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The Forty-Year-Old Version: nunca é tarde para recomeçar

Não é incomum diretores e escritores utilizarem a sua vida como objeto de estudo e transportarem suas experiências para a tela. Temos bons exemplos de histórias criadas a partir da memória do diretor, que fazem de suas vidas grandes obras primas — Lee Isaac Chung fez isso com o recente Minari (2020). E, dessa forma, criador e obra se fundem de tal modo que é impossível desvencilhar um do outro, mas Radha Blank levou isso a outro patamar quando resolveu escrever, dirigir, produzir e estrelar The Forty-Year-Old Version, filme baseado em suas experiências pessoais.

Radha Blank resolveu levar para as telas de modo irreverente as suas frustrações, fracassos, medos e, principalmente, como é possível se reinventar e começar algo novo independente da idade. Perto de fazer 40 anos, Radha (a personagem) resolve se tornar rapper depois de sentir sua vida travada. Depois dos 40 anos, Radha (a criadora) estreia na direção com esse filme cheio de camadas e também com sua alma dentro dele.

Atenção: este texto contém spoilers!

Radha, a personagem (se é que podemos separar a Radha do filme a Radha da vida real), é uma dramaturga que já foi promessa de sucesso um dia, inclusive ganhando o prêmio de Melhor Dramaturga — 30 antes dos 30. Chegando aos 40 anos, a promessa de sucesso ficou para trás, assim como sua mãe, que morreu. Enquanto, dá aula de teatro para adolescentes em uma escola, Radha também tenta emplacar uma peça sobre um casal de jovens negros.

Radha tem um amigo/agente que se chama Archie (Peter Y. Kim). E Archie, em uma tentativa de fazer com que a peça de Radha saia do papel, lhe apresenta ao produtor, branco, J. Whitman (Reed Birney). Aqui já vemos um dos pontos importantes na narrativa desta história: J. Whitman é uma representação dos produtores brancos que acreditam saber qual é a melhor forma de retratar negros, sendo, ele, um homem branco. Enquanto Radha pensa em uma história de um casal de jovens negros que lutam para manter seu negócio, J. Whitman pensa em uma história diferente onde negros precisam mostrar seu sofrimento para os espectadores. O produtor, inclusive, chega a sugerir que Radha escreva um musical inspirado em Harriet Tubman.

Harriet Tubman foi uma abolicionista e ativista americana. E qual o problema de Radha ser chamada para escrever esse musical em específico? A questão é que negros de todo o mundo estão cansados de serem chamados apenas para falar de racismo e apenas sobre o racismo. Chamar negros para falar e produzir apenas essa pauta é perpetuar o racismo e Radha coloca isso em seu filme de maneira brilhante — The Forty-Year-Old Version não é, em suma, um filme sobre racismo, mas Radha, enquanto mulher negra, sofre seus males todos os dias.

Em um primeiro momento, Radha acha a proposta de J. Whitman ultrajante, o que resulta em um estrangulamento (sim, eu não escrevi errado) do agente. Depois de quase matar um velho branco estrangulado, se sentir péssima a esse respeito, afogar as lágrimas em comida e implorar que sua mãe a ajude aonde quer que ela esteja, Radha começa a ouvir uma música de hip-hop. Nesse momento, Radha começa a fazer rimas e, voilá, o que estava engasgado e preso em seu peito começa a fazer sentido.

Infelizmente, seu entusiasmo não atinge a todos. Existe um ditado popular que diz que “nunca é tarde demais para começar”: o sucesso pode nos atingir a qualquer idade e não existe a data limite para estar no auge ou para apenas começarmos a fazer algo que amamos. Apesar deste ditado, não é dessa forma que nossos sonhos, e nossas idades, são percebidas pela sociedade em que vivemos. Parece que precisamos estar sempre lutando contra o tempo, como se todos os aspectos de nossas vidas tivessem datas limite para acontecer. O drama coreano Navillera, por exemplo, retrata exatamente essa situação quando um idoso de 70 anos resolve aprender a dançar balé. A produção chama a atenção por sua sensibilidade ao lidar com os sonhos, indicando que, de fato, nunca é tarde demais para começar.

Enquanto Archie, seu melhor amigo, acha que o hip-hop nada mais é do que uma crise dos 40 anos de idade que se agravou em Radha após a perda de sua mãe, a protagonista sabe que não é bem assim. Archie insiste para que ela faça uma peça para J. Whitman, mas Radha, finalmente, encontrou uma maneira de criar algo único e que tenha a sua voz — e é assim que ela cria uma mixtape. Embora o ponto de vista de Archie seja em parte verdadeiro e Radha esteja, de fato, sofrendo a perda da mãe, ele não parece entender que o hip-hop se torna a válvula de escape de que sua amiga precisava para superar o luto. Radha é convidada por D. (Oswin Benjamin) a cantar uma música em um show de hip-hop, o que se torna uma primeira experiência malsucedida.

A partir deste momento encaramos uma Radha se submetendo aos pedidos de um produtor branco, mudando sua peça e enfrentando grandes dilemas sobre a verdadeira criação de algo autêntico em si mesmo, encarando o luto e finalmente encontrando a sua voz por meio da música. O mais interessante é que Radha só consegue se redescobrir quando encara Archie e a morte da mãe de frente. Archie sempre foi um grande amigo para Radha desde os tempos do colégio, porém sua amizade e sua tentativa de não deixar a amiga afundar a impedia de cometer seus tropeços necessários para todo o ser humano que está em constante evolução. A perda da mãe é mais uma das camadas do filme e está presente a todo momento, nas cenas iniciais quando aparece a sua foto com a sua mãe, nas ligações do irmão que ela ignora, ligações pedindo para que vá a casa da mãe para que pegue suas coisas e algumas lembranças ou obras da mãe. A mãe de Radha está presente em todo momento.

Como já havia dito, a criadora realmente emprestou sua vida e seu corpo a personagem, o luto é real, além de obras de artes, fotos pessoais, o irmão (sim, seu irmão também interpreta a si mesmo na história), o fato de se  sentir estagnada… é tudo real. Incluindo seu jeito irreverente de contar a história, uma dramédia intimista. Outro ponto interessante de The Forty-Year-Old Version é a escolha de filmar em preto e branco. O filme não é completamente em preto em branco, em algumas inserções, ou nas imagens de Radha de sua família, as cores voltam para a cena. Parece que é dessa forma que Radha vê sua vida, as cores só aparecem quando ela vê sentido e amor naquilo, assim como na cena final, que começa em preto e branco e depois se torna colorida. Radha finalmente coloriu a vida, encontrou o sentido que estava procurando.

Radha Blank ressaltou em uma entrevista que a música, para a personagem, foi uma forma de redescobrir sua voz, visto que a mesma já sequer sabia quem era, já que estava se sentindo mal sucedida como dramaturga, um fracasso como professora e também ainda estava enfrentando um luto. Radha se sentia sufocada e não conseguia se expressar, e a música, mais do que uma nova carreira, se transformou em uma forma de meditação.

O hip-hop, e a produção de The Forty-Year-Old Version, foi a maneira que Radha Blank encontrou para se expressar para o mundo de forma honesta e verdadeira. Uma maneira de entender o que passou com ela durante todos esses anos de frustração e um meio de fazer as pazes com o seu processo de luto. Ao terminar e ser capaz de olhar para o horizonte, Radha descobriu que ainda é muito nova e pode fazer muito mais. A idade não é empecilho para nada.

Jessica Lopes é uma atriz afastada dos tablados, uma economista que não gosta de economistas e quase uma especialista em Gestão Cultural. Amante de dramas asiáticos e filmes do mundo todo. Acredita mais do que tudo no poder transformador da arte e da cultura.