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As mulheres de The Expanse

Existem muitas coisas que fazem de The Expanse não só uma das melhores séries de ficção científica no ar hoje, mas um dos melhores produções atuais de maneira geral. Na história, que foi desenvolvida inicialmente pela emissora Syfy, a humanidade está 300 anos no futuro e já conseguiu fazer o que muitos esperam se tornar realidade: colonizar uma boa parte do sistema solar. Nesse sistema, eles são separados e classificados como terráqueos, aqueles que nasceram na Terra, como o próprio nome aponta; os marcianos, nascido em Marte; e, por fim, os “belters”. Esses, por sua vez, nasceram no que eles chamam de “Asteroids Belt”, a união composta por os asteroides ou as luas entre os planetas que ficam entre a Terra e Júpiter. Lá, as pessoas são divididas em facções. Como toda boa ficção científica, a expansão do universo criado pelo escritor James S. A. Corey, cuja obra da TV se baseia, é rica e inteligente, mas não é nem de longe o principal e melhor aspecto da produção. Assim como em Battlestar Galactica e outros shows de sci-fi contemporâneos, as tramas políticas e pessoais que se desenvolvem como prioridade no roteiro, tornando o que já é especial e bom, em algo excelente.

Atenção: este texto contém spoilers!

Para entender The Expanse e seus dilemas morais, é preciso entender um pouco sobre a política que envolve a série. Quando a história tem seu pontapé inicial, a Terra é um planeta superpopulado e governado pelas Nações Unidas, que mantém um relacionamento complicado com Marte, esse por sua vez uma grande potência militar. Se a Terra não chega nem aos pés de Marte quando o assunto é poder militar, Marte tenta constantemente criar, no seu planeta, uma experiência que se assemelhe à vida na Terra. O ar natural, o mar e a natureza em geral são coisas que eles aspiram imitar, criando uma experiência parecida em Marte — algo que, segundo a narrativa, vai demorar umas boas três gerações. O que os dois têm em comum? Políticas fortes e nacionalistas que prezam, acima de tudo, pelo bem do seu próprio planeta. Mesmo que o custo seja a destruição dos outros. No meio disso tudo, estão os Belters. Os asteroides onde os Belters vivem são, geralmente, ricos em matéria prima. Mesmo eles sendo o centro de importação de bens essenciais para a sobrevivência da Terra e Marte, eles são excluídos e são privados de direitos básicos. Existe uma organização política chamada The Outer Planets Alliance (OPA) que, no caso, fora criada para servir como um sindicato, mas ela por si só está cheia de corrupção, garantindo ainda mais a marginalização dos próprios Belters.

Terra, Marte e os próprios Belters têm histórias e culturas que são completamente diferentes entre si, sendo que suas limitações e pontos positivos vem desse mesmo aspecto. Os Belters, por exemplo, tiveram que aprender a sobreviver no espaço e, portanto, as gerações mais recentes já nasceram com corpos que são adeptos ao espaço e não conseguem sobreviver à gravidade da Terra. Eles têm uma língua própria, e sinais que usam para se comunicar quando estão com trajes espaciais. Já Marte, apesar de ter os melhores cientistas e engenheiros, tem que lidar com o problema de viver sempre em uma superfície subterrânea, enquanto a Terra tem mudanças climáticas preocupantes, resultado de anos de negligência, guerras e falta de políticas ambientalistas (como estamos vendo na nossa própria realidade).

The Expanse explora muito bem cada aspecto desses lugares tão distintos e coloca, no centro de cada uma dessas narrativas, personagens que são ainda mais interessantes do que o sistema político em si. No começo, a figura central que acompanhamos na Terra é a política Chrisjen Avasarala (Shohreh Aghdashloo), enquanto em Marte é Bobbie Draper (Frankie Adams) e o Detetive Miller (Thomas Janes) representa os Belters.

The Expanse

Ao mesmo tempo que o lado político e social é desenvolvido pela narrativa, respeitando o contexto espacial e limitador que existe entre os personagens, uma trama sobre algo que eles chamam de “proto molécula” nasce e se transforma aos poucos, e quem está no centro desta história são os tripulantes da Rocinante — e os protagonistas da série. De certa forma, a trajetória dos personagens citados anteriormente também gira em volta do mistério da proto molécula e do que, afinal, ela é. Assim como existem conflitos que surgem da possibilidade que essa molécula abre (como, por exemplo, ela se tornar uma arma, sendo que a nação que está em sua posse é a que tem vantagem). Mas é James Holden (Steven Strait), Naomi Nagata (Dominique Tipper), Amos Burton (Wes Chatham) e Alex Kamal (Cas Anvar) que passam a investigar o problema com mais afinco e se tornam responsáveis por grande parte das consequências que vêm com essa trama.

Os protagonistas da série e os tripulantes da Roci (apelido carinhoso que eles dão à nave) estão no centro de tudo não só porque a relação que nasce entre eles é genuína, como uma família, mas também porque eles são pessoas de contextos e passados diferentes, mas que acabaram se unindo por objetivo em comum. Existem problemas que surgem com o tempo, justamente por esses mesmos fatores, mas eles aprendem a superá-los e a relação que existe ali parece existir para além do contexto político e social que envolve o resto da narrativa. E quanto mais a história vai se desenvolvendo, crescendo e se tornando algo mais, mais a amizade deles parece se tornar a única constante dentro do escopo do seriado — e, talvez, a solução para grande parte dos problemas apresentados pela narrativa.

Quando Brooklyn Nine-Nine foi cancelada pela FOX, um barulho sobre a série começou a ser perpetuado pela internet, assim como um discurso positivo sobre a forma que a produção, criada por Michael Schur, merecia algo melhor do que lhe foi dado. O questionamento geral era esse: como uma obra como essa, que usa seu humor extremamente leve e pertinente para abordar assuntos sensíveis e complicados de forma tão clara, pode acabar sendo cancelada com tão pouco sentimento em relação não só àqueles que tocam a produção diariamente, mas também aos seus fãs? A resposta é dinheiro, obviamente, mas mesmo assim a sensação amarga deixada não se dissipou tão rápido quanto o esperado. B99, no entanto, tinha um base sólida e bem vocal de fãs, que foram pedir pela sua renovação. Algo que foi atendido pela emissora NBC, e garantiu mais três temporadas adicionais para a produção, que vai ganhar um final digno na sua oitava temporada. Na mesma época, The Expanse sofreu um destino bem parecido.

Após ser cancelada pela Syfy, existiu uma movimentação bem barulhenta sobre uma possível salvação para a série, que foi atendida pela Amazon Prime, garantindo uma quarta, quinta e eventualmente sexta temporada, que será a última da obra e estreia em algum momento de 2021. Com uma grande produtora por trás e a oportunidade de expandir não só o universo mas também alcançar um público maior (uma vez que a Amazon é um streaming mundial e não apenas uma emissora local), The Expanse elevou sua potencial ainda mais e se transformou em algo atemporal, humano e, em alguns momentos, até mesmo comovente. E no centro de tudo isso, as narrativas de suas personagens femininas foram não só o maior destaque, como também podem ser o maior legado deixado pela série.

Não precisa ser um grande consumidor/crítico de cultura pop para saber que quando se trata de mulheres em produções de gênero, as representações nem sempre foram as melhores. Construídas em cimas de estereótipos prejudiciais como, por exemplo, Mary Sue ou aquelas que reforçam o conceito vazio do “girl power”, personagens femininas em obras de terror, fantasia e principalmente ficção científica foram negligenciadas e deixadas de lado em prol de desenvolver o herói/protagonista homem. Mais do que isso, elas parecem existir apenas com o objetivo de causarem alguma coisa nos mesmos personagens. Obviamente, grande parte do problema dessas narrativas existirem e serem tão famosas é o fato de que existem muito mais homens trabalhando por trás das câmeras de grandes produções do que mulheres, fator que é reconhecível não apenas pela forma como são retratadas nas telas, mas também como seus colegas as veem. De qualquer forma, isso é algo que está mudando aos poucos e The Expanse representa uma boa parte da porção dessas mudanças positivas.

The Expanse

Apesar de existirem alguns personagens masculinos que se destacam na narrativa (Amos, por exemplo), a maior parte dos arcos mais complexas estão atreladas às personagens femininas. E nenhuma delas parece se encaixar na caixa de características destinadas às mulheres em obras de gênero. Com contextos sociais e políticos completamente diferentes entre si, essas personagens são falhas, resilientes e ocupam um papel fundamental na sociedade em que estão inseridas — seja ele qual for. São elas que empurram a narrativa para frente e que ditam o tom da obra, assim como carregam os dilemas mais interessantes de acompanhar (por mais inesperados que eles se tornam ao longo da série).

Naomi Nagata 

Naomi, interpretada pela atriz britânica Dominique Tipper, é a protagonista da história e uma Belter. Sua trajetória na série é baseada na família que ela encontrou com James Holden e o resto da tripulação da Rocinante, ao mesmo tempo que é sobre tentar superar seu passado e seguir em frente. Naomi é extremamente inteligente e empática, ao mesmo tempo que é, de longe, uma das personagens mais complexas da série — se não a mais. Acompanhar sua jornada até a quinta temporada foi uma das coisas mais impressionantes que vi nos últimos anos, com um pay off extremamente emocional e que encaminhou a personagem para ter seu arco finalizado de forma brilhante dentro da produção.

Belter e engenheira, anteriormente Naomi era um membro estimado da OPA e acabou se apaixonando por um dos líderes das facções, Marco Inaros (Keon Alexander). Juntos, os dois tiveram um filho e lutavam contra as injustiças que acometiam os Belters, até o momento em que Inaros atacou uma nave com a ajuda de Naomi e, sem consultá-la, acabou matando milhares de inocentes no processo. Após tentar terminar tudo com Marco e seguir em frente com a sua vida, o líder sequestra o filho dos dois para tentar manipular Naomi a ficar com eles. Depois de uma grande procura pelo menino (que estava, inclusive, sendo escondido por alguns dos seus “amigos” mais próximos, em acordo comum com Inaros), a protagonista deixa sua posição atual e vai procurar se ocupar em outros lugares no espaço, abandonando sua antiga vida e tentando seguir em frente, mesmo que machucada pela forma como a situação se desenrolou com Marco. É fugindo da sua vida anterior que ela acaba encontrando Amos, Holden e Alex, e os três formam uma pequena família na Rocinante.

Durante sua trajetória nas primeiras temporadas, Naomi navega em uma linha tênue. Ao mesmo tempo que compartilha a vida com homens que vieram da Terra (Amos, Holden) e Marte (Alex), sempre tentando achar o meio termo e o que é melhor para todos eles em conjunto, ela também tem que lidar com sua origem, que sempre será Belter. E apesar de ver as coisas de uma forma muito diferente de Marco, sem a parte do terrorismo, principalmente, ela é patriota e ainda pensa no seu povo. Naomi prova isso quando os tripulantes da Roci ficam em um posse da proto molécula e, ao invés de deixar escondido na nave e achar uma solução com os seus colegas, ela dá para Fred Johnson (Chad Coleman), um dos líderes da OPA que, apesar de ter nascido na Terra, luta constantemente pelos direitos dos Belters. Seu raciocínio nasce do fato de que, se a Terra e Marte já tivessem a proto molécula (como a própria narrativa tinha indicado), os Belters iriam ficar ainda mais em desvantagem. Com a proto molécula, no entanto, eles teriam, talvez pela primeira vez em muito tempo, uma vantagem política e uma estratégia em ação.

Apesar dos seus colegas na Roci terem ficado bravos com sua decisão de dar a proto molécula para Johnson, principalmente porque ela fez isso pelas costas deles, é completamente compreensível sua mentalidade. Mesmo com os problemas da Terra e de Marte, seus colegas cresceram em ambientes que não necessariamente tem o mesmo tipo de opressão estrutural que existe nos asteroides, e então como eles poderiam entender da onde exatamente Naomi estava partindo? Ela ama seus companheiros, especialmente Holden, com quem tem um relacionamento amoroso, mas faz sempre o que acha certo e segue seus direcionamentos sem deixar que ninguém entre em seu caminho. Foi assim com Marco Inaros, e agora com a proto molécula.

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Inaros, inclusive, é o grande vilão da quinta temporada da série. O personagem não apenas é um líder com tendências terroristas e um grande problema para a causa dos Belters em si, como também é um homem manipulador e que durante muitos anos praticou um gaslighting terrível com Naomi. Ele colocou a conta de milhares de vidas nas suas mãos (já que ela foi responsável por alterar a nave que explodiu e matou inocentes, sem saber o resultado), fez com que ela se sentisse mal por deixado o filho (que ele mesmo sequestrou) e manipulou as situações para que Filip (Jasai Chase Owens) acreditasse em algo que não necessariamente é verdade. Ele perseguiu, prendeu e tentou matar Naomi diversas vezes, apenas para afetar seus companheiros na Rocinante. E no final, ainda fez com que ela se sentisse culpada por tudo isso.

A quinta temporada até agora foi a mais importante para Naomi, já que ela finalmente teve permissão para lidar com seu passado. Ao ser sequestrada por Marco e seu filho, teve que enfrentar o que aconteceu todos aqueles anos atrás e tentar arrancar Filip da manipulação constante de seu pai. Fica claro desde o primeiro momento que, muito como Naomi, Filip também é uma vítima de gaslighting e está constantemente sendo desprezado e enrolado pelo próprio pai, que consegue transformá-lo em uma versão mirim de si. Mesmo tentando encontrar uma convergência com o filho, Filip parece estar perdido demais na própria dor e ajuda o pai a mandar sua mãe para a morte em uma nave que vai explodir assim que a Roci se aproximar.

Naomi consegue arranjar uma forma de converter o destino que lhe foi dado, mais uma vez, e se salva, não sem antes uma boa dose de sofrimento e agonia, criando um dos momentos mais lindos e catárticos da série após sua libertação. Depois de todos aqueles anos sofrendo pelo filho e o que Marco fez, ela sabe que tentou de todas as formas reverter a situação e mesmo que o resultado não tenha sido o esperado, ela pode finalmente arcar com as consequências de forma completa e seguir em frente. Mesmo que isso seja dolorido. É interessante perceber como The Expanse constrói a maternidade de Naomi — não como algo que a limita, mas sim uma das suas várias facetas dentro da narrativa. Ela é mãe e sua trajetória com Filip e Inaros é uma grande parte da sua vida, mas não necessariamente é o que a define, sendo que ainda é uma mulher completa, com paixões e motivações. No final, é isso que faz toda a diferença.

Era muito fácil deixar Naomi se encaixar no estereótipo da mulher negra e forte, que aguenta sofrimento atrás de sofrimento sem espaço para falar sobre os seus sentimentos e se apoiar nos outros ao seu redor. Mas isso não é o que acontece. Seja pela forma como Naomi constrói uma família na Roci, na sua amizade com Amos e Camina Drummer, pelo seu relacionamento com Holden ou até mesmo pela forma como ela está sempre em controle do seu destino e das suas escolhas, a narrativa deixa Naomi ser vulnerável, falha e humana, fazendo com que ela se torne uma das personagens mais interessantes da TV hoje.

Camina Drummer 

“Na vida real, sou uma mulher indígena. Para mim, particularmente, as questões sobre quem tem acesso a água e ar limpos é algo muito relevante porque muitas reservas ainda enfrentam esses problemas todos os dias. É de explodir a cabeça saber que muitos vivem com um luxo exorbitante, enquanto outros são tão oprimidos”, disse Cara Gee durante uma entrevista na Comic Con de Nova York, quando foi divulgar The Expanse.

Na série, Gee, uma das poucas atrizes indígenas que têm um papel ativo em uma produção de gênero, vive Camina Drummer, capitã e líder Belter.

Drummer começou com um papel tímido na série e foi se tornando uma personagem maior com o passar dos episódios. Toda vez que Cara Gee entrava em cena, ela roubava a atenção de todos e mostrava um novo lado da personagem, mesmo que a narrativa tivesse como foco outras pessoas (pelo menos na época). A atuação de Gee, muito como a própria Camina, é destemida e ferral. E talvez isso venha do fato de que, assim como sua personagem, a atriz também sempre lutou pelos direitos do seu povo e tem uma identificação muito grande com a motivação da própria Drummer.

Apesar de ser a amiga mais próxima de Naomi (uma das relações mais interessantes da série), as duas sempre foram um contraponto pertinente. Naomi está sempre mais centrada na sua família na Rocinante, e Drummer sempre está tentando liderar uma nave Belter, lutando constantemente pela liberdade do seu povo. As duas, de muitas formas, amam e prezam pelos Belters, mas têm visões essencialmente diferentes sobre a forma certa de fazê-lo. Camina também tem contato com dois membros importantes da OPA: Anderson Dawes (Jared Harris) e o próprio Fred Johnson. Assim como ela e Naomi, eles também têm visões bem diferentes de como lidar com a rebelião, sendo que Dawes adota uma postura mais radical. Drummer está sempre no limiar entre os dois, e tomou lições de ambos os líderes, algo que ajudou na sua formação como líder — e contribuiu para sua jornada na quinta temporada.

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Muito como foi para Naomi, a quinta temporada foi, até agora, a mais importante quando se trata do desenvolvimento de Drummer. Depois de deixar o comando da nave principal dos Belter, ela se torna líder da tripulação de uma nave chamada Bewalt, que é convocada por Inaros para se juntar à sua causa. Declarar apoio a ele é dizer que apoia sua ação de atacar a Terra e suas medidas terroristas, e Camina não concorda com o que aconteceu. Com medo das consequências, no entanto, ela declara apoio a Marco, e tenta seguir o seu caminho.

Para entender seu arco no quinto ano é preciso mencionar sua dinâmica na Bewalt. Além de líder e capitã dos tripulantes, Camina Drummer também tem uma relação poliamorosa com cada um deles, um casamento que é conhecido como “ketubah”. Cada um ali tem uma função importante na dinâmica e leva algo essencial para a relação, assim fazendo com que eles se tornem uma família. Essa não é a primeira família poliamorosa que existe no mundo de The Expanse, inclusive, e Holden, foi concebido de um relacionamento mútuo entre oito pessoas — sendo que cada uma delas deu um pouco de sua genética para formá-lo e uma mulher, chamada Elisa, carregou-o na barriga. É importante mencionar isso porque é muito comum ver produções de ficção científica onde o mundo é completamente diferente e avançado do que vemos, mas os relacionamentos explorados ali ainda são muito baseados na monogamia heterossexual da Terra. Parece pertinente que seja Drummer, de longe a personagem mais revolucionária e distinta da série, que seja o catalisador para essa narrativa.

O relacionamento poliamoroso de Camina é interessante não só porque trás um ponto de vista diferente para este aspecto nas obras de sci-fi, como também cria um conflito que acompanha sua trajetória na quinta temporada. Ao mesmo tempo que ela tenta proteger sua família, também acha errado e discorda completamente da forma como Marco Inaros age. Como Naomi está muito envolvida com sua trama pessoal com o filho, o trabalho de contraponto ao terrorismo de Inaros fica por conta de Drummer e isso se prova uma decisão muito bem tomada pelos roteiristas. Ela é, afinal, uma mulher que vai lutar pelo seu povo e usar toda a sua voz para isso, mas ao mesmo tempo também segue seus instintos para ir na direção certa. A mensagem é clara: existe espaço para ser duro na sua política e radical, mas sem necessariamente partir para o terrorismo, como Marco.

Quando ela descobre que a vida de Naomi está em perigo e que não existe outra escolha a não ser fazer a coisa certa, Drummer muda de lado e deixa sua parceria recém forjada com Inaros, passando a ajudar Holden e possivelmente se tornando uma figura central na sexta e última temporada. Camina Drummer pode não ser a protagonista ou sequer ter a trama mais elaborada dentro da série, mas é com certeza a líder mais determinada e interessante da obra. E a atuação de Cara Gee serve para reforçar esse sentimento em todos os momentos em que ela está presente nas telas.

Julie/Clarissa Mao

Apesar de serem duas personagens distintas e com trajetórias mais diferentes ainda, Julie e Clarissa Mao são irmãs e têm, de certa forma, jornadas que são consequência uma da outra.

Julie, vivida por Florence Faivre, é filha de Julie-Pierre Mao (François Chau), uma das figuras fundadoras da busca pela proto molécula e incentivou as pesquisas para transformá-la em uma arma. Ao perceber o que seu pai estava fazendo, Julie deixa seu lar confortável na Terra e passa a viver entre os Belters, onde faz parte da resistência e assume um papel ativo na hora de tentar parar o seu pai e a proto molécula em si. Sua trajetória está conectada diretamente com a do detetive Miller, que fica encarregado de procurá-la e trazê-la para casa. Mesmo distante do seu destino, Miller cria uma espécie de conexão com Julie e, no final, os dois se sacrificam para salvar a Terra de Eros, que após ser absorvido pela proto molécula está indo em direção ao planeta. Apesar de sua participação ser limitada, ela ainda tem um papel importante dentro do escopo da série e suas ações inspiram milhares de outras pessoas a lutarem pela coisa certa.

Ao contrário de Julie, Clarissa (Nadine Heimann) sempre foi uma filha fiel ao pai. Esse, por sua vez, sempre preferiu Julie que, segundo ele, sempre seria melhor (e mais proativa) que a própria Clarissa. Mesmo depois que ele foge e é procurado pelo o que aconteceu com a proto molécula em Eros, Clarissa ainda tenta alcançar sua aprovação e vai atrás de Holden e o resto da tripulação da Roci para vingar o seu pai. Sem nenhum escrúpulo e com absolutamente nada a perder, ela é uma vilã aterrorizante porque mata sem remorso algum e parece muito tomada pela própria dor para considerar suas ações. Mas, na medida em que vai ouvindo Holden e os outros agirem (mais do que apenas falarem), começa a perceber que tudo que ela fez talvez tenha sido equivocado.

Essa narrativa em si poderia ser o catalisador de muitos problemas para The Expanse, começando pelo fato de que eles simplesmente poderiam ter dado uma morte incrível para Clarissa, onde ela se sacrificaria pelo bem maior e acabaria redimida por todas suas ações abomináveis. Mas isso não é o que acontece. Acredito que nem todos os personagens necessariamente precisem (ou sequer queiram) redenção, mas se é deixado claro que isso é algo que buscam, é preciso que a narrativa seja feita com cuidado, sempre de forma gradual. Não adianta absolutamente nada matar um personagem com uma trilha de sangue ao seu encalço e dizer que agora ele é um herói. Uma ação boa não desfaz as outras, e a série entende muito bem isso.

É mais ou menos nesse ponto que a história de Clarissa se converge com a de Amos. Um dos personagens favoritos dos fãs, Amos sempre lutou para ter um discernimento maior do certo e do errado, e que a pequena família que ele encontrou na Rocinante ajuda-o a escolher o caminho certo todos os dias. Por causa da infância difícil que ele teve e a forma como tem dificuldade para entender os caminhos que parecem tão naturais para James e Naomi, Amos se vê um pouco em Clarissa e os dois criam um laço que nasce de forma quase natural. É espontâneo e interessante de acompanhar no começo.

Na quinta temporada, quando Amos vai resolver um problema familiar na Terra, ele procura por Clarissa na cadeia e, durante o ataque que Inaros desencadeou, os dois ficam presos juntos e tem que achar uma forma de se ajudar. A dinâmica cresce e se torna algo mais, sendo que a forma como os dois parecem entender um ao outro se tornou, surpreendentemente, uma das partes mais interessantes do seriado na quinta temporada. Como resultado dessa trama, Clarissa vai parar da Rocinante outra vez, apoiada por Amos, mesmo que a contragosto de Holden. Talvez, ela possa finalmente buscar o ato final da sua redenção e até mesmo fazer uma anotação ou outra sobre como fazer escolhas certas. E isso faz com que sua narrativa seja uma das que eu esteja mais interessada para ver no final.

Acho a história de Clarissa particularmente interessante porque é muito comum vermos personagens masculinos que fazem coisas absurdas e abomináveis, mas que são perdoados pelos fãs e pela própria narrativa de forma quase instantânea. Enquanto isso, na cultura pop, milhares de personagens femininas que tem sentimentos complexos e são consideradas “fora do padrão” sofrem constantemente, sem chance de redenção. Algumas dessas personagens nem sequer são genocidas ou assassinas, apenas mulheres com jornadas realmente complexas e atitudes controversas. Peyton Swayer de One Tree Hill, Marissa Cooper de The OC e Jen Lindley de Dawson’s Creek são alguns exemplos que me vem à cabeça. Todas elas eram assim, todas foram punidas pelas próprias séries (e pelos fãs) de forma incansáveis. O caso de Clarissa é mais complicado porque ela teve ações realmente problemáticas, mas se conseguimos perdoar personagens como Darkling, de Shadow and Bone, que nem sequer tem um arco de redenção, porque não podemos perdoar personagens que são como Clarissa? The Expanse não só oferece uma narrativa complexa para ela, como também apresenta um novo caminho para as vilãs femininas.

Bobbie Draper

Roberta Draper, interpretada por Frankie Adams, apareceu pela primeira vez na segunda temporada. Apresentada como uma oficial leal ao exército militar de Marte, sua trajetória é indispensável dentro da série, que desde seu primeiro momento deixa claro esse mesmo fator. É por meio do seu ponto de vista que descobrimos um pouco mais sobre como funciona Marte, seus problemas e quais são os seus desafios no futuro. Mas isso não é nem de perto o mais interessante na sua jornada.

Logo quando ela é apresentada, Bobbie fica encarregada de uma missão na superfície de Ganymede, uma das colônias Belters responsáveis por plantar comida de forma superficial. Quando ela e seus colegas chegam no local, são atacados por um híbrido feito com o mesmo material da proto molécula, sendo que Bobbie é a única que consegue sair do evento viva. Ao mesmo tempo que isso acontece, como efeito colateral e da falta de comunicação, Marte e Terra entram em combate na superfície de Ganymede e acabam matando milhares de pessoas que estavam na estação.

Vejo um pequeno triunfo na forma como Bobbie é retratada, por dois motivos diferentes. O primeiro é o fato de que, geralmente, personagens femininas com personalidades semelhantes às de Bobbie são tratadas de forma mecânica e superficial. Bobbie tem sim o seu traje especial, que é quase super poderoso, e grande parte das suas cenas envolvem sequências de ação, mas ela também toma momentos para questionar as ordens que lhe são dadas e entender qual o seu papel em toda confusão em Ganymede. Geralmente, personagens não-brancas dentro de obras de gênero são limitadas a figuras poderosas que e/ou que lutam muito bem, mas não necessariamente tem espaço para desenvolver seus sentimentos, suas motivações. Às vezes elas nem sequer ganham diálogos (veja, por exemplo, o tropo dos personagens asiáticos que quase não falam). Esse não é o caso aqui.

Segundo, Bobbie também carrega um grande sendo de propósito e honra, bem como amor por Marte e a luta que os marcianos defendem, mas, ao ser questionada e se encontrar bem no meio da confusão entre Marte, Terra e a proto molécula, ela tenta colocar em xeque a forma como vê sua nação (e qual seu papel no que aconteceu com seus amigos) e, principalmente, qual é o seu propósito dentro dela. Lealdade é sempre algo bom, mas nunca quando ela vem acompanhada de uma boa dose de fé mal administrada. De muitas formas, o arco de Bobbie é o mais heroico da série. Ela começa como uma soldada fiel que, ao descobrir um sistema de corrupção dentro da sua própria estrutura social, acaba desertando e procurando alternativas para lidar com os problemas.

Na quarta temporada, ao tentar voltar a viver como civil, Bobbie descobre um sistema de corrupção ainda mais profundo, que vai além da proto molécula. Os militares de Marte estão contrabandeando armas para Inaros e bancando, de muitas formas, a guerra que ele quer promover com a Terra. Os resultados dos eventos recentes da série, mais a mente militar e nacionalista que está embutida em Marte, podem ser vistos no Planeta em grandes extensões e a forma como afeta a vida das pessoas é algo inegável: fechamento de comércio, faltas de empregos e oportunidades. A população, no geral, tem que buscar alternativas para conseguir sobreviver. Que é o que acontece com Bobbie. Ao se encontrar mais uma vez em uma situação sem muitas saídas, ela vira uma criminosa e acaba caindo em cima de outro problema para resolver.

Bobbie está sempre procurando por uma identidade. Seu senso de dever é realmente o que move a personagem, que parece sempre procurar fazer a coisa certa, mas ela sempre parece à deriva: não se encaixava com seus colegas militares, nem com a família da Rocinante. Quando ela volta a viver a vida de civil, essa sensação é multiplicada e não parece existir um espaço para alguém que acabou de sair de um mundo tão brutal quanto o serviço militar. Mesmo optando por seguir o caminho do crime, ela eventualmente descobre o contrabando de armas para Inaros e liga para Chrisjen, que a ajudou a deixar o exército da primeira vez e ouviu quando ela estava falando dos problemas de Ganymede, seus traumas e medos — algo que nem mesmo Marte fez. Assim, as duas resgatam a parceria que nasceu anteriormente e se juntam pelas causas que carregam em comum.

A Bobbie das últimas duas temporadas da série é muito diferente daquela que começou a série. Sem seu traje especial poderoso e sem estar ligada ao exército, ela parece mais humana do que nunca e seus dilemas talvez sejam o mais identificáveis de todas as personagens femininas da série. Ela é, afinal, uma pessoa que busca constantemente seu papel no mundo. E é um alívio ver que, no final da quinta temporada, Bobbie parece estar bastante consciente para onde vai a seguir.

Chrisjen Avasarala 

Em um dos momentos mais icônicos de Chrisjen Avasarala, perguntam para a política porque ela nunca concorreu ao cargo mais alto das Nações Unidas, ao que ela responde: “eu gosto de fazer as merdas funcionarem”, dando a entender que seus colegas não eram tão efetivos quanto ela. Com um guarda roupa impecável, uma das maiores bocas sujas da TV e desprendida da necessidade de ser “adorada”, a atriz Shohreh Aghdashloo vive Chrisjen, que com certeza é a figura central de The Expanse, e uma das personagens mais importantes da ficção científica dos últimos anos. A única comparação que consigo pensar em fazer é com a Presidente Laura Roslin (Mary McDonnell) de Battlestar Galactica, outra personagem feminina sensacional e complexa do sci-fi. Ambas são mulheres mais velhas, poderosas e que não têm medo de fazer o necessário para proteger as pessoas no qual são encarregadas. Ao mesmo tempo, as duas andam sempre cruzando a linha do certo e do errado, duras em suas convicções e sem nenhum momento para lamentar suas escolhas.

Chrisjen anda ao lado dos seus colegas nas Nações Unidas com uma bagagem extensa na política e pouca vontade de se colocar no cargo mais alto. Isso não quer dizer que ela não é ambiciosa, apenas sabe como jogar suas cartas melhor do que as outras pessoas. Por causa da forma direta que ela lida com as coisas, com um viés muito mais “mão na massa” do que os outros, ela acaba conseguindo o cargo para si de qualquer forma.

É interessante ver como a narrativa de The Expanse explora todos os lados da personagens. Ela é uma mulher poderosa e uma política inteligente, que usa essa característica como constante forma de conspirar a favor da sua nação. Ao mesmo tempo ela é uma avó carinhosa, uma esposa que ama o marido e uma mãe que está eternamente de luto pelo filho que morreu (algo que, inclusive, motiva grande parte das suas ações). Ela é ao mesmo tempo super protetora em relação a Terra, adotando medidas controversas para protegê-la, e também consegue ver quem está do outro lado, criando uma controvérsia maravilhosa entre seu lado político e do seu lado humano, mais empático e compreensivo. Esse aspecto fica muito claro durante a quarta temporada, quando Chrisjen está disputando a reeleição ao cargo principal das Nações Unidas ao lado de uma candidata muito mais “liberal”, em termos gerais.

Nessa altura da história, a proto molécula já se espalhou por grande parte do sistema e abriu algo que eles chamam de “Os Anéis”. Ninguém sabe direito o que Os Anéis são e o que cada um deles tem. Novas sociedades? Planetas? Tudo isso é uma possibilidade e uma das missões dos personagens nas últimas temporadas é promover missões de descoberta, explorando essa nova fase da humanidade. Como apontado antes pelo texto, a Terra sofre de super população e, consequentemente, não existe espaço para todo mundo. Fome e pobreza extrema são comuns, sendo o único auxílio do governo é algo que eles chamam de “Basic” — que mal dá direitos básicos e dignos para as pessoas. Falta de emprego também é um problema recorrente e, com a abertura dos Anéis, oportunidades começam a surgir neste âmbito, algo que a oposição de Avasarala defende com unhas e dentes. Ela, no entanto, é um pouco mais resguardada. Sem conhecer direito a proto molécula e a civilização que criou-a, Chrisjen vai no contraponto e diz que Os Anéis não podem ser confiados e que eles devem tomar uma postura mais cautelosa em relação ao que eles podem representar. Uma política, sem via das dúvidas, mais conservadora. E que ia na contramão com o que o resto das nações estavam fazendo — Marte e até mesmo os Belters, por exemplo, estavam prontos para se adentrar nos mesmos para colonizar.

Por causa da sua resistência em aceitar Os Anéis, ela acaba perdendo o seu cargo como líder das Nações Unidas e aceita um emprego como secretária em Luna (a nossa Lua, no caso). Isolada e acompanhando sua querida nação de longe, Avasarala começa a perceber uma movimentação complicada pela parte de Inaros — que ataca a Terra com vários pedaços de Meteoros diferentes, que acabam matando milhares de pessoas. Inclusive, a atual governante. Por ter sido uma das poucas pessoas que frisou a necessidade de prestar mais atenção na política terrorista de Inaros, Chrisjen se vê, mais uma vez, como líder. Mas ao contrário dos seus colegas, que querem vingança no estilo “olho por olho, dente por dente”, matando milhares de Belters inocentes, Chrisjen argumenta que Marco não representa todos os seus conterrâneos, que ele é um terrorista e que a única forma de derrotá-lo é, eventualmente, criar uma união entre Belters, Terra e Marte.

Sua visão, como sempre, é extremamente estratégica, mas ao mesmo tempo empática, criando situações complexas não só para a personagem em si como também para o cenário da série no geral. Se antes ela adotou uma posição conservadora para tentar proteger a Terra dos Anéis, sem saber o que eles realmente eram, com a necessidade de lidar com Inaros e a revolta dos Belters, ela aposta em uma direção contrária, se apoiando mais na diplomacia e na unificação com o resto das nações. Isso demonstra que ela é uma boa líder, que segue seus instintos acima de tudo e conta com aliados de todos os lugares para chegar aos seus objetivos — mesmo que, na maioria das vezes, seja para colocar o bem-estar da Terra acima de tudo.

Se Naomi pode facilmente ser considerada a personagem mais complexa de The Expanse, Chrisjen Avasarala com certeza é a ponte que faz a ligação entre todos eles e suas respectivas jornadas, algo que fica claro no final da quinta temporada. Ao longo dos episódios, a política cria uma aliança com Holden e a tripulação da Rocinante e um relacionamento genuíno com Bobbie, algo que tem um pay off claro quando, encurralados por Inaros, eles têm que achar uma solução que junte a Terra, Marte e os Belters.

Ainda não existe data de estreia para a sexta e última temporada de The Expanse e se tem uma coisa que aprendi durante todos esses anos vendo séries de TV é que tudo pode acontecer durante a conclusão de uma história. Erros acontecem, bem como decepções e isso é mais que comum dentro da cultura pop, mas se os roteiristas conseguirem manter o nível das cinco temporadas do seriado, o final promete ser ao mesmo tempo inteligente e rico em mitologia, oferecendo uma boa resolução para a trama da proto molécula, e também no encerramento do arco dos personagens de forma sensível e comovente, dando espaço para que eles possam trabalhar suas questões pessoais, seus dilemas e sentimentos. Mais do que isso, espero que as personagens femininas tenham o mesmo nível de desenvolvimento extremamente emocional e pessoal apresentado até então. De Naomi até Chrisjen, passando por Clarissa e Drummer, todas as atuações no quinto ano da série foram extremamente satisfatórias e oferecem uma sensação catártica para quem, assim como eu, vem esperando por mais personagens femininas completas na ficção científica.