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The Bitter Truth: o retorno do Evanescence, dez anos depois

Como começar a falar de Evanescence sem passear por minhas memórias? A banda fez parte de boa parte da minha adolescência e início da vida adulta, me embalando com suas canções em diversos momentos. Liderada por Amy Lee e sua voz incomparável, a banda conquistou sucesso mundial quando estourou com a música “Bring Me to Life”, do álbum Fallen lançado em 2003. De lá para cá são dezoito anos, cinco álbuns lançados e muita história para contar.

O Evanescence foi fundado no ano de 1995 pelos amigos Amy Lee e Ben Moody em Little Rock, capital do Arkansas, nos Estados Unidos. A história de origem da banda é bem conhecida por todos os fãs: enquanto participavam do mesmo acampamento de verão promovido por uma igreja da cidade, Ben ouviu Amy tocando e cantando ao piano e se encantou com os vocais dela. Ao descobrir que também possuíam os mesmos interesses musicais, não demorou para que a dupla desse início a uma banda que mais tarde se transformaria no Evanescence. Juntos, em 1996, eles compuseram e gravaram algumas músicas para o EP que lançariam no final de 1998. Em 1999, veio outro EP e também a contratação de David Hodges que participou do CD demo da banda, Origin, lançado em 2000, e Fallen, de 2003, considerado o lançamento oficial do Evanescence.

Origin já conta em sua tracklist com algumas das músicas que fariam parte de Fallen, entre elas “My Immortal”, “Imaginary” e “Whisper” — uma das minhas canções favoritas da vida inteira, “Anywhere”, também faz parte desse álbum, mas sempre é esquecida pela banda. Origin foi o passaporte do Evanescence para uma gravadora maior, a Wind-up Records, que se tornaria a responsável pelo lançamento de Fallen. Ao assinar o contrato com a Wind-up Records, Amy Lee e companhia se mudam para Los Angeles onde dão início a um árduo período de composições, gravações e estudos com o intuito de polir o som da banda, tornando-o o mais perfeito possível para o grande lançamento. Embora tenha concluído as gravações de sua parte, David Hodges deixa o Evanescence e não participa da primeira turnê — é em 2003 que Fallen é lançado, alcançando logo de início a terceira posição na Billboard 200, vendendo mais de 17 milhões de cópias, e levando dois Grammy, um na categoria Artista Revelação, e outro na categoria Melhor Performance de Hard Rock por “Bring Me to Life”.

Ainda que Fallen tenha sido o pontapé de uma carreira de sucessos, Ben Moody deixa o Evanescence alegando diferenças criativas com sua parceira de longa data, Amy Lee. Mais tarde, a própria Amy foi a público dizer que a saída de Ben Moody foi precedida por um grande alívio de sua parte, visto que o músico criava muitas tensões e situações complicadas dentro da banda. Mesmo com a partida de Moody, a banda deu continuidade às suas apresentações gravando o primeiro DVD ao vivo, Anywhere But Home, que mostra um dos shows que o Evanescence fez em Paris, na França. A partir de então, sucesso após sucesso, a banda de Amy Lee não parou mais: em 2006 foi lançado o segundo álbum de estúdio do Evanescence, The Open Door, que estreou na primeira posição da Billboard e vendeu mais de 6 milhões de cópias (lembrando que nessa época não existia streaming), enquanto o terceiro trabalho viria apenas em 2011 com o lançamento de Evanescence. O quarto trabalho da banda, Synthesis, viria após o hiato de seis anos e foi um projeto ambicioso: a ideia de Amy Lee era a de regravar sucessos da banda com arranjos que lembrassem as grandiosas trilhas sonoras dos filmes hollywoodianos. Dessa maneira, foram removidas as baterias e guitarras e inseridos arranjos clássicos com pitadas de música eletrônica. Synthesis foi disponibilizado com duas faixas inéditas: “Imperfection” e “Hi-Lo”.

Quatro anos separam o lançamento de Synthesis de The Bitter Truth e nunca antes o Evanescence esteve tão próximo de sua origem quanto agora. O quinto álbum de estúdio da banda, com doze canções inéditas, foi lançado no último dia 26 de março em todas as plataformas de streaming e, até o fechamento deste texto, contava com pontuação 9.2 no Metacritic no universal score e 8.0 da crítica especializada. O Evanescence que coloquei para tocar agora, em março de 2021, não poderia ser mais diferente daquele que me cativou há dezoito anos mas, mesmo assim, não poderia ser mais parecido. Desde o lançamento de Fallen até chegarmos em The Bitter Truth o único denominador comum em toda essa trajetória é Amy Lee. A cantora, musicista e compositora sempre foi a alma da banda, até mesmo quando Ben Moody ainda dividia a liderança com ela, e isso permanece mesmo agora em que ela divide o Evanescence com outros músicos.

O Evanescence é o sonho da Amy Lee de quatorze anos, mas também é a realidade da mulher de quase quarenta, e isso transparece tanto nas composições das faixas quanto nos arranjos musicais e nos temas abordados por ela em seus versos. A Amy Lee que cantava sobre relacionamentos sufocantes é a mesma que canta sobre buscar a verdade, a aceitação de quem você é, inclusive com os próprios defeitos. Em entrevista ao portal Blabbermouth, Amy Lee disse que The Bitter Truth é sobre mostrar seu interior mais real e fiel a si mesma, independente do custo — e é isso o que ela busca com cada uma das doze faixas que compõem o álbum. The Bitter Truth ainda parece Fallen, mas de um jeito único e especial, feito para os tempos em que vivemos. Desde abril de 2020, a banda vem lançando singles cheios de força que deram o tom perfeito do projeto completo: “Wasted on You”, “The Game Is Over”, “Use My Voice”, “Yeah Right” e “Better Without You” antecederam The Bitter Truth e causou alvoroço entre os fãs a cada lançamento.

O primeiro single, “Wasted on You”, embora tenha sido escrito antes da pandemia do coronavírus ter início, acabou ressoando perfeitamente com o momento de medo e incerteza enfrentado pelo mundo todo. A banda, inclusive, finalizou o material durante o isolamento social e não estiveram todos juntos em estúdio para fazê-lo, mas usaram de chamadas de vídeo e muito compartilhamento de arquivos pela internet para concluir o trabalho. Originalmente, “Wasted on You” foi escrita sobre a necessidade de se libertar de relacionamentos ruins mas que, às vezes, é muito mais fácil não fazer nada a respeito — quebrar as correntes que te seguram no mesmo lugar é algo difícil de ser feito, mas pode levar a momentos muito melhores no futuro se você tiver a força necessária para romper o ciclo. Logo no ínicio da canção, Amy Lee canta: “I can’t move on/ Feels like we’re frozen in time/ I’m wasted on you/ Just pass me the Bitter Truhth” [“Não consigo seguir em frente/ Parece que estamos congelados no tempo/ Estou embriagada de você/ Só me dê a verdade amarga”], o que evoca a falta de controle da pessoa que está em um relacionado que não é saudável e, também, de quem está em confinamento.

Das canções lançadas em The Bitter Truth, com certeza a que assume um tom mais político é “Use My Voice”, cuja inspiração veio do caso de Chanel Miller, uma jovem sobrevivente de um crime sexual em 2015 quando seu colega na Universidade de Stanford, Brock Turner, a estuprou e a deixou parcialmente nua e inconsciente próxima de uma lixeira. Turner foi condenado a cumprir seis meses de prisão por abusar de uma mulher inconsciente, mas só cumpriu metade da pena — de acordo com o juiz Aaron Persky, que mais tarde foi afastado do cargo, o “bom caráter” do rapaz, somado ao fato de que ele era uma das estrelas da equipe de natação da universidade, falavam positivamente a seu respeito. O fato de ele ter bebido na noite do crime também foi citado por Persky como atenuante da sentença. Chanel Miller, então decidiu usar sua voz e escreveu um livro contando sua história. Em Know My Name (Saibam Meu Nome, em tradução livre), lançado nos Estados Unidos e no Reino Unido, Chanel narra o trauma que passou, desde acordar sem saber o que havia acontecido, descobrir os detalhes do ataque pela imprensa até chegar ao tribunal. No livro, repleto de palavras de raiva, Chanel Miller diz que se sentiu na obrigação de lançar uma luz sobre a escuridão que muitas jovens mulheres precisam atravessar após sobreviver a um crime sexual.

Gravada com a participação de vozes femininas poderosas nos vocais de apoio — como Lzzy Hale da Halestorm, Taylor Momsen da Pretty Reckless e Sharon den Adel da Within Temptation, além da violinista Lindsey Stirling — Amy Lee escreveu “Use My Voice” também para celebrar o poder de usar a própria voz para trazer mais justiça ao mundo; ela espera que, com seus versos, possa inspirar mais pessoas a encontrarem suas próprias vozes, impedindo que outros falem por elas. O vídeo de “Use My Voice” foi lançado durante a corrida eleitoral nos Estados Unidos e a mensagem de Amy Lee e companhia não poderia ter sido mais óbvia, principalmente quando a banda usou a música como plataforma para ampliar o registro de votantes no país, ação que faria a diferença na derrota de Donald Trump para Joe Biden nas urnas alguns meses mais tarde. Vários artistas usaram suas plataformas para pedir aos fãs que unissem forças e se registrassem para votar, e, pela primeira vez, o Evanescence se posicionou politicamente. Em entrevista para a Billboard, Amy Lee disse que nunca havia se comprometido tão abertamente com um posicionamento político por entender que a música deveria ser um lugar seguro para seus fãs, um lugar em que poderiam ter algo em comum, mas que ela não podia mais se conter. “Se vou ser verdadeira comigo mesma e com minha música, como sempre fui, então tenho que dizer o que está pesando em meu coração.” O vídeo de “Use My Voice” também se apropria da metáfora de sair da escuridão para a luz e mostra Amy Lee encontrando seu caminho em meio a corredores repletos de flashes de luz e velas para, no final, encontrar uma multidão caminhando junto com ela, na luz.

Duas das minhas canções favoritas de The Bitter Truth não poderiam ser mais diferentes uma da outra: “Yeah Right” e “Far From Heaven”. A primeira, devo admitir, até soa diferente das outras canções do álbum e não parece fazer muito sentido como parte de The Bitter Truth, mas as batidas animadas e o tom sarcástico da produção a tornam impecável. A expressão em inglês “yeah right” é justamente utilizada para demonstrar deboche e ironia, o que pode ser um dos significados por trás da canção. Em publicação na conta da banda no Instagram, Amy Lee contou que a letra da música existe há pelo menos dez anos e que a ideia inicial era tê-la incluído em Evanescence, o álbum de 2011, mas foi preterida pela gravadora. Desde então, Amy veio trabalhando na canção, mudando acordes e ajustando versos, até lançá-la em The Bitter Truth. Ela disse que não estava escrevendo exatamente sobre sua experiência na indústria da música, mas da experiência de estar em uma banda e ser o centro das atenções: “Parte do sucesso é que sempre há alguém que quer derrubar você. Alguém que sente que merece mais e odeia você pelo que você tem. Mas a vida real raramente é o que parece de fora.”

“Far From Heaven”, enquanto isso, não poderia ser mais diferente de “Yeah Right” em todos os sentidos. “Far From Heaven” é a única balada do álbum, com muito de Amy Lee e seu piano. A canção foi escrita pela líder do Evanescence em homenagem ao seu irmão, Robby Lee, que faleceu em 2018, e foi a última a entrar em The Bitter Truth. Em entrevista para a Kerrang Magazine, Amy Lee comentou sobre como “Far From Heaven” é sobre ela questionando sua fé, algo que já fez diversas vezes no decorrer de sua carreira: “É olhar para tudo isso e se perguntar, ‘tem alguém aí?’ Essa é uma pergunta que tenho feito nos últimos dois anos, em meio a tudo, e eu não tenho as respostas. Eu nunca tive.” 

“While writing it, I felt so low. I was just living in it without an out. When it was finished, I really loved it; it’s beautiful. Even when a song is openly dark and about pain, it can bring me joy. Sometimes you just need to say that hard thing you’ve been locking down inside, get it out, process it, and then move on to the next song.”

“Enquanto escrevia, me senti tão para baixo. Estava apenas vivendo sem uma saída. Quando terminei, eu realmente amei, é linda. Mesmo quando uma música é sombria e sobre dor, pode me trazer alegria. Às vezes você só precisa dizer aquela coisa difícil que estava de travando, deixar sair, processar e então seguir para a próxima música.”

Logo na primeira vez que ouvi “Far From Heaven” precisei parar tudo o que estava fazendo para ficar apenas sentindo a música. Na ocasião eu ainda não sabia da história por trás dos versos e do falecimento de Robby Lee; a canção evocava, por si só, uma tristeza imensa e um estado de luto e de dor indescritíveis — “One more night/ What I wouldn’t give to be with you/ For one more night” [“Mais uma noite/ O que eu não daria para estar com você/ Por mais uma noite”]. Some-se a isso a poderosa voz de Amy Lee e o resultado é uma canção que reverbera na alma. “Far From Heaven” é a evolução de “My Immortal”, tanto na construção dos versos quanto da melodia e da potência da voz de Amy Lee. Como fã de longa data da banda, eu não poderia me sentir mais contemplada com The Bitter Truth. Ainda para a Kerrang Magazine, Amy disse:

“I’m reminded every time with grief that there’s a choice you have to make for yourself between life and death; between getting up or not. You have to talk about the struggle of that.”

“Sempre sou lembrada de que com o luto há uma escolha que você deve fazer por si mesmo entre a vida e a morte; entre levantar ou não. Você tem que falar sobre a luta que isso é.” 

É, de certa maneira, curioso reparar como The Bitter Truth entra em sua reta final com duas canções tão opostas às demais que compõem o álbum. “Far From Heaven” é sucedida por “Part of Me” e “Blind Belief”, esta que fala de esperança tanto quanto “Far From Heaven” dialoga sobre dúvida. Amy Lee comentou que “Blind Belief” é, de fato, uma canção sobre acreditar — acreditar na raça humana, apesar de todos os contras que ela representa. O último verso de “Blind Belief” talvez seja um dos mais bonitos de todo o álbum e exemplifica bem a mensagem que o Evanescence quer que a gente tenha em mente ao concluir The Bitter Truth: “love over all” (“amor acima de tudo”, em tradução livre). Foi uma escolha deliberada por parte da banda e concluir o trabalho dessa maneira funciona como uma luz, um pouco de esperança em meio às trevas. The Bitter Truth é um álbum sobre luto, sobre aceitação, sobre dor e, também, sobre amor. É encarar todos os sentimentos que nascem da raiva e se libertar.