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Tidelands: um lugar de sereias e mistérios

Tidelands, a primeira produção australiana da Netflix, foi lançada em 14 de dezembro do ano passado e tem o brasileiro Marco Pigossi no elenco. A série conta a história de Calliope McTeer (Charlotte Best), recém-saída da prisão, que retorna a cidade natal determinada a buscar justiça e ter respostas sobre o passado. À primeira vista parece ser uma trama comum, envolvendo rede de tráfico de drogas na cidade litorânea, policiais corruptos, segredos de família, mas em Tidelands isso tudo é entremeado por elementos sobrenaturais.

Atenção: este texto contém spoilers!

Os tidelanders vivem em L’Attente, comunidade meio hippie nos arredores da baía de Orphelin. Aparentemente isolados da população, sabemos que sua autossuficiência financeira advém do tráfico de drogas e de um esquema acordado com policiais. Eles são jovens, esculturais, misteriosos e possuem habilidades como força sobre-humana, capacidade de respirar debaixo d’água e de não envelhecer, manipular água, sangue e prever o futuro, tudo isso devido ao fato de serem filhos de sereias com humanos.

A mitologia das sereias remonta à Grécia, e seus registros mais antigos são os da Odisseia de Homero. Até hoje, esses seres metade mulher, metade peixe (ou pássaro) continuam servindo de inspiração em diversas produções da cultura popular como O Canto da Sereia (Globo), A Pequena Sereia (Disney), Siren (Freeform/Sony).

No “Canto XII” da Odisseia, lemos a passagem de Ulisses pela ilha de Capri. Ulisses é avisado que enfrentará perigos na região, local em que várias embarcações se aproximam demais da praia, atraídos pelo canto hipnotizante das sereias, e acabam naufragando ao bater nas pedras. Para conseguir sobreviver à travessia, Ulisses se amarra ao mastro do navio, impedindo-se de ceder à tentação de nadas até as sereias, e tapa os ouvidos de sua tripulação com cera, para que não pudessem ouvir o canto das criaturas. Desde então já nos deparamos com algumas das características que continuam a ser atribuídas às sereias até hoje: astúcia ao enganar os seres humanos e sensualidade.

As sereias em Tidelands fazem jus às origem do mito e continuam rodeadas de mistério, apresentando-se como seres muito pouco humanos no quesito estético, que seduziam os homens para o mar. Assim que tinham os bebês (metade sereia, metade humanos), os abandonavam na praia. A comunidade retratada na série é composta pelos órfãos das sereias, que encontram em Adrielle Cuthbert (Elsa Pataky) a mãe que nunca tiveram, papel que ela parece aceitar. Adrielle é a líder da comunidade matriarcal que se forma no local, “uma combinação de feiticeira, rainha, líder de culto, gata surfista, vilã de James Bond e matriarca estilo Daenerys”, segundo Luke Buckmaster do The Guardian. Para acumular todas essas funções, o que vemos muitas vezes é uma atuação muito caricata, com entonação sempre sussurrante e pausada que mira na profundidade, mas acerta no enfado, na maior parte do tempo. O ponto alto de Adrielle são os últimos episódios, nos quais conseguimos ver o desespero e a quase loucura de conseguir realizar a profecia ao redor da qual a história gira. Nesse momento, observamos na personagem a vilania pura de alguém que se preocupa apenas consigo própria.

Tidelands

Dylan (Marco Pigossi), um dos seus capangas, representa muito bem a relação conflituosa beirando o complexo de Édipo que os demais personagens mantêm com Adrielle: apaixonado, ele se envolve afetivo-sexualmente com ela, mas ao mesmo tempo a vê como mãe e protetora. Adrielle se aproveita da confiança não só de Dylan como dos outros tidelanders para desenvolver seu plano baseado em uma profecia.

Bons aspectos da narrativa se perdem completamente em escolhas óbvias. Cal McTeer, a aparente protagonista da série, que volta à cidade determinada a descobrir sobre seu passado, sobre a morte do pai e o crime que a levou presa, acaba subvalorizada num quadrado amoroso entre Corey Welch (Mattias Inwood), Dylan e Adrielle. O mesmo acontece com a história do tráfico de drogas, suas as consequências para a população e a polícia, que só serve de pano de fundo para os tidelanders demonstrarem suas habilidades. A trama das viúvas dos pescadores mortos no tráfico, que se organizam e buscam vingança, também não rende. Uma sociedade matriarcal com mulheres posições superiores aos homens, em sua maioria relegados a funções menores, numa inversão que não se vê com frequência, é outro ponto pouco desenvolvido pelos criadores de Tidelands.

Um ponto interessante da série é a sexualidade dos tidelanders, mais livre se comparada ao restante da população da baía. Vemos interações naturais entre as mulheres e homens sem que o assunto seja tematizado, sem se pautar pela monogamia e sem ciúmes aparentes. Apesar de orientações sexuais diversas serem serem retratadas, o mesmo não acontece com os corpos: a maioria das atrizes e atores são brancos, magros e musculosos. Incomoda perceber que mesmo em um ambiente narrativo ficcional, em que a premissa parte de um lugar imaginado, os produtores e criadores escolham repetir os mesmos padrões discriminatórios nos papeis principais.

O foco em corpos, sexo e dramas fracos acaba deixando a série rasa. A Netflix apostou em um sucesso global, que falasse com a Austrália e com o mundo, um thriller envolvendo criaturas sobrenaturais e crimes, mas acabou errando o alvo. Tidelands não entrega enredo suficiente para tanto e deixa a pergunta: se fosse uma distribuição convencional de um episódio por semana em vez de todos disponíveis de uma vez na plataforma, continuaríamos vendo a série após o piloto? Por outro lado, se a expectativa não for tão alta e o desejo for por um entretenimento rápido e descompromissado, pode ser que a série seja uma opção viável.

Tidelands (Austrália, 2018) - 2,5 estrelas