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Oscar: Pantera Negra, filmes de super-heróis e o elitismo cultural

O que é necessário para que um filme seja indicado ao Oscar? Mais especificamente, que ele concorra à categoria de Melhor Filme? Algumas das respostas podem incluir ser profundo e gerar um debate socialmente relevante, abordar de forma envolvente e emocionante um fato histórico ou uma situação que cause comoção e reflexão, aliando roteiro, estética, direção e produção, tudo balanceado de tal forma que o resultado seja algo que permaneça na memória das pessoas por muito tempo.

Por mais que não exista uma fórmula mágica, com décadas de material premiado não é difícil tirar um parâmetro do que agrada a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas e de que maneira elevar as chances de ter uma produção vencedora da estatueta. Com o tempo, surgiram os chamados filmes “iscas de Oscar” (Oscar bait, em inglês), que emocionam na medida certa e contam uma história que pode até chocar em certa medida, mas que nunca vai fundo em algum debate ou tema.

Mesmo assim, seguir a fórmula não é garantia de indicação, afinal nem tudo passa pelo crivo da Academia e a lista de esnobados do Oscar é maior a cada ano. Como tudo que é escolhido de forma subjetiva, mesmo regido por determinados critérios, sempre há controvérsias. E, ah!, as controvérsias do Oscar. Cada edição reserva uma polêmica nova. A diferença é que nos últimos anos os debates em torno da maior premiação do cinema mundial tem sido, digamos, mais produtivos e provocado ainda pequenas, mas significativas e necessárias, mudanças.

O último grande movimento, que se estende até hoje e continua, felizmente, a pressionar a Academia, é o #OscarTãoBranco (#OscarSoWhite, no original). Iniciado em 2016, após nenhum ator, diretor ou outro profissional negro ser indicado, a pressão, criada principalmente por meio das redes sociais, gerou burburinho nos bastidores e trouxe a fala e posicionamento de atores e atrizes de Hollywood para o holofote, a fim de abrirem caminho para a mudança. No ano seguinte, o Oscar buscou sua redenção, indicando mais de 10 profissionais negros e tendo filmes como Estrelas Além do Tempo, Lion e Moonlight na lista de indicados e, inclusive, premiando, o último como o Melhor Filme daquele ano; uma produção protagonizada por personagens negros e que também carregava o peso de debater a descoberta da homossexualidade de seu protagonista.

São pequenas sementes plantadas que aos poucos, e sob forte vigilância e cobrança, vem produzindo resultados. O fato é que a mudança precisa ocorrer em todos os níveis: nos produtores, nos atores dispostos a abraçarem projetos criados por não-brancos, na sociedade em reconhecer a importância e urgente necessidade de uma mídia mais diversa e, claro, nos bastidores da Academia. Afinal, o que agrada os seus membros é aquilo que reflete as suas vivências socioculturais e os paradigmas inveterados por uma sociedade branca, elitista e patriarcal.

Existe uma correlação diretamente numérica entre a raça e gênero dos integrantes da Academia com os filmes indicados e premiados. Conforme estudo do jornal americano Los Angeles Times são mais de seis mil membros na Academia, sendo que uma parcela assustadora de 91% são brancos, 76% homens e 86% têm mais de 50 anos. Se a diversidade não existe em quem julga, ela dificilmente irá se refletir naquilo que é premiado. Destaque para o fato de que nenhuma mulher foi nomeada para a categoria de Melhor Direção — mesmo que no recorte de raça seja importante ver homens não-brancos figurando entre os indicados.

O problema, no entanto, não termina apenas na questão de gênero e raça, mas afeta também, em uma proporção menos debatida, o recorte social e cultural. É de conhecimento geral que Hollywood é um ambiente elitista e o Oscar ajuda na manutenção deste lugar-comum com a priorização de filmes classificados como “cultos” e enquadrados na categoria qualificativa amada pelos críticos de cinema de “filmes que fazem pensar”.

O que nos leva a: lembram da lista de esnobados do Oscar? Muitos dos filmes que lá estão não a engrossam por serem mal executados ou não atingir o nível de qualidade/bilheteria ideais, mas são relegados a ela por serem produções que, devido aos motivos supracitados, não são considerados bons o suficiente para serem indicados. Nesta categoria, além dos famigerados blockbusters, estão, é claro, os filmes de super-heróis, tão populares e numerosos nos últimos anos que causa certa estranheza, e nos faz questionar o porquê da falta de indicações em categorias que não sejam apenas técnicas. Mais do que apenas uma conversa sobre falta de diversidade em Hollywood, também é preciso levantar o debate acerca do elitismo cultural e o que é, de fato, considerado cultura pela Academia, especialmente no que tange as produções fora do círculo erudito.

Logan, em 2018, surpreendeu ao ser indicado na categoria de Melhor Roteiro Adaptado.

A democratização do acesso a livros, filmes e outros produtos culturais, além da ampliação dos espaços para debate gerada pela expansão da internet, também trouxe consigo um reforço arraigado e difícil de dissolver daquilo que é considerado cultura ou não. Desde o início da Primeira Guerra Mundial vivemos, enquanto sociedade, profundas e constantes mudanças, uma delas sendo o surgimento da Escola de Frankfurt, que tinha à frente pensadores como Adorno e Horkheimer, e onde o conceito de cultura era extensivamente debatido, sendo muito utilizada como referência por teóricos do mundo todo a vertente da Indústria Cultural e Cultura de Massa, para classificar o que faz jus ao conceito.

De acordo com Adorno, com a produção e difusão em massa das manifestações artísticas e culturais, o modo como os indivíduos passaram a absorver o que lhes era entregue mudou, e não de um jeito positivo. A mercantilizarão e exploração capitalista de todas as formas possíveis de um produto massifica o consumo, tornando os pensamentos e opiniões homogêneas, não levando em conta recortes de identidade, gostos e afins na produção de um produto, acarretando em um modo passivo de consumo que, com o tempo, desencoraja o senso crítico por parte do público consumidor e anula a procura por novas experiências, descritas como arte erudita.

Embora seja pertinente e assertiva, e abarque de forma cristalina o que hoje nos referimos como cultura pop, lançando um paralelo interessante entre a massificação de uma produção e os blockbusters, nos quais estão incluídos os filmes produzidos pelas gigantes dos quadrinhos, Marvel e DC, a teoria também ajuda a explicar o desdém e desprezo cultivado há tudo que se refere a cultura pop, seja seus produtos ou consumidores. Com o argumento de “verdadeira cultura” acobertando um discurso de elitismo cultural, para Adorno, por exemplo, jazz e outras manifestações musicais populares, não eram válidas se comparadas com a música clássica — uma produção “séria”, enquanto o outro espectro era algo bárbaro e regressivo. Tal discurso desvalida manifestações culturais que não se encaixem neste padrão, além de perpetuar uma ideia de entretenimento barato, raso, sem qualquer propósito ou poder transformador sociocultural pelo outro espectro.

Pantera Negra: a vez dos super-heróis?

pantera negra

São 91 edições de Oscar; em todo esse tempo as estatísticas não se mostraram muito favoráveis, fora das categorias técnicas, aos ditos filmes populares. O mais próximo que uma adaptação de personagens em quadrinhos já chegou de ser indicada a categoria de Melhor Filme foi com o Homem-Morcego de Christopher Nolan, em sua trilogia do Cavaleiro das Trevas. Em 2009, dava-se como quase certa a nomeação do filme, mas com as vagas restritas a cinco nomes à época, o segundo filme da trilogia ficou de fora do páreo (o que acarretou na mudança de 10 vagas para a categoria no ano seguinte). Equilíbrio perfeito entre bilheteria, avaliações positivas da crítica e qualidade técnica e de roteiro inegável, a produção é referência até hoje no mundo cinematográfico e ninguém pode negar o seu traquejo em levantar temas socialmente relevantes, provando que é possível criar um roteiro sério, sem perder a sua essência pop. Apesar disso, foi graças a franquia, que o segmento de heróis no cinema conquistou uma estatueta. O Oscar póstumo para o ator Heath Ledger, intérprete do Coringa em Cavaleiro das Trevas, na categoria de Melhor Ator Coadjuvante, foi o primeiro a ser concedido a uma produção centralizada no universo dos super-heróis.

Em fevereiro de 2018, o mundo, por sua vez, presenciou o lançamento do 18º filme a integrar o Universo Cinematográfico da Marvel. Após quase dez anos de construção de sua história no cinema, a Casa de Ideias finalmente lança a produção solo de seu primeiro herói negro e preenche, desta forma, um vergonhoso espaço deixado pela falta de diversidade em suas produções. Finalmente pessoas negras poderiam se ver na tela, realmente se ver, já que o roteiro de Pantera Negra não previa apenas uma vaga para personagens não-brancos, como é de praxe na sociedade racista que se esforça para mostrar o quão racista não é, sem de fato fazer nada, mas todo um elenco majoritariamente negro (com apenas um personagem de destaque branco).

Nomes reconhecidos como Chadwick Boseman, no papel do rei de Wakanda, T’Challa, Michael B. Jordan como o vilão Killmonger, Lupita Nyong’o como espiã a serviço de Wakanda, Letitia Wright como Shuri, irmã de T’Challa e personagem canonicamente mais inteligente do MCU, integraram o elenco e ajudaram a compor um dos filmes mais bem-sucedidos e impactante dos últimos tempos. Quando o assunto são números, Pantera Negra é um fenômeno, levando o título de filme de maior bilheteria do ano da Marvel e nos Estados Unidos. No Rotten Tomatoes, foi considerado o Filme de Grande Lançamento com Melhor Avaliação em 2018, além de ser a produção com mais avaliações no site no mesmo período. Nas premiações, arrecadou prêmios como Melhor Elenco, no SAG Awards, e três indicações ao Globo de Ouro. Foi um filme que prometeu muito e no qual muitas esperanças foram depositadas, afinal se a chance de ouro de iniciar um comprometimento com a tão cobrada diversidade/representatividade fosse desperdiçada, estaríamos realmente avançando?

pantera negra

Felizmente, o que se viu foi uma primorosidade em cada detalhe, cada pequena parte, desde o roteiro conduz seus personagens e apresenta sua trama até aos figurinos pensados em significado que evocam a ancestralidade e riqueza cultural de um povo que luta diariamente para não ser apagado. Aqui a sensibilidade de quem está por trás das câmeras também mostra sua pertinência, dando a certeza de que Pantera Negra não seria o mesmo se não tivesse a sua frente o diretor Ryan Coogler e profissionais como a figurinista Ruth E. Carter, já indicada ao Oscar duas vezes por seu trabalho.

Fevereiro de 2019, quase um ano após sua estreia, o impacto de Pantera Negra é, certamente, muito maior do que qualquer bilheteria pode medir em números. Sabe quando dizem que algo nasceu para ser grande? Pantera Negra certamente o é. Seja pelas inúmeras fotos e relatos de pessoas negras posando com os cartazes do filme nos cinemas e expressando seus sentimentos em relação ao filme com poucas, mas significativas palavras, como É assim que pessoas brancas se sentem o tempo inteiro?, ou pelo fato de que após o anúncio dos indicados ao Oscar 2019 pela Academia, Pantera Negra se tornou o primeiro filme de super-heróis da história a ser indicado na categoria de Melhor Filme — além de acumular mais 6 indicações, em categorias como Melhor Canção Original, Melhor Trilha Sonora e Melhor Design de Produção; esta última também responsável pela primeira indicação de uma mulher negra na categoria: Hannah Beachler, que já havia trabalhado em outros projetos de Ryan Coogler, além de também ter trabalho com Beyoncé, em Lemonade, e no filme Moonlight.

Afinal, nada mais justo que o responsável por um marco histórico cultural, estabelecendo novos parâmetros de como realmente se traduz uma cultura ancestral para as telas de maneira digna e brilhante e servindo de prova que a diversidade traz ganhos para todos, também fosse aquele que quebrasse um estigma elitista no meio cultural cinematográfico, sendo o primeiro filme de super-heróis a ser reconhecido pelo Oscar em sua categoria mais relevante.

“Uma das maiores questões apresentadas em Pantera Negra talvez seja a maior autocrítica de todas: o que Wakanda, com todo o dinheiro que tem, pode fazer pelos seus irmãos negros ao redor do mundo? E, mais importante que isso: porque demorou tanto tempo para fazê-lo e escolheu fechar os olhos priorizando sua própria segurança? É interessantíssimo notar que o argumento e a motivação de Killmonger, suposto vilão, tenha sido uma questão levantada primeiro por Nakia, logo no começo do filme — a linha herói-vilão é borrada nesse nível!”

Pantera Negra vive, e Wakanda também

Foi uma trama baseada em questionamentos como esse, do que significa para cada um dos personagens viver em um mundo que não apenas os rejeita, mas os mata diariamente, e seu posicionamento diante dessa questão, juntamente com uma miríade de complexas e ambíguas situações e relações, que certamente tornaram a profundidade da abordagem da questão racial uma das coisas mais socialmente relevantes já produzidas em muito tempo, tudo sem perder o toque mítico, fictício e extravagante que um filme de super-herói carrega.

E é por tudo isso que, com sua indicação, Pantera Negra abre um precedente — um dos bons. Aliando representação racial com quebra de paradigma cultural, a magnitude do feito alcançado pelo filme em angariar uma indicação na mais alta categoria da mais importante premiação de cinema mundial, sobrepujando o discurso de ódio de uma sociedade racista e elitista, nos mostra que a cultura — popular, de massa, negra, não-branca —, independente da forma que assume ou é classificada, é válida, valorosa, faz a diferença no mundo e impacta a vida de seus consumidores. Afinal, os tempos mudam, as ideias e percepções evoluem e é preciso mover o debate adiante, sair da zona de conforto classista em que os padrões sociais nos colocam e perceber, de uma vez por todas, que a cultura pop tem, e muito, o poder de cultura transformadora e pensante. E, de modo algum, um produto cultural é menos ou tem seu significado reduzido/anulado por se enquadrar em uma cultura popular ou dita menos “séria”. Pantera Negra prova isso de A a Z.

Se até Hollywood reconheceu isso, talvez esteja na hora de também o fazermos. E se, no fim do dia, a estatueta não for concedida ao filme, o saldo ainda será o melhor possível. No fim das contas, garotinhos e garotinhas negras ganharam a certeza de que suas histórias são dignas de Oscar e, como já escreveu Duds Saldanha, “a lembrança de que são (somos!) todos descendentes de reis e rainhas.”


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!