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Homecoming: Beyoncé e o surgimento de um novo cânone

Depois de Homecoming, não resta dúvidas que Beyoncé é a maior artista viva de nossos tempos. Mesmo assim, foi só em 2018 que ela se apresentou no Coachella, a primeira mulher negra a ser headliner daquele que provavelmente é o maior festival de música dos Estados Unidos, e que em 2019 chegou à sua vigésima edição. Beyoncé não precisa do Coachella para validar sua excelência, uma vez que seus 22 anos de carreira são sua melhor testemunha, mas em abril de 2018 ela chegou ao deserto californiano para fazer o que tem feito de melhor nos últimos anos: reivindicar um espaço e transformá-lo em algo novo, algo seu, e algo para ser compartilhado com os seus. Senhoras e senhores, bem vindos ao Beychella.

O espetáculo foi visto por uma plateia de 250 mil pessoas somando os dois fins de semana, além dos milhões de fãs no mundo inteiro que acompanharam tudo via streaming, fotos e stories variados. Um ano após os dois shows históricos, Homecoming chega à Netflix, um especial de duas horas e 17 minutos com o registro das apresentações intercalado com cena dos bastidores que mostram a maratona de Beyoncé e sua equipe na preparação para o festival, além do processo criativo por trás do Beychella. Assim como o espetáculo, o documentário foi dirigido, produzido e roteirizado por Beyoncé Knowles-Carter, que supervisionou tudo, desde as coreografias até os mínimos detalhes do figurino, e fez questão que Homecoming destacasse os oito meses de trabalho duro até a apresentação final e todas as pessoas — e histórias — que fizeram parte dessa construção.

Schoolin’ Life

Homecoming — ou volta pra casa, em tradução grosseira — é o nome dado a uma clássica celebração norte-americana que se dá principalmente em escolas e universidades, quando as instituições recebem de volta seus estudantes depois das férias ou então ex-alunos retornam ao campus em que estudaram para se reencontrar com antigos colegas e professores. Embora as festas de homecoming sejam comuns nos Estados Unidos como um todo, elas têm um peso especial na cultura das universidades historicamente negras, conhecidas como HBCUs, as quais Beyoncé escolheu homenagear em sua apresentação no Coachella. Essas instituições têm sua origem no século XIX, depois da Guerra Civil que aboliu a escravidão, e até a década de 1960 — ou seja, durante o período de segregação racial nos Estados Unidos — eram exclusivamente frequentadas pela população negra, então impedida de ocupar os mesmos espaços que os brancos, fossem eles escolas, igrejas e até bairros.

Desde então as HBCUs têm se mantido como pólos de resistência, celebração e afirmação da cultura negra no país, e até hoje elas são responsáveis por promover ações que visam diminuir a desigualdade de renda entre negros e brancos nos Estados Unidos, com custos reduzidos, apoio e acolhimento para que estudantes de baixa renda — principalmente aqueles que são os primeiros em suas famílias a ingressarem numa universidade — possam concluir os estudos. De acordo com Michael Lomax, atual presidente da United Negro College Fund (UNCF), as HBCUs também são responsáveis por um ambiente que mostra a esses alunos que o sucesso é possível, oferecendo modelos em que eles possam se espelhar e encontrar identificação. De forma análoga, esse era o objetivo de Beyoncé com sua apresentação: “Quando decidi cantar no Coachella, em vez de usar minha coroa de flores, era mais importante levar nossa cultura para o festival”, explica a artista em uma das narrações de Homecoming.

O dicionário define cânone como “norma, princípio geral do qual se inferem regras particulares”, o que, por extensão, pode ser entendido como “maneira de agir; modelo, padrão”. Ou seja, faz parte do cânone aquilo que é considerado referência, o modelo de excelência que todos devem seguir; é do cânone que derivam as características que deve ter aquilo que é validado por uma determinada comunidade, é a partir do cânone que todo um imaginário se forma, principalmente um imaginário de sucesso e grandeza. Um cânone não cai do céu, mas se forma a partir dos valores de cada sociedade, e esses valores quase sempre estão ligados a quem detém o poder nessa sociedade.

Logo, nosso cânone é marcado por padrões masculinos, brancos, heterossexuais, excluindo sistematicamente todas as referências e narrativas que fogem dessa ordem, uma exclusão que se torna mais forte quanto mais nos aproximarmos das grandes esferas de poder. Basta ver, por exemplo, a quantidade de pessoas negras laureadas com um prêmio Nobel em qualquer área — ou até mesmo um Grammy ou Oscar — ou o número de mulheres e pessoas não-brancas na bibliografia de cursos de universidades prestigiadas.

O que Beyoncé fez através do Beychella foi erguer um novo cânone todo baseado na excelência negra em diversas frentes, não só na música e na cultura pop, um esforço que tem norteado sua carreira principalmente nos últimos anos, e pode ser visto de forma concentrada na apresentação para uma audiência global. É como ela se dissesse a cada verso, passo de dança e frame de vídeo: sou a maior artista do mundo nesse momento e esses foram os modelos que me trouxeram até aqui. Vejam, conheçam, pesquisem, se inspirem, aprendam. E bow down, bitches.

A referência das HBCUs novamente se apresenta como conceito central no desenvolvimento do espetáculo quando pensamos no peso das universidades na propagação e manutenção do cânone intelectual. Por isso, as diferentes partes de Homecoming são pontuadas por frases de artistas e pensadores negros. Toni Morrison, Nina Simone, W.E.B. Dubois, Alice Walker, Marian Wright Edelman, Danai Gurira, Reginald Lewis, Audre Lorde, Cornel West, Maya Angelou e Chimamanda Ngozi-Adichie — muitos deles formados em HBCUs — são apresentados através de frases inspiradoras, conselhos sobre a vida, reflexões sobre a excelência negra e também lições sobre a importância da educação na vida de uma pessoa negra.

Embora já seja tema de um curso em Harvard, Beyoncé não frequentou uma universidade tradicional, e, como ela mesmo explica, sua escola foram os anos viajando pelo mundo primeiro com o Destiny’s Child e depois em carreira solo. Isso não a impede de fazer do seu show também uma aula, levando esses séculos de tradição para o palco do Coachella, um festival que pode ser reconhecido como branco e normativo, seja pelo público que o frequenta como também pela forma que funciona como plataforma para um cânone já conhecido de artistas, em sua maioria homens brancos. Depois de receber inúmeras críticas, nos últimos anos o evento tem feito um esforço para diversificar suas apresentações, e em 2018, além de Beyoncé, SZA, Cardi B, Kali Uchis, Hayley Kyoko e Princess Nokia fizeram parte do line-up, e esse ano Ariana Grande foi a terceira mulher a se apresentar como principal atração do festival, se juntando à Beyoncé e Lady Gaga. Ainda é muito pouco, mas é um começo.

Apesar de estar caminhando na direção certa, com uma curadoria que mostra ao público uma gama mais diversa de atrações, que pode ser entendida como uma nova gama de exemplos e possibilidades para o público que assiste e às novas gerações de artistas (olha a ideia do cânone novamente!), o Coachella ainda tem muito a superar. Uma investigação iniciada em 2016 mostrou que Phillip Anschutz, dono da empresa que é dona do festival, doou milhares de dólares a organizações anti-LGBTQ+ que também apresentam posicionamentos conservadores em relação a políticas de imigração, legalização da maconha, dentre outras. Essa revelação fez com que muitos questionassem a realização do Beychella, assim como as contradições entre o feminismo de Beyoncé e suas inclinações capitalistas são frequentemente problematizadas. Embora seu patamar como artista não invalide essas críticas, o alcance e a magnitude de Homecoming não podem ser ignorados como evento histórico de profundo impacto na cultura e o simbolismo do Coachella é parte relevante dessa narrativa.

Tina Knowles, mãe de Beyoncé, escreveu em seu Instagram após a apresentação da filha:

“Disse à Beyoncé que estava com medo que o público majoritariamente branco do Coachella ficasse confuso com toda a cultura negra e a cultura das universidades negras [no palco] porque são coisas que eles podem não entender. Ela disse: ‘Trabalhei duro para chegar a um ponto em que tenho uma voz verdadeira e nesse momento da minha carreira tenho a responsabilidade de fazer o que é melhor para o mundo, e não o que é mais popular’. Ela disse que sua esperança é que depois do show os jovem pesquisem essa cultura e vejam como ela é bacana, que jovens negros e brancos possam ouvir ‘Lift Every Voice and Sing’ [canção considerada o hino nacional negro] e vejam o quão incríveis são essas palavras, e isso construa uma ponte nesse vão [que separa negros e brancos]. (…) Fui corrigida.”

De acordo com a crítica cultural Bolu Babalola, Beyoncé não só presta uma homenagem, mas nos convoca a ouvir as vozes que tiveram um importante papel ao moldar a escopo cultural da negritude, da feminilidade negra, da arte negra. Foram essas as palavras que a guiaram, e que deram a mulheres negras, ao povo negro, a energia necessária para crescer. Beyoncé é parte de uma tradição e de um legado”.

Déjà Vu

Esse resgate da cultura negra não é um movimento novo na carreira de Beyoncé, e o exemplo mais emblemático e potente desse esforço está em Lemonade, álbum visual lançado em 2016. Vídeos como “Formation”  e “Freedom” mostram cenários clássicos do sul americano, com seus grandes casarões de confederados donos de escravos, mas dessa vez ocupados por pessoas negras — mulheres negras — usando antigos trajes de gala. Em “Hold Up”, Beyoncé usa seu vestido amarelo enquanto destrói hidrantes e molha toda a cidade, uma referência a Oxum, que reina sobre os rios e mares e remete ao amor, à beleza, à sensualidade e ao poder feminino — temas trabalhados por Beyoncé no álbum de 2014 que leva seu nome. Em “Sorry”, a artista e suas dançarinas aparecem pintadas de acordo com a tradição Ori, um elemento da simbologia Yorubá.

Lemonade é um álbum extremamente pessoal de uma forma que ela até então não tinha se permitido, e oferece sua visão de amor enquanto uma mulher negra, sua experiência com casamento e traição e os diferentes sentimentos que fazem parte dessa trajetória: intuição, negação, raiva, apatia, vazio, responsabilidade, reforma, perdão, ressurreição, esperança e redenção — todos os atos do filme conceitual que acompanha o álbum. São sentimentos que marcam sua história pessoal, mas as diversas participações especiais e as referências que ela agrega em suas letras e nos elementos imagéticos da obra revelam a preocupação radical da artista em trazer o pessoal para o político. Beyoncé nunca está sozinha, mas sempre junto dos seus, e as histórias que conta ressoam também numa narrativa mais ampla, abrangente e ainda muito pouco conhecida para quem está de fora, uma perspectiva que não é o referencial quando se fala em amor, raiva, esperança, perdão e redenção, e que não se limita a histórias de relacionamentos românticos.

Na construção do texto e das letras, Beyoncé toma emprestados versos de Warsan Shire, autora de Teaching My Mother How to Give Birth, um livro em que a poeta também articula sentimentos pessoais com a história, da qual ela é herdeira, da diáspora negra. Shire tinha 28 anos quando recebeu atenção mundial ao aparecer nos créditos de Lemonade e além de dois livros curtos com seus poemas, sua produção estava toda concentrada na internet, principalmente em redes sociais como Instagram e Tumblr, outra forma de desafiar o cânone literário. Além de Warsan Shire, na lista de colaborações e referências se destacam nomes como o rapper Kendrick Lamar, o trio franco-cubano Ibeyi, as atrizes Amandla Stenberg e Zendaya, a tenista Serena Williams, as mães de Trayvon Martin, Sybrina Fulton, Mike Brown, Lesley McSpadden, e Eric Garner, Gwen Carr, jovens negros mortos pela polícia estadunidense que alavancaram o movimento #BlackLivesMatter.

“The past and the future merge to meet us here. What luck. What a f*cking curse.” [“Passado e futuro se fundem para nos encontrar aqui. Que sorte. Que porra de maldição.”]

Já em 2018 Beyoncé lançou o projeto The Carters, ao lado de seu marido Jay-Z, surpreendendo a todos com o álbum Everything Is Love. “APESHIT”, o primeiro single, teve seu clipe gravado no Louvre, e revela mais uma faceta do projeto de subversão e reivindicação canônica da artista, dessa vez mirando a história da arte. O casal Carter toma conta do museu mais famoso do mundo e escancara o modo como o cânone das artes plásticas ocidentais apaga a tradição negra, seja de suas representações ou da validação que determina quem tem o direito de se considerar artista e quais obras serão celebradas por séculos em museus como aquele.

“I would never let you shoot the nose of my pharaoh” [“Nunca deixaria você atirar no nariz do meu faraó”], ela canta em “Black Effect”, uma referência ao mito de que o exército de Napoleão teria sido responsável por destruir o nariz da Esfinge de Gizé. O simbolismo do ato — que não se sabe se foi deliberado ou não — é usado para falar do distanciamento que se faz da identidade africana do povo egípcio por séculos de representação que embranquece suas figuras icônicas. Elizabeth Taylor é a Cleópatra mais famosa do cinema, por exemplo, e Beyoncé rompe com essa narrativa ao aparecer no início do show vestida como Nefertiti, rainha do Egito.

Na foto em que anuncia sua gravidez de gêmeos, que em 2017 entrou para o Guiness como recorde de imagem mais curtida num intervalo de 12 horas, seguida da sessão de fotos postada em seguida em seu site, Beyoncé evoca ao mesmo tempo a história da arte e clássicos simbolismos religiosos. Ela é a Vênus de Boticelli, a Virgem de Guadalupe, e a Ofélia de Gustav Klimt embaixo da água. As fotos foram feitas pelo artista etíope Awol Erizku, e não é a primeira vez em seu trabalho que ele faz releituras de grandes obras da cultura ocidental, como o Davi de Michaelangelo e o famoso retrato de Beyoncé e Jay-Z em frente à Monalisa, em 2014. Também não é a primeira vez que ela explora a figura da Madonna, que faz parte do imaginário renascentista, um período que marca o retorno aos valores e referências da antiguidade clássica — e nada mais Mrs. Carter do reconfigurar o cânone transformando a si mesma em ícone de beleza, fertilidade e criação. O “bordão” feminista “Deus é mulher” nunca fez tanto sentido.

Diva is a female version of a hustla

Beychella segue a mesma lógica que mistura resgate da ancestralidade com celebração da cultura negra que está sendo feita agora, evocando Nina Simone ao mesmo tempo em que desfila pelo palco ao som de uma composição de uma banda contemporânea de Nova Orleans, a Rebirth Brass Band, responsável por “Do Watcha Wanna”, que abre a apresentação. Na hora de selecionar a banda e os dançarinos, Beyoncé buscou reunir diferentes talentos para que todos tivessem ali uma plataforma para apresentar sua própria excelência, ao mesmo tempo em que fizessem parte de um todo e se inserissem na tradição celebrada naquela noite. Desde a sonoridade que adaptou as músicas do catálogo da artista ao som dos instrumentos de fanfarra, passando pelos passos de dança e aos números dos entreatos, todo o espetáculo remetia aos shows tradicionais que acontecem no intervalo dos jogos de homecoming nas HBCUs, e das batalhas de bandas que Beyoncé cresceu assistindo.

Por meio dessa rica mistura de referências, o que Beyoncé mostra ao mundo é que desses movimentos de desconstrução, resgate e reivindicação ela foi capaz de construir o seu próprio cânone. Sua intenção não era meramente ocupar um espaço e se encaixar nele, mas sim erguer um universo próprio, com lógica e estilo próprios, diferente e mais radical que tudo que o festival já presenciou. Não é à toa que a pirâmide usada como estrutura para seu espetáculo ficou em exibição na edição deste ano do festival, como peça de museu e um marco na história do Coachella.

“Tudo começa pela escolha do cenário: ao colocar no centro do palco uma pirâmide, símbolo maior da grandiosidade da cultura africana, entrar triunfante, vestida como uma rainha egípcia e depois como uma universitária, com o uniforme do time e todas aquelas referências tão caras às jovens universitárias proporciona um verdadeiro passeio transatlântico. Mais que um show memorável, cria uma alegoria da diáspora negra e um grito bem no meio da cara dos racistas: ‘vocês tentaram roubar nosso legado histórico, cultural, científico e filosófico, mas o pegamos de volta! Vocês tentaram nos privar do espaço que construímos no cárcere por meio do nosso trabalho, sangue, suor e lágrimas, mas estamos aqui, dominando também seus espaços de formação para libertar nosso povo'”

Mariana Santos de AssisBlogueiras Negras

Homecoming-4

“It takes a village” [é preciso uma comunidade] é uma das mensagens mais fortes de Homecoming, destacando o esforço coletivo para se construir uma apresentação como a do Beychella, como também os séculos de história e produção artística negra que fizeram de Beyoncé a artista que conhecemos. Ao mesmo tempo, é impossível ignorar as formas como ela surge como abelha rainha e sol do universo que cria a partir de sua trajetória desde que começou a cantar. O repertório do show conta com sucessos de todas as fases de sua carreira e é impressionante a forma como ela dá às canções a maleabilidade necessária para que elas se adequem aos diferentes gêneros musicais que explora ao longo da apresentação, e também para que se atualizem e pareçam frescas, relevantes e coerentes com a sua narrativa atual. Um exemplo marcante é o caso do medley entre “Sorry”, de Lemonade, e “Me, Myself and I”, de seu primeiro álbum, Dangerously in Love, de 2003, que poderia estar em qualquer trabalho mais recente da cantora. Das releituras jazzy de “Crazy in Love” e “Party”, passando por seus grandes hits pop “Single Ladies”, “Run The World (Girls)”, e “Love on Top”, o canto lírico de “I Care”, a sonoridade latina de “Mi Gente”, seu clássico R&B de “Partition” e “Yoncé” e até mesmo sua empreitada no rock com a potente “Don’t Hurt Yourself”: não há fronteira de gênero em seu trabalho.

Da mesma forma, a escolha de ter como convidados especiais suas “melhores amigas”, Michelle Williams e Kelly Rowland, do Destiny’s Child, de seu marido Jay-Z, e de sua irmã Solange, aproximam o espetáculo do lado mais humano de Beyoncé. Quando recriam a coreografia de “Get Me Bodied”, o esforço físico e a precisão dos movimentos das irmãs Knowles parecem fáceis só pela forma como elas estão genuinamente se divertindo na apresentação. Homecoming, seja o documentário ou a tradição universitária, é símbolo de resistência, mas também é uma festa e isso não pode ser esquecido. Muito se falou sobre os longos meses de preparação, as muitas horas de ensaio e a dieta restritiva que Beyoncé se submeteu para estar em forma para o show, e esse mérito é dela, mas seu trabalho duro e sua excelência não podem eclipsar a importância da vulnerabilidade que ela se permite compartilhar nesse momento de sua carreira.

***Flawless

Apesar de sempre se aproximar da figura de deidades e ser conhecida pelo controle extremo com o qual conduz sua carreira, Homecoming mostra também algumas fragilidades em Beyoncé, a começar pelo adiamento de sua apresentação no Coachella, que deveria ter acontecido em 2017 não fosse uma gravidez inesperada. No documentário ela revela as dificuldades não só de lidar com essa mudança de planos, como também com uma gravidez de risco. Mesmo contando com recursos e uma infraestrutura impensável para a maioria das mulheres que volta ao trabalho depois de ter filhos, chama atenção o destaque que o filme dá para as pausas que a maternidade obriga Beyoncé a seguir: a necessidade voltar para casa para amamentar Rumi e Sir Carter, a presença dos gêmeos e de Blue Ivy nos ensaios, as limitações físicas que ela precisou superar e a dificuldade em se reconhecer novamente no próprio corpo.

Muitas pessoas se incomodaram com essa ênfase que Beyoncé dá ao corpo e sua pressa em perder peso depois de dar à luz, mas acredito que essa seja uma questão mais complexa do que simplesmente a urgência em se adequar novamente ao padrão de beleza. Em sua análise para o Blogueiras Negras, Mariana Santos de Assis associa esse esforço aos saberes da ancestralidade negra:

“Tal atitude é fundamental, dentre outras coisas, pois a luta empreendida por ela tem o corpo como principal arma, assim como tantos grandes nomes da luta negra libertaram irmãos e irmãs por meio da arte, da dança, da música e de seu próprio sangue. Nossos corpos falam, gritam aos quatro cantos a denúncia das inúmeras tentativas de brutalizá-los e grita ainda mais alto quando exaltamos sua beleza, quando mostramos e nos orgulhamos das curvas por tanto tempo rejeitadas e até odiadas por nós mesmas/os.”

Um dos aspectos mais interessantes de Homecoming está justamente no conflito da artista com suas fragilidades e limitações: em determinado momento, ela reconhece que se levou a um extremo que não deseja submeter seu corpo novamente, e isso é dito quase em tom de confissão, como se a necessidade de superar os próprios limites fosse mais forte que ela. Isso nos lembra novamente que Beyoncé foi a primeira mulher negra a ser headliner do Coachella: será que ela teria essa oportunidade se não fosse essa Beyoncé impecável? Agora que ela cruzou essa linha, teria essa oportunidade se expandido para mais pessoas? Difícil saber, mas é possível ser otimista com o futuro.

Temos sido testemunhas da história num momento de transformação do mundo, e infelizmente, na maior parte das vezes, essa consciência de ser sujeito histórico vem de um jeito ruim, com a crise na democracia, a ascensão de um novo conservadorismo autoritário e reacionário, o aumento da violência contra minorias e os discursos de ódio sendo confundidos com opinião. Por outro lado, assistir Homecoming também é ter a experiência de ver a história acontecendo diante de si, dessa vez de forma privilegiada, pela oportunidade de poder ver uma artista como Beyoncé em seu auge, ressignificando o auge a cada passo que dá em sua carreira.

Depois do Beychella, a sensação que fica é que depois de revisitar e reivindicar todas as tradições e caminhos já conhecidos, é hora de fazer algo completamente novo surgir. “I wanna make sure I’m right, boy/Before I let go (…) I wanna make sure I’m bright, boy/Before I let go” [“Quero ter certeza que estou certa, garoto, antes de deixar pra lá (…) Quero ter certeza que sou brilhante, antes de deixar pra lá”], ela canta em “Before I Let Go”, música que toca nos créditos de Homecoming. Embora não reste dúvidas de que ela está certa e é brilhante, sabemos que seu referencial é diferente e é possível fazer mais, fazer diferente. E então quem saberá dizer que rumo a vida tomará? Eis uma história que vale a pena seguir.


* A arte em destaque é de autoria da editora Ana Vieira