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Shiva Baby: barulho, claustrofobia e identificação

Passar horas em uma casa lotada já parece sufocante por si só. Pode piorar bastante se somarmos a isso o fato de você estar sendo controlada e observada pelos seus pais, que lhe instruíram sobre como agir e responder a eventuais perguntas sobre sua vida. Agora, beira ao absurdo encontrar sua ex-namorada e seu atual sugar daddy (ou seja, o cara mais velho com quem você está transando em troca de dinheiro) nesse mesmo local.

Atenção: este texto contém spoilers!

É assim que a história de Shiva Baby, escrito e dirigido por Emma Seligman, começa a se desenrolar com um detalhe importante: a casa está lotada devido a um shivá, período de luto no judaísmo. No entanto, o que menos enxergamos são lágrimas de adeus a um ente querido. Aquele é, acima de tudo, um evento social marcado pelo reencontro de velhos conhecidos que conversam sobre a vida alheia, o peso e a aparência das meninas, suas futuras carreiras e vida amorosa, sem deixar de lado as especulações e julgamentos sobre a esposa de um conhecido.

A marcação do gênero feminino na última frase não foi por acaso. Os assuntos geralmente giram em torno da vida das mulheres e jovens, sendo trazidos, ironicamente ou não, por outras mulheres. Danielle (Rachel Sennott), personagem que acompanhamos nesse evento, tem seu peso e sua alimentação questionados do início ao fim do filme, inclusive ouvindo suposições de que possa estar com anorexia. Toda essa obsessão pelo seu peso, alimentação e corpo é contrastada com outros personagens que comem o tempo inteiro, e com uma mesa farta sendo reposta incansavelmente, nos causando certo desconforto e até mesmo aversão àquela comida.

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Danielle também se vê sendo questionada sobre seus estudos e futuro profissional, além de ser comparada e colocada em uma disputa — mesmo que indiretamente —  com Maya (Molly Gordon), sua ex-namorada. As duas se alfinetam e as questões mal resolvidas entre elas parecem se tornar o combustível para um conflito prestes a explodir, principalmente com as provocações de Maya, que acaba recuando no fim. Esses recuos, seu olhar sempre atento a Danielle e suas inúmeras tentativas de conversar com a ex-namorada vão se tornando — para nós, que olhamos de fora — repetitivos sinais sobre como a protagonista se sente. Quando as duas finalmente conversam, percebemos em ambas a representação de uma geração que cresceu se comunicando (muito mal) por meio das redes sociais, baseando-se mais no que socialmente pode significar a reação de um story ou uma curtida do que com os próprios sentimentos. Toda essa dinâmica é representada de forma cômica e crua pelas duas personagens, que nos fazem rir — ao mesmo tempo em que nos identificamos — com uma discussão sobre troca de mensagens.

Outro eixo de tensão em que se desdobra durante a narrativa é o da família de Max (Danny Deferrari). No shivá, Danielle o encontra inesperadamente e descobre que seus pais e ele, seu sugar daddy, se conhecem. A maior surpresa, contudo, não foi essa, e sim descobrir que ele é casado e pai de uma filha. Sua esposa, Kim (Dianna Agron), também não escapa dos comentários das outras mulheres. O que chama atenção é que mesmo que a personagem cumpra com todos os pré-requisitos que aquelas mulheres pareciam almejar para o futuro das jovens judias (Kim é bonita, casada, com uma família e carreira sólida), elas, ainda assim, encontram motivos para falar dela.

As especulações sobre a família sempre recaem sobre Kim e não sobre Max. Mesmo quando falam sobre ser ela quem leva “o pão para a mesa”, os comentários são focados nela e não no fato de Max ser sustentado por sua mulher. Isso se repete quando a chamam de shiksa — termo pejorativo que diz respeito a mulheres não-judias casadas com judeus. Com o uso dessa palavra e com outras falas, ela parece ser vista como culpada por ter “enfeitiçado” Max, eximindo-o da culpa por ter escolhido se casar com uma mulher não-judia. Max é vítima da shiksa.

O mais absurdo ainda é o julgamento que Kim sofre por levar seu bebê para o shivá (o que não parece ser uma prática comum). Kim é uma empreendedora que está por trás de três empresas, algo que deveria chamar atenção daquelas mulheres tão preocupadas com o sucesso profissional das jovens no shivá. Além de sustentar sua família, Kim, ao que aparenta, também é a maior responsável pelos cuidados com a filha, já que é ela quem chega atrasada ao evento e informa seu marido sobre a necessidade de uma nova babá.

Max, por sua vez, tem tempo de chegar cedo ao shivá, não demonstrando estar no escopo das suas responsabilidades uma rotina diária de preocupação com o bebê — uma vez que sua esposa cuidaria disso com o apoio de uma babá. Aqui temos ao menos um indício de que, provavelmente, as responsabilidades com a filha não são divididas pelos dois. Em contraste com isso, podemos lembrar da fala de Max no início do filme que, após pagar Danielle por fazer sexo com ele e falar sobre os estudos da jovem, afirma querer apoiar mulheres, principalmente mulheres empreendedoras.

A fala já é cômica por si só, mas sua frase fica ainda mais caricata quando descobrimos que em casa ele já tem a “oportunidade” de “apoiar” (cumprindo com suas responsabilidades como pai) uma mulher empreendedora. Ao invés disso, usa o dinheiro de Kim como pagamento para uma jovem fazer sexo com ele. Em outras palavras, gasta o dinheiro da esposa para contratar uma prostituta.

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Sobre esse aspecto do filme e a abordagem escolhida, precisamos ter cuidado. Embora Danielle não more com os pais, ainda tem suas contas pagas por eles. Mesmo assim, escolhe se prostituir para ganhar dinheiro. Como justificativa para trabalhar com sexo, a protagonista afirma que, além de ser um dinheiro “fácil”, se sente no poder e estimada. Acabamos nos deparando, portanto, com uma visão ingênua da prostituição, tratada com uma lente liberal e masculina, que deixa de lado recortes de raça e classe.

É importante lembrar que a maioria esmagadora das mulheres que se prostituem não o fazem para se sentirem estimadas, no poder, e muito menos porque será um dinheiro fácil; mas sim porque não conseguem outra forma de sustento, recorrendo a essa alternativa — violenta, degradadora — para sobreviver. Além disso, não há nada de “empoderador” em ser paga para ter seu corpo dominado por um homem — o resultado é exatamente o oposto disso.

Mesmo com alguns deslizes, Shiva Baby vale a pena ser assistido. O filme é barulhento, claustrofóbico e nos causa ansiedade — recursos que se tornam repetitivos e podem ser cansativos. No entanto, não deixa de ser divertido, cômico e identificável: às vezes temos a impressão de que estamos em uma reunião de família nos tempos pré-pandêmicos. Além disso, conta com ótimas personagens e atuações, com destaque para Rachel Sennott, que interpreta Danielle; Molly Gordon, no papel de Maya; Polly Draper, como Debbie (mãe de Danielle); e Dianna Agron, que encena Kim. Vale a pena conferir o filme, atualmente disponível na Mubi, e o curta com o mesmo nome, realizado como trabalho de conclusão de curso de Emma Seligman, que também conta com participação de Rachel Sennott no papel de Danielle.

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