relação entre a mãe e Amanda é de muito amor e principalmente de cumplicidade.

Apesar da narrativa ser da criança e não da genitora, todas as ações que impactam no andamento da trama têm origem em Fabiana, seja no nascimento de sua filha, seja em sua morte prematura no dia do aniversário de 12 anos da garota. No meio do luto que a avó Marlene se encontra, resta a Amanda ser o pilar da casa, mesmo tão nova. Pouco tempo depois, o avô Jorge também falece, diminuindo o fluxo violento sob Marlene. Contudo, isso não significa que as coisas melhoram para a jovem.

Refletindo a posição onde milhares de garotas se encontram, Arraes cria um relato duro de uma infância sendo aos poucos esvaziada. É o início de um martírio juvenil regido pela falta (principalmente de afeto) e pelo extremismo (causado pela ausência). A controladora Marlene tenta de todas as formas cercear a neta: não fale, não faça, não use. Alegando receber recados divinos da falecida (e agora santa) mãe de Amanda por meio de sonhos, as regras da casa ficam cada dia mais insustentáveis, fazendo a garota definhar ao longo de pouco mais de um ano.

Estou carregando pedras dentro de mim. Mas não estou sozinha.

Se o sofrimento da menina é uma constante no livro, também é a presença de sua melhor amiga. De personalidade diferente de Amanda e com uma constituição familiar que a permite crescer normalmente, Jéssica é o farol da protagonista ao longo da narrativa. Juntas, as duas dão risadas, fofocam, cantam os maiores sucessos de Britney Spears e acima de tudo, são felizes. É no acalento de uma amizade que ameniza as piores dores que nasce um amor maior que todas as expectativas ruins.

“No fim do dia, com o corpo desfeito de tanto chorar, quis estar com Jéssica. Que suas risadas preenchessem todas as perfurações em mim. Porque ela tinha interesse pelas circunstâncias que formavam histórias.” (p. 58)

Seja na escola ou na fazenda da tia, Amanda raramente esquece que sua avó está sempre à espreita, que suas “transgressões” terão consequências. Entretanto, os momentos do livro que mais se sobressaem são os de carinho dos outros personagens com a menina, as pequenas palavras e gestos de acolhimento e preocupação. Mesmo que fisicamente sozinha, são esses acontecimentos, muito bem construídos e distribuídos ao longo da narrativa pela autora, que enchem a personagem de coragem para levantar-se mais uma vez.

Como seria o melhor dia da minha vida?

Jarid Arraes nos confronta com uma realidade que gostaríamos de ignorar, mas não podemos: a violência está muito presente no nosso lugar familiar, que supostamente deveria nos proteger e cuidar. Sua escrita é feroz, mesclando bem o ritmo do falado, os pensamentos cercados por inocência e graça e as reflexões de quem passa por um sofrimento diário. Ao longo de pouco mais de 100 páginas, a autora não nos deixa descansar, muito menos desviar os olhos dos parágrafos.

Corpo desfeito é um romance que reverbera alto, e quando esperamos da protagonista Amanda o mais óbvio, ela surpreende com a experiência de quem já viveu muito, apesar da pouca idade e com o carisma da juventude, que nem a força dos acontecimentos conseguiu apagar. Se a materialidade do corpo se desfaz em lágrimas, o desejo e o coração seguem presentes e cada dia mais fortes.


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