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O Silêncio da Casa Fria: o terror de Laura Purcell

O ano é 1866 e Elsie não consegue se lembrar do que a levou a ser internada em um hospital psiquiátrico. Ela também não consegue falar devido a qualquer que seja o trauma que sofreu antes de ser colocada naquele hospital. Embora sempre tenha levado uma vida difícil até se casar, Elsie sabe que o que quer a tenha levado até ali é muito doloroso para que ela recorde e mantenha o pouco de sanidade que lhe resta. Porém um jovem médico está incumbido de seu caso e ele quer ajudá-la a se recuperar e, para isso, pede que Elsie tente escrever em um diário suas memórias desconexas. Mas essa é uma porta que ela não gostaria de reabrir.

O ano é 1865 e Elsie encara sua nova moradia com descrença. Conhecida como A Ponte, a antiga mansão dos Bainbridge precisa de reparos e reformas para se transformar em um lar de novo, mas Elsie não tem a energia necessária para a empreitada. Praticamente sozinha no casarão — Elsie conta apenas com a companhia de Sarah, prima de seu falecido marido, além da governanta e outras duas funcionárias —, a jovem, e grávida, viúva não consegue acreditar que seu outrora saudável marido a tenha deixado sozinha, que tenha morrido de maneira tão repentina. Tudo a respeito da morte de Rupert Bainbridge é um mistério e Elsie não consegue afastar a sensação de que há muito mais ao redor dessa história do que estão lhe contando.

“Cuidados. Sentada na beira da cama, ela queria se levantar de onde estava, pegar o braço do jovem e conduzi-lo delicadamente até a porta. Esse lugar não era para os inocentes.”

É nessa crescente de mistério e terror que Laura Purcell constrói a trama de O Silêncio da Casa Fria, um romance capaz de te arrebatar desde a primeira página e que incute no leitor a angústia e a urgência que a protagonista sente. Embora tenha iniciado a leitura sabendo que se tratava de uma trama de terror e suspense, recheada de mistério em um casarão escuro praticamente abandonado, a sinopse não me preparou o suficiente para os meandros da narrativa impactante de Purcell. Mesmo a aparente falta de carisma de Elsie tem razão de ser, e isso apenas induz o leitor a mergulhar cada vez mais na história que ela está relembrando, alternando a narrativa entre presente e passado, contando sempre com medo do que virá a seguir. Os sentimentos que Elsie vivencia transbordam pelas páginas, e esse é um mérito tanto de Purcell, capaz de criar uma trama tão rica em detalhes e assombrações, quanto de Camila Fernandes, tradutora da obra para o português.

A atmosfera de O Silêncio da Casa Fria evoca o melhor dos romances góticos, de seus casarões escuros, das noites frias e do vento que uiva por entre as árvores de um bosque escuro. Mas o livro não é somente uma história de terror: Laura Purcell embute em cada página de sua trama críticas a respeito de como a mulher é tratada em nossa sociedade, em como é silenciada e desvalorizada apenas por conta de seu gênero. Sim, O Silêncio da Casa Fria se passa na Inglaterra de 1800, mas como uma escritora contemporânea Purcell sabe que algumas coisas mudaram, sim, durante os quase 200 anos que nos separam do palco de sua narrativa, mas em outros aspectos nossas sociedade permanece tão patriarcal quanto sempre foi — e tudo isso está nas páginas de sua trama, em suas personagens (praticamente o livro todo é tomado por mulheres), em seus dilemas, seus medos e temores. Cada uma dessas narrativas é capaz de enriquecer ainda mais o livro, embutindo uma simbologia ainda mais forte em cada um dos acontecimentos que assombram as mulheres que vivem na Ponte.

A Ponte, inclusive, se transforma em um personagem à parte em O Silêncio da Casa Fria. O casarão abandonado dos Bainbridge é o local em que se passa a maior parte da trama, seja por meio das lembranças de Elsie ou quando ela descobre que o que está acontecendo não é novo, por assim dizer, mas teve origem com outra geração da família Bainbridge, em 1635. O casarão, com seus inúmeros quartos, corredores desertos, quadros e tapeçarias antigas é peça fundamental para o desenvolvimento da trama assustadora que alcança Elsie no momento em que ela se muda para o campo. As sensações estranhas que a mansão causa a Elsie parecem estar presentes em cada canto, cômodo e objeto (principalmente nas estranhas figuras de madeira, chamados de familiares, que adornam a casa e parecem surgir de repente nos quartos e salas, nunca posicionados nos locais em que deveriam estar) tornando praticamente impossível manter a sanidade e pensar objetivamente — embora Elsie seja corajosa e tente ser firme a maior parte do tempo, A Ponte, e o que quer que viva lá, é maligna o suficiente para tirar a protagonista de prumo.

O Silêncio da Casa Fria, publicado no Brasil pela DarkSide Books, evoca os melhores aspectos de histórias com casas mal-assombradas, como A Assombração da Casa da Colina, de Shirley Jackson e The Haunting of Hill House que, não por coincidência, é uma série inspirada no mesmo livro de Jackson. A angústia e confusão de Elsie são palpáveis, e o tom urgente assoma a cada página virada. Ainda que em um primeiro momento Elsie não desperte muita simpatia no leitor, a personagem cresce em uma constante, enfrentando a entidade que assombra A Ponte sem hesitar, lutando por sua vida com perseverança. A construção da protagonista é crível — desde o seu passado, trabalhando em uma fábrica de fósforos, suas tragédias familiares até o momento em que começa a relembrar seus terrores — e torcer por ela é fácil, simples. Quando, finalmente, o mistério d’A Ponte e dos Bainbridge é revelado, eu não sabia se queria sair correndo e gritando, jogar o livro longe ou agradecer Laura Purcell por ter escrito uma trama de fantasmas, espíritos e demônios tão incrível e assustadora.

“Mas, na verdade, ela invejava aquela risada. Invejava o fato de que ele ainda era capaz de rir.”

Se eu não soubesse que Laura Purcell é uma escritora contemporânea, teria acreditado facilmente que sua versão vitoriana de uma história de terror era vitoriana de fato. Todos os elementos assustadores e perturbadores dessas tramas estão presentes em sua narrativa, desde os detalhes do casarão assombrado que é A Ponte até os sustos e tensão pelos quais Elsie passa. O Silêncio da Casa Fria é uma história sobre terríveis segredos de família e uma casa antiga que abriga todos esses terrores além de mortes e incontáveis tragédias. A narrativa sutil de Purcell encaixa todos esses elementos de maneira perfeita, tornando praticamente impossível deixar o livro de lado por um momento que seja — você precisa chegar à conclusão da jornada de Elsie, precisa saber o que tem causado tanta dor aos Bainbridge durante tantos anos e precisa desvendar esse mistério mesmo que ele te leve madrugada à dentro em um dia de semana com expediente te esperando pela manhã.

Purcell criou uma obra prima do gênero pinçando diversos tropos do gótico, revitalizando-os em meio ao cenário vitoriano com figuras de madeira assustadoras e uma atmosfera sufocante de tensão e terror. Aqui os sustos não estão em figuras monstruosas saltando de cantos escuros, mas de ruídos que surgem sem razão de ser, acidentes fatais que espalham sangue e uma casa cujo ambiente é denso, pesado e melancólico capaz de drenar seus moradores até a última gota de sanidade. O Silêncio da Casa Fria, ao lado de Ghost Story, de Peter Straub, entrou para a galeria das minhas histórias de terror favoritas do ano e é a pedida certa para quem gosta de sentir gelar a espinha.

“Há algumas lembranças que não se quer guardar.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora DarkSide Books.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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1 comentário

  1. Eu ganhei esse livro de uma amiga semana passada no meu niver, e estou muita ansiosa pra começar!!!
    Desde que vi o anuncio de lançamento fiquei interessada, mesmo vendo alguns videos das pessoas falando que é bem perturbador kkkkk
    Agora que vi esse poste estou com ainda mais expectativas boas!!!

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