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Chungking Express, de Wong Kar-Wai: a poesia e a dor de criar conexões

Existe uma cena em Chungking Express onde um dos personagens, que acabou de experimentar a dor de um término, faz uma analogia comparando seu relacionamento a sua obsessão por aviões. “Achei que ficaríamos juntos por um longo do tempo, voando como avião Jumbo com o tanque cheio. Mas aconteceu uma mudança inesperada no meio da trajetória”. Essa é, talvez, uma das cenas que melhor descreve não apenas o amor em si, mas também o ato de amar e o que essa experiência pode proporcionar dentro daqueles que se atrevem a buscar por uma conexão.

Esse mesmo personagem, chamado de Cop 663 (seu número de identificação como policial), conversa com pequenos objetivos que sua ex-namorada deixou pela casa, se agarrando a qualquer oportunidade de prolongar aquela conexão, que já não existe mais. “Está se sentindo sozinho?”, pergunta para coisas inanimadas porque, na verdade, quem se sente à deriva é ele.

As duas cenas citadas e combinadas formam uma mistura interessante e que mostram muito sobre o que, afinal, Chungking Express é. Quando vi o filme pela primeira vez, fui praticamente sugada para o mundo de Wong Kar-Wai. Lançado em 1994 e com título traduzido para Amores Expressos no Brasil, a obra tem uma estética marcante, personagens peculiares e com pouco menos de duas horas conta uma história que é divida em duas partes. A primeira parte acompanha o policial He Zhiwu (Takeshi Kaneshiro) e a segunda uma garçonete chamada Faye (Faye Wong). Os dois têm pouca coisa em comum, tirando o fato de que ambos procuram desesperadamente criar uma conexão. Isso talvez não seja algo totalmente perceptível para eles de forma consciente, mas é algo que fica absolutamente claro para o público no decorrer da trama.

Chungking Express

Os primeiros momentos do filme começam com He Zhiwu correndo pelas ruas de Hong Kong, falando sobre o acaso. Na correria, ele esbarra em uma mulher com uma peruca loira (vivida por Brigitte Lin), por quem ele diz que vai se apaixonar no decorrer das próximas horas. Quando a trama tem o seu pontapé inicial, faz quase um mês que ele foi dispensado pela namorada. May terminou com Zhiwu durante o primeiro de abril e, por isso, o protagonista achou que era apenas uma brincadeira boba. Magoado e completamente perdido, ele estipula um prazo para ela voltar para ele e “acabar com a brincadeira”. Se até o dia primeiro de maio (o dia do seu aniversário) ela não voltar, o relacionamento dos dois estará oficialmente acabado. Ao longo da primeira parte, ele compara seu caso amoroso com abacaxis enlatados que também iriam vencer nesta data. Ele se sente impotente ao perceber que, assim como os abacaxis que está comendo, ele também vai “perder a validade”, ao mesmo tempo que procura “enlatar” todas as memórias que teve com sua ex-namorada.

“Se as memórias pudessem ser enlatadas, elas também teriam data de validade? Se sim, espero que elas durem para sempre.” 

Como em muitos filmes de Wong Kar-Wai, as memórias são parte fundamental da mistura que compõem a obra e em Chungking Express isso é visto pela forma como Zhiwu parece se agarrar às lembranças que tem da ex-namorada para se iludir, achando que ainda existe algo real e palpável entre eles. Quando ele finalmente percebe que tudo realmente acabou, ele faz da sua missão achar outra companhia para a noite. Liga para ex-namoradas, que já estão casadas e com filhos; desesperado para recriar um pouco do que ele tinha com May, procura por qualquer pessoa que esteja tão solitária quanto ele.

Ao mesmo tempo, o roteiro acompanha a mulher da peruca loira em uma vida e jornada completamente distintas. Envolvida no tráfico de drogas, ela também leva uma existência solitária e um pouco mais conturbada. Os dois acabam em um bar juntos, onde uma breve conexão é feita. Cansados e bêbados, alugam um quarto de hotel onde ele come, ela dorme. Não existem grandes diálogos ou conversas profundas, apenas duas pessoas acolhidas em um quarto escuro durante a noite, uma companhia de gente que, apesar de não falarem em voz alta, sofrem das mesmas coisas e compartilham sentimentos semelhantes. Essa parte é importante pois parece levantar uma questão fundamental para entender o que, no final, o filme quer dizer: existe uma linha entre amor e solidão?

Quando Zhiwu diz no começo do filme que ele iria se apaixonar por aquela mulher, será que ele entendia por extensão de onde esse sentimento (seja ele real ou fabricação da sua cabeça) estava vindo? Tomado pela dor e pela necessidade de “seguir em frente” e deixar sua ex-namorada ir de vez, o protagonista forja uma conexão com essa mulher estranha. E essa mulher estranha corresponde porque ela também precisa de um escape. Não existe nada errado nisso, apenas o instinto humano de criar laços e sentir amado, protegido, mesmo que uma noite ilusória.

Chungking Express

Depois que Zhiwu deixa o hotel, ele recebe uma mensagem da sua mulher misteriosa de feliz aniversário. Um ciclo se encerra no primeiro dia de maio com a ex-namorada (e também de forma literal, já que é seu aniversário), mas existe a possibilidade de outro começar.

Apesar de Faye ser a parte mais interessante da segunda parte, essa por sua vez também tem seu pontapé com um policial que acabou de sair de um longo relacionamento não por sua escolha, mas sim pela a de sua parceira. O já citado no texto Cop 663, muito como Zhiwu, sofre com a rejeição e não parece  querer seguir em frente. Já Faye, que escuta a música “California Dreamin’” 24 horas por dia e parece viver em um mundo aleatório, se apaixona por ele. A protagonista passa a limpar seu apartamento escondida, alimentando sua paixão (e talvez obsessão) de forma constante, enquanto ele mesmo passa a desconfiar que algo está errado. A grande questão com Faye é que ela parece completamente perdida. Sua solidão também é evidente, mas também existe algo na forma que ela lida com as coisas ao seu redor, quase sempre sonhando acordando com um sonho californiano que parece distante e (quase) impossível.

Com o passar do tempo, os dois também vão criando uma conexão, ainda que venha de um lugar inesperado e improvável. Mas é só quando o policial finalmente chama Faye para sair, é que ela decide seguir em frente, se tornando uma aeromoça e realizando seu sonho de viajar pelo mundo. Enquanto isso, o policial compra o restaurante em que ela trabalhava. Na última cena do filme, eles se reencontram. Existe a possibilidade de criar uma conexão maior e significativa depois daquele encontro breve e intenso que eles tiveram anteriormente? Talvez. O longa brinca com as possibilidades e cabe ao público preencher as lacunas.

Com contextos e personalidades diferentes, cada um dos personagens anseia por conexões, motivados por necessidades distintas nas suas vidas e por suas próprias angustias. Zhiwu e Cop 663 procuram preencher a solidão e a dor da rejeição, enquanto Faye busca algo que, a princípio, nem ela mesma parece entender o que é. Assim como na maioria das situações das vidas, destinos são traçados por circunstâncias e escolhas e a estética urgente no filme, reforçada pela filmagem que mistura sequências rápidas e slow motion, ajudam na hora de reforçar esse aspecto, criando uma experiência que é realmente única.

Chungking Express deixa a sensação contraditória de que ao mesmo tempo conhecemos e desconhecemos aqueles personagens. Porque suas situações são tão claramente baseadas nas experiências humanas com o amor e a desilusão, é muito fácil criar empatia e torcer por eles, ao mesmo tempo que pouca coisa sobre suas vidas em si é revelada pela narrativa. Assim como as conexões que são abordadas, elas são figuras passageiras e fruto do tempo, que sempre tem data de validade.

Chungking Express

Chungking Express foi o primeiro sucesso internacional de Wong Kar Wai e é, até hoje, uma grande influência em filmes ao redor do mundo. Moonlight, o vencedor do Oscar de 2017, é um desses exemplos. Apesar do filme de Barry Jenkins ser claramente um coming of age, o próprio diretor já disse que o trabalho de Wong Kar Wai sempre foi e sempre será uma grande influência. Isso pode ser visto nos pequenos detalhes: a forma como a produção usa as cores, o toque íntimo entre os personagens e, principalmente, o jeito como o protagonista Chiron (vivido por Trevante Rhodes, Ashton Rhodes e Alex Hibbert durante sua fase adulta, adolescência e infância, respectivamente) parece não apenas ser uma figura completamente solitária e marcada pela solidão, mas também em busca por uma conexão.

Profundo e poético, Moonlight é muito como Chungking Express, onde os detalhes falam sobre os personagens e suas necessidades de forma clara. A cinematografia e a música complementam ambas as obras e criam uma história que, sem dúvidas, é uma história de amor. Em Chungking Express, a produção tem uma trama que não é apenas romântica em si pelas histórias e situações, mas também porque os personagens são retratados com uma qualidade que reforça esse aspecto. Todos eles sofrem pelo amor e por suas conexões perdidas (ou, em casos, não correspondidas) e têm reações intensas e intoxicantes.

Porque é muito fácil ser sugado para dentro do mundo de Chungking Express, é ainda mais fácil se colocar no lugar dos personagens e entender pelas situações que eles estão passando. O filme lembra, constantemente, que conexões acontecem, mas também vão embora em questões de segundos. Os sentimentos que chegam com a perda de um amor são complexos, contraditórios e nem sempre são algo no qual nos orgulhamos, mas eles existem, fazem parte de nós e o diretor capta muito bem todos esses nuances.

No resultado final, a maior conexão e conversa que os personagens tiveram não foram com as pessoas pelo qual eles buscaram tão desesperadamente fazer uma conexão, mas sim com eles mesmos.

Chungking Express não é o melhor ou o mais romântico filme de Wong Kar Wai. In the Mood For Love, por exemplo, ainda é sua obra mais profunda e igualmente devastadora, abordando uma história de amor que é ao mesmo tempo proibida e dolorosa. Comparada a essa produção, Chungking Express, ainda que seja melancólico e solitário em momentos, também é mais divertido, com um humor intrínseco dentro da própria narrativa — seja ele incrementado por meio da personalidade peculiar dos personagens ou pelas situações em si. Mesmo assim, desde que vi o filme pela primeira vez (quase oito anos atrás), fiquei com uma grande impressão na minha cabeça. De tempos em tempos passo a revisitar, e a sensação é sempre a mesma: como se estivesse redescobrindo as dores de criar uma conexão, mas não sem necessariamente deixar de aproveitar a beleza e a poesia que as mesmas trazem.