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Do 36 ao 62?: repensando o papel da moda

Algodão. Seda. Viscose. Linho. Modelagem. Passarela. A indústria da moda reflete os costumes do seu tempo em cada criação e, a partir dela, podemos desenhar uma longa linha do tempo para entender os movimentos que transformaram o mundo. As guerras são consideradas o momento de virada da moda pela necessidade de padronização de vestuário de acordo com cada classe e foi nesse período que a moda deu passos primordiais para se tornar o mercado que conhecemos hoje.

Na Primeira Guerra Mundial, que ocorreu entre os anos de 1914 e 1918, enquanto os homens estavam no front, as mulheres assumiram papéis que iam além da dona do lar e deram seus primeiros passos no mercado de trabalho. O trabalho na indústria exigia conforto. Com a escassez de tecidos, as saias longas com várias camadas encurtaram, os chapéus mudaram de formato e o corte de cabelo curto se tornou tendência na época. A calça se tornou uma peça coringa no guarda-roupa das mulheres das classes média e baixa.

Nessa época, se destacava a grande estilista Coco Chanel com a criação do “black dress“, um vestido preto crepe de mangas compridas e justas que seria utilizado por muitas mulheres que vivenciavam o seu luto; hoje, a peça é considerada um item indispensável no guarda-roupa de qualquer mulher. O estilista Paul Poiret atendeu a necessidade de simplicidade do momento ao reduzir o número de peças íntimas e extinguir o uso do espartilho. Afinal, a mulher daquela época não tinha tempo para grandes produções.

Vinte e sete anos depois, um novo conflito entre potências assolava a Europa e os efeitos no vestuário foram imediatos. A escassez é novamente a palavra da vez. A bicicleta se tornou meio de transporte e as calças foram adotadas por muitas mulheres. Os tecidos refinados deram lugar a panos mais pesados e resistentes à nova realidade. No pós-guerra destacava-se o renomado estilista Christian Dior, que resgatava em suas peças a elegância do vestuário feminino, uma espécie de renascimento da moda após tempos sombrios, com saias rodadas, vestidos volumosos e cintura definida.

papel da moda

“Nesse momento está nascendo o mundo da moda. Da fiação à confecção da roupa, a moda, a revista e a mulher estarão ligadas desde o berço do sistema capitalista ao setor têxtil. Como esclarece José Carlos Durand, na metade do século ainda se separa claramente a roupa de elite, a alta costura, da roupa operária produzida industrialmente. A formação de classes médias, características da sociedade capitalista, borrará, no final do século, como já vinha fazendo na literatura, também essas fronteiras. As confecções industriais vão deixando de fazer roupas apenas para soldados e operários, passando a oferecer feitas para cavalheiros e senhoras, promovendo a junção dos requisitos estéticos da moda burguesa com a economia da confecção industrial, até então característica da roupa operária. Essa moda para as classes médias será oferecida nos grands magazins, que cuidarão de sua publicidade, outro setor emergente no período. De seus folhetos propagandísticos deriva a palavra ‘magazine’, que em língua francesa e inglesa designa as revistas de grande circulação. O papel da imprensa de moda se agiganta uma vez que, diferentemente do costume ditado pela tradição, a moda viverá sob o signo da mudança e da competição.” (MIRA, 2013, p.46)

A moda se transformou nesse período, mas, mesmo com toda liberdade conquistada, as mulheres ainda viveram em um culto aos seus corpos, que deveriam ser esbeltos. “Se tem um momento de guerra tipo os anos 20 com a Primeira Guerra Mundial e a Recessão Econômica, a roupa era muito austera, né? Tinha aquela silhueta H da Chanel que, a princípio, libertou as mulheres do corselet.”, analisa o editor de beleza na revista ELLE Brasil, Pedro Camargo, enquanto continua, “Ok, libertou as mulheres do corselet, mas, ao mesmo tempo, fez com que elas amarrassem os peitos para que não aparecesse na silhueta dos vestidos, até que ponto realmente foi uma grande quebra de paradigma, não querendo destruir o trabalho da Gabrielle Channel”. Esse questionamento revela que, mesmo dando um passo para a mudança, a moda e o pensamento da época ainda mantinham a mulher presa a padrões construídos temporalmente. Não estamos querendo dizer que essas transformações não foram importantes no período em questão e, sim, lembrando que todas as revoluções são a favor de um mercado e uma cultura que já é dominante.

Nos Estados Unidos, em 1946, surge o “ready-to-wear”, ou seja, “pronto para vestir”, uma produção industrial que possibilitou a produção de várias numerações de uma peça. Seria como comprar uma calça na Renner, por exemplo, número 40. A invenção chega anos mais tarde na França com o nome de “prêt-à-porter”. Antes disso, só era possível obter uma nova peça de roupa ao encaminhá-la para uma costureira. Com a produção em larga escala houve uma padronização de medidas para comercialização que, em tese, se ajustaria à maioria das pessoas — mas será que levava em conta a diversidade de corpos existentes?

A padronização de medidas difere em cada continente; no Brasil, por exemplo, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) é quem institui o padrão das medidas nacionais para as roupas de crianças e homens, já que para o corpo feminino ainda não se chegou a um modelo oficial. Para os corpos femininos, se instituem cinco tipos de corpos: retangular, triangular, oval, triângulo invertido e ampulheta. Destes temos uma tabela de medidas do busto, cintura e quadril que definem para quem é indicado a numeração P, M, G ou GG. O M, por exemplo, tem as seguintes medidas: altura, 1,72 metros; busto, 102 centímetros; cintura, 74 centímetros; e quadril, 107 centímetros.

papel da moda
Crédito de Imagem: Pedro Guimarães

No entanto, o mesmo M de uma loja pode se tornar o P em outra. Quem não se viu em uma situação dessas ao menos uma vez na vida? Provar uma calça de um determinado tamanho em uma loja e ficar divina, mas o mesmo tamanho em outra loja simplesmente não entra. A norma de padronização do vestuário feminino, que deve seguir o biotipo da população brasileira, já se tornou uma lenda. No Brasil temos corpos diversos e muitas vezes as araras das fast fashions não oferecem nem a metade dos tamanhos necessários.

O mito da mulher brasileira está enraizado em toda máquina, conforme especifica Pedro Camargo:

“O que eu quero dizer com isso é que é um problema muito mais profundo do que simplesmente a mídia. O padrão de beleza é construído estruturalmente na sociedade, existe um grupo bem específico que se beneficia desse padrão de beleza para ganhar dinheiro, para explorar as pessoas e etc. As revistas e a imprensa, de modo geral, se aproveitam disso para fazer mais dinheiro — não necessariamente são elas, eu não acredito que foi o Victor Civita que ao fundar a Editora Abril  falou ‘vamos viralizar essa imagem da mulher branca, magra e alta que a gente vai fazer muito dinheiro com isso’, eu acho que na cabeça dele uma mulher bonita já era uma mulher branca, magra e de olho azul. E ele e outros grandes publishers só reproduziram e isso não exime eles da culpa de ter reproduzido e de ter criado tanta merda na cabeça das mulheres durante tanto tempo.”

O movimento que a moda deve fazer agora, segundo a curadora adjunta de moda do MASP, Hanayrá Negreiros, é de assumir novamente seu lugar cultural de não focar na venda de corpos ou roupas, mas proporcionar uma experiência para seu público. Por outro lado, os consumidores devem começar a pensar nas marcas e posicionamentos que consomem porque enquanto uma marca de alta-costura, por exemplo, não está se alinhando aos movimentos de diversidade, existem pequenos produtores fazendo um trabalho incrível sem receber crédito algum. “A moda precisa assumir esse lugar de cultura de novo, de arte também, não focar tanto na venda desses corpos ou dessas roupas. Agora, as pessoas precisam realmente pensar, será que isso vai ser importante para mim?”, finaliza.