Categorias: CINEMA

Assassinos da Lua das Flores: a complacência dos homens brancos e do Oscar

Chegando em sua 96ª edição, é a primeira vez que uma atriz indígena nativo-americana concorre à categoria de Melhor Atriz do Oscar. A indicação é de Lily Gladstone, pelo papel de Mollie Burkhart em Assassinos da Lua das Flores, dirigido por Martin Scorsese. Apesar de histórica, essa nomeação também é um sintoma de quais são as obras, narrativas, personagens e artistas que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas privilegia.

Foi apenas em anos recentes que o Oscar passou a dar espaço para algumas obras em língua não-inglesa, produções de estúdios menores e narrativas descentradas em personagens brancos masculinos. No entanto, na essência, a Academia continua sendo uma celebração de Hollywood e um  reflexo do que é os Estados Unidos. A própria construção do Sonho Americano, dos mitos estadunidenses e do imagético do país é inseparável do cinema. Filmes premiados com o Oscar, como E O Vento Levou (1939) e outros dramas históricos, os westerns que glorificam a expansão do território, o atemporal Cidadão Kane (1941), até os contemporâneos, como A Rede Social (2010) nos ajudam a compreender perfeitamente a lógica dos Estados Unidos.

Assassinos da Lua das Flores

Especificamente sobre os filmes de faroeste, o western clássico é a idealização do Destino Manifesto e da conquista para o Oeste. Como apontado por Christine Maria Cook, em sua tese intitulada The Hero and Villain Binary in the Western Film Genre (A Binaridade do Herói e Vilão no Western), nos clássicos do gênero, é comum vermos uma representação do caubói europeu-americano como o herói que está levando o progresso e a civilização, enquanto os nativo-americanos são frequentemente retratados como os vilões “selvagens e incivilizados”

Além de associá-los à selvageria, os westerns têm um histórico de reduzir os indígenas em tela a papéis simplistas e estereotipados, como o do “invasor brutal”, do “bom selvagem” ou do “velho sábio”. Não podemos deixar de mencionar os inúmeros casos de redface (similar ao blackface, onde pessoas não indígenas usam adereços, técnicas e maquiagem para representar indígenas de forma caricata), contribuindo para a desumanização dos nativo-americanos no cinema. E essa prática racista parece não incomodar a Academia; pelo contrário, rendeu até indicações, como foi o caso de O Cavaleiro Solitário (2013), que tem Johnny Depp interpretando o indígena Tonto, nomeado ao Oscar na categoria de Cabelo e Maquiagem.

Aliás, segundo uma lista publicada pelo site IMDb, desde a sua primeira edição em 1929, a Academia já indicou 129 westerns em suas diversas categorias. Fazendo uma conta básica, há mais westerns nomeados do que anos de premiação. Ao mesmo tempo, em 96 edições, o Oscar indicou apenas 4 mulheres de ascendência indígena para o prêmio de Melhor Atriz: Merle Oberon e Keisha Castle-Hughes, descendentes dos Maori, Yalitza Aparicio, indígena-mexicana e, finalmente, Lily Gladstone, a primeira atriz nativo-americana — descendente dos Blackfoot e dos Nez Perce — a concorrer à categoria.

Assassinos da Lua das Flores

Dado esse histórico da Academia e do cinema estadunidense em relação à representação dos nativo-americanos, principalmente nos faroestes clássicos, chegamos a Assassinos da Lua das Flores, mais recente filme dirigido por Martin Scorsese. Baseado no livro homônimo de David Grann, o filme é ambientado em Oklahoma, nos anos 1920, e se concentra na série de assassinatos de membros do povo Osage, nação indígena que se torna milionária após a descoberta de petróleo em suas terras. A riqueza dos Osage era passada de forma hereditária e não haviam exigências para que os herdeiros fossem indígenas. Esse fato desperta a ganância dos homens brancos da região, resultando em uma série de crimes contra a Nação Osage e, eventualmente, em uma investigação que dá origem ao FBI (Federal Bureau of Investigation).

O livro-reportagem dá maior destaque aos processos de investigação e na consolidação  do FBI. Inclusive, no roteiro inicial, a história seria contada pela perspectiva do investigador Tom White, que seria interpretado por Leonardo DiCaprio. Em entrevista para a IndieWire, Martin Scorsese conta como foi esse processo de mudança e comenta que, talvez, há 20, 25 anos atrás ele mesmo contaria a história a partir de um ponto de vista europeu-americano, mas, desde então, o diretor passou a perceber que os westerns, “do jeito que eu os imaginava a partir dos belos filmes extraordinários feitos pelos estúdios de Hollywood nas décadas de 40 e 50, tinham sido concebidos com uma certa filosofia e ponto de vista político”.

Scorsese concorda que Assassinos da Lua das Flores está mais para um filme de gangsters do que um western propriamente. O cineasta, mestre dos longas sobre a ganância dos homens brancos, compara as atrocidades contra os Osages cometidas por King Hale (no filme, interpretado por Robert DeNiro) com a estrutura perversa que existe no crime organizado. Há um senso de superioridade, como se eles tivessem o direito de escolher o que é melhor para os outros e como lucrar com isso. Diferente dos westerns, em Assassinos da Lua das Flores, o protagonismo do homem branco se distancia ao máximo da sua idealização heróica.

Assassinos da Lua das Flores

Com as mudanças no roteiro, Leonardo DiCaprio interpreta Ernest Burkhart, sobrinho de William King Hale (que está por trás da maioria dos assassinatos dos Osage), que se casa com Mollie Kyle (Lily Gladstone). Em um curto período de tempo, ela vê todas as mulheres da sua família e diversos membros da reserva Osage morrerem de diferentes causas (depois, prova-se que são assassinatos arquitetados por Hale), enquanto é medicada pelo seu marido e tem a saúde cada vez mais debilitada.

Em conversa com Scorsese, Margie Burkhart — descendente direta de Mollie e Ernest — fez questão de reforçar que essa não é uma simples história de vilões e vítimas. “Ernest e Mollie eram apaixonados”.  Com as atuações primorosas de Gladstone e DiCaprio, além de uma direção sublime, fica perceptível que Ernest não se casa com Mollie apenas pela sua fortuna. Ao mesmo tempo, ele é absolutamente complacente e obediente às decisões do seu tio. Ele engana a si mesmo para não admitir que é parte central dos assassinatos da família de Mollie e que, ele mesmo, está matando a esposa aos poucos. E até que ponto a ignorância e a conveniência não é tão perversa quanto a maldade intencional?

A falsidade e a crueldade de Hale e dos seus aliados, somada à complacência de Ernest e das autoridades, nos convidam a encarar o modo que os nativo-americanos vêm sendo tratados ao longo da história dos Estados Unidos. Seguindo uma lógica colonialista, capitalista e supremacista branca (em paralelo com o que ocorreu com diversos povos originários das Américas com a colonização europeia), acompanhamos a apropriação das terras e das riquezas indígenas, além de incessantes tentativas de extermínio e deslegitimação dos indígenas e do apagamento de suas culturas.

O massacre dos Osage foi esquecido por muito tempo. No livro que dá origem ao filme, David Grann expõe:

“Nos casos de crimes contra a humanidade em que os criminosos escapam à justiça de seu tempo, é frequente que a história acabe fazendo algum tipo de acerto de contas, documentando os crimes e desmascarando os transgressores. Contudo, muitos dos assassinatos de Osages foram tão bem dissimulados que esse desfecho já não é possível. Na maior parte dos casos, falta firmeza às famílias das vítimas. Muitos de seus descendentes encaminham suas próprias investigações, que não levam a nada. Vivem cheios de dúvidas, suspeitando de parentes, velhos amigos da família, curadores — alguns dos quais devem ser culpados, e outros, inocentes.”

Assassinos da Lua das Flores

Apesar do esforço de alguns sobreviventes Osages em denunciar o massacre, foi necessário que homens brancos de prestígio se interessassem em recuperar essa história para que ela não fosse completamente esquecida. Para tornar o filme mais autêntico, Assassinos da Lua das Flores contou com a consultoria de membros Osage (inclusive, com a aprovação de Lily Gladstone no papel de Mollie, já que a atriz é descendente de outra etnia). Um dos consultores da língua Osage contou ao Hollywood Reporter que tem sentimentos conflitantes em relação ao filme.

“Martin Scorsese faz um bom trabalho representando o nosso povo (Osage), mas a história é praticamente contada a partir da perspectiva de Ernest Burkhart […] No final das contas, a pergunta que fica é “por quanto tempo você será complacente com o racismo?”

Entre diversos especialistas indígenas e nativo-americanos envolvidos no projeto, a reação ao filme também é dividida. De acordo com matéria do New York Times, alguns apreciam o esforço de Scorsese em mostrar a cultura Osage de forma autêntica, além trazer um caso praticamente esquecido para uma audiência maior, com um elenco, de fato, indígena. No entanto, há críticas em relação ao ponto de vista, que não deixa de ser centrado em homens brancos e no fato do longa não ter exposto a cumplicidade do governo federal em relação aos assassinatos.

Acredito que o próprio Martin Scorsese, aos 81 anos, entendeu perfeitamente qual é o seu papel contando essa história. Ele se insere na narrativa, literalmente, para contar o desfecho, que não tem nada de heróico. Mollie morre praticamente uma anônima, sem qualquer menção aos assassinatos em seu obituário. Ernest e King são condenados, mas quantos crimes contra os indígenas não foram nem levados a julgamento?

Com a auto-inserção no final do filme, é como se o diretor tivesse completa consciência de que, por mais que seja um aliado da causa indígena, os homens como ele ainda são beneficiários, direta ou indiretamente, da exploração dos nativo-americanos e que toda essa violência pode facilmente virar um entretenimento, vide o cinema western. No final das 3 horas e 26 minutos (completamente justificáveis) de Assassinos da Lua das Flores, estamos diante de um mito americano. Dessa vez, menos idealizado e mais condizente com o que é os Estados Unidos.

Referências

COOK, Christiane Maria. The Hero and Villain Binary in the Western Film Genre. Nova Zelândia: 2012.

GRANN, David. Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, morte e a origem do FBI. Companhia das Letras, 2018.

HETEBRÜGGE, Jörn. The Western Movie and the Image of the Native Americans. 2020.

Assassinos da Lua das Flores recebeu 10 indicações ao Oscar nas categorias de: Melhor Filme, Melhor Diretor (Martin Scorsese), Melhor Atriz (Lily Gladstone), Melhor Ator Coadjuvante (Robert DeNiro), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Canção Original (“Wahzhazhe (A Song for My People)”), Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Fotografia, Melhor Figurino, Melhor Design de Produção e Melhor Montagem.  

1 comentário

  1. Uma pena que, esse ano, esse filme vai passar quase que despercebido no Oscar. Por mim, levaria pelo menos quatro estatuetas (Melhor Atriz, Melhor Direção, Melhor Design de Produção e Melhor Figurino), além de ser inaceitável que o DiCaprio nem tenha tido vaga em Melhor Ator.

Fechado para novos comentários.