Categorias: ENTREVISTA, LITERATURA

Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai, de Paula Febbe

Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai é um livro intenso e isso para dizer o mínimo a respeito da obra mais recente da escritora e roteirista Paula Febbe. O livro, lançado pela DarkSide Books, é o relato de uma mulher que perde o pai ausente e abusivo e demonstra como os anos mergulhada nessa relação refletem em todos os aspectos de sua vida, mesmo depois que a ausência desse pai se torna definitiva.

Débora, a protagonista e narradora de parte dessa história, é enfermeira, mas os pacientes homens que passam por suas mãos nem sempre se recuperam como deveriam de seus internamentos. Débora age como uma juíza inclemente que decide se eles poderão continuar a viver, mas o fato é que nunca houve muita chance para qualquer um deles após chegarem aos seus cuidados. A enfermeira coleta seus traumas e as dores do relacionamento com o pai e os coloca nos ombros dos homens que passam por suas mãos, infringindo a eles a vingança que ela endereça sempre ao seu progenitor. Se no começo Débora desenvolve um modus operandi, logo ela se perde na imagem que cria de si mesma, afundando em um caminho sem volta ainda que, no final, ela não queira mesmo nenhum tipo de redenção.

“Dizem que a vida é tempo. Mais tempo. Menos tempo. E a morte? Qual é o tempo da morte, já que, entre a morte e a vida, apenas a morte é para sempre?”

A narrativa de Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai é surpreendente. O título do livro te faz pensar que Paula Febbe tomará uma direção na narrativa, mas a autora sempre encanta com as viradas de roteiro; se no início do livro estamos tentando entender o quebra-cabeças que está diante de nós e compreender quem é a personagem pouco confiável que narra essa história, no final, quando, finalmente, vislumbramos o jogo completo de Febbe, a coisa muda de figura e o que fica é uma sensação de arrebatamento. A construção de toda a narrativa ao redor de Débora e os traumas herdados do relacionamento com o pai desembocam em um enredo que sufoca o leitor, mas torna praticamente impossível parar de virar as páginas.

A construção da trama se apoia em pensamentos pouco confiáveis por parte de Débora, lembranças de infância e adolescência, além de sensações perturbadoras de relacionamentos pouco saudáveis. É preciso caminhar com cuidado por entre as reminiscências da personagem visto que não conseguimos saber se podemos acreditar por completo nas percepções da enfermeira a forma que encontrou para expiar o fardo da rejeição, de secar as feridas que leva na alma desde tão jovem, se transformam em uma fonte de poder do qual ela não deseja abrir mão. Ter os destinos de tantos homens em seu poder é viciante, e Débora não quer parar.

Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai funciona de maneira não linear, o que torna o desenvolvimento dessa história e de Débora ainda mais interessante. O livro mostra como certas feridas e certas dores são ainda mais profundas do que se pode imaginar, criando raízes nas vidas das pessoas para além do que se consegue ver. Débora é uma personagem quebrada, traumatizada e fragilizada, mesmo que não se veja tão claramente dessa maneira. Adulta, decide ser a catalisadora de sua vingança, resolvendo ser a juíza e a executora das sentenças que destina aos seus pacientes. Os traumas acumulados por ela durante a vida desembocam em ações tresloucadas, indigestas.

Vale apontar que o livro lida com temas pesados como abuso infantil, incesto e estupro e pode despertar gatilhos. Mesmo ao lidar com temas espinhosos e muito reais, Paula Febbe não esmorece e tece uma narrativa que cresce em tensão a cada virar de página. A autora, que tem formação em psicanálise, descreve à perfeição todos os cenários e situações de seu livro, nos deixando sedentos para o que virá a seguir. Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai, se definido em uma palavra, é visceral. É um livro sobre luto, traumas, dores e vingança como poucos conseguem ser.

“Não lembro quando mudei da menina que corria até a porta pois o pai estava chegando, para a menina que tinha medo do barulho das chaves no corredor.”

A seguir, você acompanha uma entrevista que Paula Febbe gentilmente concedeu ao Valkirias.

Imagino que você deve sempre receber essa pergunta, mas como surgiu a ideia do livro? Como você decidiu estruturar a narrativa da maneira como nos foi apresentada? Se no começo da leitura eu já estava completamente imersa nos pensamentos de Débora, quando percebi para onde a trama estava se desenrolando, fiquei muito curiosa para chegar ao desfecho e descobrir o que você havia planejado.

Paula Febbe: Queria escrever sobre a morte do meu pai, mas não queria fazer isso de uma maneira que eu só falasse sobre a minha perda. Ao mesmo tempo, naquela época, chegavam muitas histórias de abusos sofridos por amigas e informações que fiquei sabendo, então decidi fazer deste livro uma vingança em relação aos homens terríveis que encontramos pelo caminho. O curioso é que achamos que o trauma de uma criança que sofre nas mãos dos pais só fica como cicatriz em formato de dor, mas na verdade pode vir torto. Em forma de ódio contra o outro e contra si. A Débora foi vítima e se torna vilã. Achei importante apresentar essa dualidade, pois realmente ninguém se salva. Nem ela.

Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai é um livro surpreendente, quando comecei a leitura não consegui mais parar. Foi uma tarde e uma noite vidrada em suas palavras. Como foi o processo de escrita para o livro? Ele não trata de temas amenos e nem se esquiva das questões difíceis, então só posso supor como foi passar para o papel as ideias que estavam dentro de você. Como foi isso? O quanto há de Paula Febbe nessa narrativa e em Débora?

P.F.: Posso dizer que dividi a narrativa entre os pensamentos de Débora e um eco da voz, dos preconceitos e dos abusos do pai. Da minha visão, no livro, posso dizer que tem pouco. Meu pai, de fato, faleceu aos 58 anos de câncer e muito do que vi e soube de abusos sofridos por outras mulheres estão polvilhados nas histórias dos pacientes que aparecem no livro, mas minha voz não é a da Débora, nem do narrador fantasma. Não compartilho dos pensamentos deles. Inclusive essa era uma preocupação, sabe? Deixar claro que não sou isso. Também nunca matei ninguém. Juro.

Durante a leitura vamos, aos poucos, montando o modus operandi da Débora na medida em que ela age. O fato de suas vítimas serem homens, e normalmente péssimos homens, é só um dos pontos que os ligam. Podemos tirar vários significados dessa escolha, mas o que você diz sobre isso? É como dar um pouco de poder a quem normalmente não tem nenhum?

P.F.: Vingança, mesmo. Mas (spoilers!) o curioso é o quanto ela se perde nessa vingança também. A personagem se perde na personagem. No começo, eles são homens terríveis, mas depois não haveria razão para matá-los, acontece que, ainda assim, ela o faz e tenta arranjar qualquer justificativa para isso.

Débora é uma narradora não confiável, mas é tudo o que temos em Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai. A dubiedade da personagem e a narrativa faz o leitor questionar até que ponto devemos acreditar no que Débora nos conta. Como foi o processo de criar essa personagem? Mulheres nem sempre são associadas a serial killers, mas sabemos que elas não somente existem, como deixam rastros de sangue e contagens de corpos pelo caminho. Compor essa personagem, que quebra a mística de que mulheres não são capazes de fazer o mal da mesma maneira que homens, parece ter sido uma jornada interessante. Você pode comentar sobre isso?

P.F.: Na verdade, a Débora é vítima até da própria crueldade. É como se o pai a tivesse transformado em um fantasma, apesar dele estar morto e ela não.  Ela se torna um eco da voz do pai, exposto através da crueldade com os outros, revolta ou tentativa torta de aprovação.

Você já publicou oito livros e Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai é o mais recente deles. Há algo que conecte as narrativas, seja na maneira com que elas foram criadas ou na escolha dos tópicos que você decide abordar em seus livros? Imagino que sua formação em psicanálise certamente não deve ser dissociada desse processo.

P.F.: Realmente todos são livros que partem da construção psíquica das personagens e alguns deles discutem a construção social feita da mulher a partir da visão ou ação de um homem cruel.

Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai fala sobre abuso, assédio, relações parentais, e todos os traumas que advém do crescimento em um ambiente tóxico e potencialmente perigoso. Mesmo em pleno ano de 2022, esses temas continuam sendo tabu. Em determinado momento do livro, você escreve: “Olhamos para o lado que nos agrada e esperamos com toda a força que aquilo que odiamos desapareça assim que viramos o rosto.” E é isso o que acontece em centenas de lares, mundo afora. Você acha que o tema pode vir a ser mais discutido tomando como base o seu trabalho nesse livro?

P.F.: Eu ADORARIA! Seria minha maior recompensa por tê-lo escrito. Quis levantar exatamente tais discussões. Ninguém deveria ter que conviver com quem não faz bem. Na morte de algum ente querido, mas que te destrói, pode haver libertação, sim. E não deveria haver culpa nisso, afinal, foi a pessoa que pediu, com a crueldade dela, por esse sentimento.

“Sua essência é o silêncio que acontece em meio ao barulho ensurdecedor que sua vida faz para te distrair.”

O exemplar foi cedido como cortesia pela Editora DarkSide Books.


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