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Kimmy Schmidt no sofá de Freud (ou de Tina Fey)

A série Unbreakable Kimmy Schmidt, da Netflix, estreou no ano passado e encantou o público com seu humor nonsense, no melhor estilo Saturday Night Live, criando memes maravilhosos, como o famoso Pinot Noir de Titus Andromedon. A história, que conta a vida de Kimmy (Ellie Kemper), uma garota que passou 15 anos em cativeiro após ter sido capturada por um missionário maluco, abordou o assunto com muita graça e humor mórbido, colocando-a como a queridinha dos fãs de séries.

Kimmy ainda era uma adolescente na década de 1990 quando foi sequestrada com mais quatro mulheres e por isso perdeu todo o advento da internet, smarthphones, blogs, mídias sociais e afins. Por isso ela faz piadas que ninguém entende e, ao mesmo tempo, não consegue sacar as piadas dos outros. Ela vê o mundo com os olhos ainda mais inocentes de uma garota do interior. Mesmo assim, ela decide deixar seu passado traumático para trás e abraçar a cidade de Nova York como lar. E como semelhante atrai semelhante, os outros personagens da série também são tão anacrônicos quanto ela: Titus Andromedon (Tituss Burgess), um ator frustrado que não tem dinheiro para nada e faz um monte de bicos bizarros; Lilian (Carol Kane), a dona do apartamento onde ela mora, que é o arquétipo da velha louca que passou a vida inteira no mesmo bairro e não quer que nada mude, preferindo que tudo permaneça como nos velhos tempos.

Kimmy Schmidt

Um dos pontos altos da série é a presença de Jacqueline White (Jane Krakowski), a grã-fina para quem Kimmy trabalha e que faz milhões de exigências malucas para a garota. O contraste entre o mundo suburbano e o Upper East Side pode até fazer mais sentido para os americanos, mas temos aqui equivalentes muito semelhantes, bastante explorados nas novelas da Globo.

Com boa receptividade, a série ganhou uma segunda temporada ainda mais interessante do que a primeira. Com o divórcio de Jacqueline, ela precisa aprender a se virar sem dinheiro. Apesar disso, Kimmy continua a ajudar a amiga (mais por pena do que qualquer outra coisa) e Titus e Lilian tentam abrir seus olhos, mostrando o quanto os pedidos da ricaça são abusivos. Aos poucos, a balzaca com cabeça de adolescente começa finalmente a aprender as lições da vida: é preciso se valorizar, deixar de ser boba, de ver o mundo com lentes cor de rosa, porque a vida pode ser difícil e injusta.

A temporada ainda explora a relação de Kimmy com Bongo, o imigrante, que serve como seu par romântico, mas precisa se casar com uma senhora para obter o green card. Isso também rende diversos momentos divertidos misturados com aquele toque de lição de vida. Além disso, Kimmy começa a ter uns arrotos malucos no meio do nada. Isso vai sendo construído ao longo da temporada e, inicialmente, é de se imaginar que eles seriam explicados como só mais uma piada boba dos americanos. Fui surpreendida.

O ponto alto da série é justamente quando Kimmy conhece a psicóloga Andrea, interpretada de forma impecável por Tina Fey. A personagem tem dupla personalidade: durante o dia, ela é uma psicóloga respeitada e séria; à noite, ela enche a cara e faz as maiores loucuras do planeta. É durante a interação de Kimmy e Andrea que a série engrena. Não podemos esperar que a personagem-título continue com as mesmas ideias que tinha ao ser libertada. Os roteiristas optaram por levá-la para a frente, fazendo-a lidar com os traumas de infância que a levaram ao momento fatídico do sequestro.

Atenção: este texto contém spoilers

Seguindo a linha da psicanálise clássica estabelecida por Sigmund Freud, a primeira coisa a ser explorada é a relação com a mãe. Andrea faz com que Kimmy comece a resgatar suas memórias de infância e a relação conturbada que tinha com a progenitora. A garota não se permite sentir raiva, sempre escondendo o que sente de verdade para agradar os outros, como uma princesa da Disney que tem uma vida miserável, mas só vê o lado positivo das coisas.

Nos últimos episódios, Kimmy finalmente consegue confrontar a mãe frente a frente. Confesso que esperava que a mãe de Kimmy fosse a Amy Poehler, uma das melhores amigas de Tina Fey, mas fiquei felicíssima com a surpresa: Lisa Kudrow, a Phoebe de Friends, como a mãe que nunca teve muita paciência com a menina. Quando a garota, ainda criança, não conseguia aprender a amarrar os sapatos, ela decidiu comprar um tênis de velcro para ela. E foi justamente ao ajustar o velcro do tênis que ela foi capturada pelo pastor sem vergonha.

As cenas das duas no parque de diversões são totalmente catárticas e significativas. Kimmy coloca tudo para fora: a mãe devia ter procurado por ela, devia ter se importado mais, devia ter exercido seu papel de mãe. Com isso, ela percebe que seu passado não vai mudar. A negligência da mãe, o sequestro, essas coisas fazem parte de sua vida e ela precisa aceitar. Cabe a ela, porém, tomar as rédeas a partir de agora e fazer suas próprias decisões.

Em tempos de empoderamento, feminismo, caos político e mudança de paradigmas, Unbreakable Kimmy Schmidt consegue tocar em todos esses temas de forma sutil e não óbvia, deixando suas críticas escondidas em forma de humor, como uma cebola que deve ser descascada aos poucos — um paralelo de como funciona o processo da terapia. Essa é uma série que, na superfície, pode parecer completamente nonsense, mas, para os perspicazes, ela faz todo o sentido e tem ideias bem maduras e sérias.

Ao colocar a personagem principal como alguém que confronta seus próprios medos e inseguranças, mostrando sua vulnerabilidade e sua vontade de superar esses problemas, Unbreakable Kimmy Schmidt fica ainda mais rica, provando que personagens podem e devem evoluir ao longo da história.

1 comentário

  1. Adoro essa série! É aquele tipo de humor leve, mas que traz sempre aquele toque de “moral da história” do final pra ensinar alguma coisa. Amei a mãe da Kimmy, e especialmente a citação que ela fez à minha banda favorita “Eu podia ter sido a Yoko Ono do Whitesnake” haha 🙂

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