Categorias: CINEMA, LITERATURA

As várias camadas que compõem a Identidade

Identidade (2021), de Rebecca Hall, narra o reencontro das amigas Clare Kendry (Ruth Negga) e Irene Redfield (Tessa Thompson), mulheres negras de pele clara. As suas vidas tomaram rumos opostos: Clare decidiu “passar-se” por branca, enquanto Irene manteve-se integrada à sua identidade e comunidade, embora ocasionalmente pratique o passing. Esse reencontro desperta em Clare o desejo de se reconectar com a cultura afro-estadunidense. Os conflitos de gênero, raça e classe que permeiam a narrativa crescem gradualmente até atingirem um final trágico.

À época, 1920, vigorava nos Estados Unidos uma série de leis que institucionalizavam a segregação racial, chamadas Leis de Jim Crow. Dessa forma, espaços e serviços eram segregados, e o casamento inter-racial proibido. A infraestrutura disponibilizada a pessoas não brancas tinha qualidade inferior, o que as privava de direitos. O fato de se ter optado por rodar o filme em preto e branco enfatiza essa dualidade entre espaços e identidades, sendo que, por vezes, flashs ofuscam nossa visão.

A história baseia-se no romance Passing (1929), de Nella Larsen (1891-1964). Originalmente, tanto o filme quanto o livro chamam-se Passing, que pode ser traduzido como “Passar-se”. Pela “regra de uma gota de sangue” (one-drop rule), qualquer pessoa que tivesse um ancestral de ascendência africana seria considerada negra, segundo a classificação racial adotada pelos Estados Unidos daquele período. No contexto norte-americano, passing corresponde à prática de simular pertencer a um grupo étnico ou racial distinto, com a finalidade de fugir da segregação racial. O passing tornava possível acessar melhores oportunidades de trabalho, escolarização e exercício de direitos; por outro lado, significava assumir outra identidade, romper laços com a sua comunidade e viver sob ameaça constante. A opção por Identidade ao invés de Passar-se, embora torne o nome da obra mais compreensível, e, talvez, atrativo ao público, faz com que se perca muito dos sentidos atribuídos a essa expressão na obra.

Identidade

Esta é uma história com várias camadas, a primeira delas, refere-se à construção da identidade. A psicóloga Neusa Santos, na obra pioneira Tornar-se Negro ou As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão, abordou como a ideologia de branqueamento causa sofrimento psíquico às pessoas negras. Elas se veem envoltas em um processo de desvalorização sistemática da própria identidade, no qual ser branco é tomado como superior e modelo universal de humanidade. Nesse cenário, a assimilação do padrão branco torna-se necessária à ascensão social.

Disse Neusa Santos: “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é, também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.” É por isso que, parafraseando Lélia Gonzales, tornar-se negro é uma conquista.

Indo mais fundo, outra camada relaciona-se a amar a negritude como forma de resistência. bell hooks (que lamentavelmente faleceu em 2021), relata em Olhares Negros: Raça e Representação, o seguinte:

“A disciplina que leciono sobre mulheres negras escritoras é frequentemente a favorita entre os estudantes. No último semestre que lecionei essa disciplina tivemos uma discussão intensa, como de costume, sobre o romance Passing, de Nella Larsen. Quando sugeri à turma (a qual tinha mais interesse em discutir o desejo do povo negro em ser branco) que Clare, a mulher negra que se passou por branca durante sua vida adulta e casou-se com um empresário branco rico com o qual teve um filho, é a única personagem do romance que realmente almeja a ‘negritude’ e que é esse desejo que ocasiona seu assassinato, ninguém se manifestou. Clare declara audaciosamente que preferiria viver o resto de sua vida como uma mulher negra pobre em Harlem, no subúrbio de Nova York, do que como uma matrona branca e rica do centro da cidade. Pedi à turma que considerasse a possibilidade de que amar a negritude seja um ato perigoso em uma cultura de supremacia branca — um ato tão ameaçador, tão grave para a estrutura da ordem social que a morte é a solução.”

Dessa forma, Clare passou pelo processo de assimilação do padrão branco, ascendeu socialmente às custas da negação de sua própria identidade e então fez o movimento inverso. Ela busca reconstruir a imagem que tem de si por meio da reconexão com a sua comunidade. Afirma a sua identidade, história e cultura afro-estadunidense como fontes de alegria e satisfação interior, em contraposição aos sentimentos de inadequação e falta anteriores; rompe a lógica dominante, por isso, paira sobre ela uma ameaça contínua.

Além disso, para Judith Butler, em Passar-se, Estranhar: o desafio psicanalítico de Nella Larsen, Irene deseja Clare, mas não consegue racionalizar esse sentimento, por isso, projeta que é seu marido, Brian (André Holland), quem está atraído por ela. Dessa forma, o distanciamento buscado por Irene seria movido não somente pela sua objeção quanto à Clare se passar por branca, mas também pelo medo de que o desejo que sente desestabilize a família idealizada, que simboliza para ela segurança e proteção.

Identidade

Tanto que, no filme, ao ser questionada se não desejaria “se passar” como Claire, Irene responde que todos estamos nos passando por alguma outra coisa no final das contas, o que alude à ideia de que Passing é uma metáfora, também, para sexualidade reprimida. Ocorre que, durante o Renascimento do Harlem — período no qual o livro que serviu de base para o filme foi escrito —, abordar a sexualidade de mulheres negras era visto com cautela, tendo em vista o histórico de escravização, objetificação e estereótipos que se buscava afastar. Por isso, essa atração foi sugerida por Nella Larsen na forma como Irene, narradora, descreve e aprecia a beleza de Clare, em olhares, gestos e frases soltas.

Embora o romance que deu origem ao filme tenha sido publicado em 1929, suas complexas tramas psicológicas o fazem atemporal. Publicado no Brasil muito tardiamente, 90 anos depois, espera-se que com a adaptação para o cinema cresça o interesse pela obra de Nella Larsen e seja traduzido também o livro Quicksand (1928). Talvez, mais do que sobre passar-se por outro, essa obra seja sobre as formas com as quais se ultrapassa ou não os limites que circunscrevem nossas vidas, quanto a quem deveríamos ser e onde podemos existir, assim como o preço alto que se paga pela liberdade para descobrir quem se é, por almejar uma nova identidade forjada na aceitação e no amor próprio.


Referências

bell hooks. Amando a negritude como resistência política In: Olhares negros: raça e representação. Elefante, 2021.
BUTLER, Judith. Passar-se, estranhar: o desafio psicanalítico de Nella Larsen In: Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n. 1, 2019.
RODRIGUES, Arianne Mesquita. Um ensaio de bell hooks: uma proposta de tradução comentada. Brasília, 2018.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983.


Somos parceiras da Kult, uma plataforma de compartilhamento conteúdos de cultura e entretenimento. Se você gostou desse texto e quiser mais dicas da nossa equipe, clique aqui!