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Not Okay e Spree: quem somos e quantos seguidores na internet nos definem?

Na cultura capitalista em que vivemos, fomos levados a acreditar que certas coisas nos definem, como ter um emprego. Você é o que você faz, o que você tem e o que você pode comprar. Mas, ainda dentro do sistema capitalista, não é de hoje que também começamos a nos definir por aquilo que somos na internet. A aparência, os seguidores, as curtidas e tudo mais. Se você não posta, não é visto, e se não é visto, não é lembrado. Se você foi a algum lugar e não postou, não aconteceu.

E está tudo bem. Mas não está.

As redes sociais são muito positivas, quando usadas para o bem. Mas elas podem causar um dano enorme na vida de cada um. Os filmes Not Okay, com direção de Quinn Shephard, e Spree, dirigido por Eugene Kotlyarenko, abordam com sátiras diferentes o peso da cultura dessa vida digital. Uma vida que com o ângulo certo, é completamente diferente da vida real. E para quem vê do outro lado da tela, é aquilo ali, um sonho inalcançável. O jardim do vizinho é sempre mais verde. O feed do outro é sempre melhor.

Atenção: este texto contém spoilers!

Not Okay

Em Not Okay, lançado em agosto deste ano, Zoey Deutch protagoniza o longa como uma típica “looser”, uma mulher invisível e sem amigos, que só quer ser vista. Mas ela encontra uma saída para seus problemas de um jeito muito distorcido. Danni Sanders (Zoey) trabalha numa revista on-line, que também é uma empresa de publicidade, lidando com muitos influencers que não lembram seu nome. Ela é editora de imagem, mas sonha em escrever artigos para o site.

Impulsionada por uma paixão pelo influencer Colin (Dylan O’Brien), e por uma mentira, Danni decide editar fotos caseiras, para parecer que está em um retiro de escritores em Paris. E suas postagens começam a fazer sucesso, as pessoas passam a acreditar que ela está na França. E, então, Danni acorda com mensagens de preocupação quando acontece um atentado terrorista em Paris. E no lugar de assumir que era tudo armado e ela estava completamente segura nos Estados Unidos, Danni se sente importante para as pessoas, e decide embarcar ainda mais nessa mentira.

Ela ficou famosa por ser uma das americanas que retornou ao país, depois do atentado. Logo, Danni é promovida a escritora e pede para criar um artigo sobre o atentado. Ela encontra um grupo de recuperação para pessoas que sofreram traumas de guerra, abuso, atentados em escolas e outras coisas. E se o expectador ainda não sentiu vergonha alheia, ou uma preocupação enorme com o que a internet pode distorcer, agora não tem como não sentir essas coisas mais.

Not Okay

A partir daí, Danni conhece a estudante Rowan Aldren (Mia Isaac), que sofre ataques de pânico devido aos tiroteios que aconteceram em sua escola. Rowan também é uma militante ativa contra as armas. Danni faz amizade com Rowan e, com a ajuda dela, consegue escrever seu artigo sobre o trauma que “passou”. Mas foi tudo graças a Rowan, ela deu voz a Danni, que abordou no texto sobre não estar bem, e que está tudo bem a gente admitir que não está bem, que as coisas não estão bem. O texto foi um sucesso, entrou para as trends nas redes sociais.

E Danni consegue o que queria, melhorar seu rendimento nas redes sociais e ser aceita em grupos, como dos amigos LGBTQI+ do trabalho, e dos influenciadores. Mas ela percebe o quão vazia a vida dela é, mesmo com toda a atenção que veio recebendo. Colin está finalmente afim dela, e em uma festa de influencers, acaba transando com Danni, mas ela não fica feliz. Se sente usada.

No clímax do longa, Danni acaba revelando a verdade em um artigo para o mesmo site. Rowan fica devastada ao descobrir que sua voz foi tomada mais uma vez. Danni é a pessoa mais odiada da internet, e como ela mesma diz no começo do filme, é para a gente ter cuidado com o que a gente deseja. Acredito que a mensagem desse filme — que não tem a pretensão de dar uma redenção para Danni — é mostrar o quão distorcida e nociva pode ser a realidade virtual. Mostrar os extremos de querer ser visto, seguido, querer influenciar as pessoas, chegando ao ponto de roubar ideias alheias. Ser parasita na dor do outro para conseguir ser vista. E o quão nocivo é ficar se comparando a seja lá quem for virtualmente. O que a gente vê pode não ser tudo aquilo que está sendo mostrado.

Em Not Okay, o público sente vergonha alheia e raiva de Danni, ao fazer com que a personagem seja “cancelada” no decorrer da história, pelos personagens, como na vida real vemos acontecer a cultura do cancelamento. E. sem querer defender a personagem principal, que não merece e não teve, uma redenção, mas esse “cancelamento” que virou uma cultura digital, é em grande parte, mais eficaz e mais cruel quando direcionado a mulheres.

E ao contrário de Not Okay, o longa-metragem Spree, traz Joe Kerry como o protagonista Kurt Kunkle. Nessa obra, a abordagem com as redes sociais é outra, mas tão bem trabalhada quanto em Not Okay. Spree é um filme que aborda a cultura dos influencers como uma sátira, que chega aos extremos e acaba em tragédia. De uma maneira cômica e bizarra, somos levados a acompanhar Kurt em sua jornada como um influencer que não tem nem amigos, nem seguidores e muito menos a atenção dos pais. E aqui, aponto para o fato de que a maioria das pessoas, senão todas, tem traumas que, querendo ou não, tem origem na família. Mas isso não justifica nenhuma ação de Kurt.

Kurt costumava ser babá (Joe Keery é familiar a essa profissão para seus personagens), e na maior parte do filme sua única companhia é o adolescente de que ele cuidava, que é um influencer muito famoso, Bobby (Joshua Ovalle). Kurt faz vídeos com dicas para ter uma vida melhor, mas não tem nenhuma visualização. O  filme carrega muitas vezes essa estética de vídeo caseiro e livestream. Kurt é um motorista de aplicativo, e em busca de conseguir muitos seguidores e visualizações, desenvolve um plano um tanto quanto maquiavélico. Ele vai filmar suas viagens no aplicativo, e drogar os passageiros, chegando a os matar. Quando, numa dessas, uma comediante e influencer digital, Jessie Adams (Sasheer Zamata), entra no carro, ela se torna uma obsessão de Kurt.

Para Kurt, ter seguidores significa ter amigos. Para todos que passam por ele, Kurt divulga seu user nas redes sociais e discursa sem parar, principalmente quando encontra uma influencer bem conhecida, em uma linguagem digital forçada. Ele não vive a realidade, já que para ele, tudo que importa é realmente ser visto nas redes que estão em alta. E em meio a todas as mortes e as tramas que vão acontecendo ao longo do filme, Kurt tem uma epifania e vai atrás de Jessie, porque, em sua cabeça distorcida, ele acredita que os dois formariam um “power couple” (casal poderoso). A influencer é raptada por ele, mas consegue sobreviver e Kurt acaba morrendo. Tudo isso em uma live transmitida para o mundo. Jessie termina a live contando como sobreviveu ao ataque e que vai se desintoxicar das redes sociais, mas ela acaba virando uma celebridade em consequência de tudo.

Acredito que Spree leva aos extremos, essa busca por ser visto nas redes, por ganhar seguidores e a fama digital. Tudo isso enquanto explora a cultura da violência e como ela também é vista de certa forma como um entretenimento cruel. Kurt queria ser visto, mas acabou tendo o mesmo fim que suas vítimas e, no final de tudo, ainda ganhou fãs no submundo da internet.

Esses dois filmes tem abordagens diferentes, mas acredito que ambos conseguem deixar a mensagem sobre como as ferramentas do mundo digital, das redes e mídias sociais, podem fazer mal para quem está utilizando das mesmas. Tanto para se tratar da cultura ineficaz do cancelamento, quanto para prestarmos atenção nos incels espalhados pelos recantos mais profundos da internet. Ao mesmo tempo em que usam como pano de fundo a cultura digital, os longas também podem nos fazer refletir sobre a nossa saúde mental e a maneira como podemos adoecer se ficamos dependentes das redes. Tanto Spree quanto Not Okay abordam o fato de que não somos definidos por quantas pessoas seguem a gente, por curtidas em fotos, por nossos perfis nas redes sociais.

Inclusive, Joe Keery, com seu pseudônimo Djo, acabou de lançar seu segundo álbum, Decide, que conta com músicas cujo conteúdo aborda a vida digital. Em “Half Life”, Djo reflete se as pessoas realmente se importam com a gente nas redes sociais, e que a vida plugada na internet é uma vida pela metade. Pode ser que ele esteja questionando o uso das redes sociais, agora que ele ficou famoso e se as pessoas se importam pessoalmente com ele mesmo. Mas o eu-lírico da música parece estar nos questionando sobre a importância que damos para essas coisas. E em “On and On”, a ansiedade e o vício são relacionados às redes sociais.

Voltando para os filmes, não é como se eles fossem um retrato completamente fiel da realidade que vivemos. Eles brincam com extremos do que poderia acontecer. Mas nos deixa a refletir sobre como usamos essas plataformas. Muitas vezes queremos postar alguma coisa, mas temos vergonha de publicar em nosso  próprio perfil e não o fazemos. Outras, nos sentimos obrigados a postar algo. Até mesmo, sentimos que temos de postar tudo, para que as pessoas vejam o que supostamente estamos fazendo. De todo modo, as redes sociais podem nos levar a um ciclo vicioso de dependência, e pode mexer com nossa saúde mental, que atualmente já é abalada constantemente.