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O Morro dos Ventos Uivantes é realmente uma história de amor?

“Seja qual for a matéria de que nossas almas são feitas, a minha e a dele são iguais.” Ao ler essa passagem muito forte de O Morro dos Ventos Uivantes, único romance de Emily Brontë, seu leitor pode imaginar se tratar de uma trágica história de amor, um amor que supera a morte e todas as desventuras que os heróis românticos sofrem. Pelo menos, essa foi minha expectativa ao primeiro contato com sua sinopse: um romance de tirar o fôlego. Contudo, a narrativa destrói todas as especulações no momento em que você começa a acreditar que está destrinchando o psicológico das personagens. Ao aproximar o amor — algo que sempre foi fonte de fantasias e idealizações — do ódio, a autora rompe com o que se esperava da visão romântica de uma mulher inglesa do século XIX.

Emily Brontë estava muito à frente do seu tempo quando enfim conseguiu publicar O Morro dos Ventos Uivantes em 1847, um ano antes de sua morte por tuberculose. As famosas irmãs Brontë inicialmente publicaram suas obras sob pseudônimos masculinos, tática muito usada na época para fugir de ideias preconcebidas no território da escrita e do romance, dominado por homens. Assim, Emily Brontë, a mais tímida das irmãs, com grande receio da publicidade, conseguiu escandalizar a sociedade com sua obra ao expor e explorar as feridas dos personagens. A trama gira em torno de uma história de amor cheia de vícios, obsessões e violência. Uma narrativa que continua até hoje a assombrar o leitor. Como uma moça do interior da Inglaterra do século XIX conseguiu pintar um retrato tão negativo das relações sociais em seu país? Esse é apenas um exemplo das questões que surgiam entre aqueles que tentavam desvendar a sua trama.

Dois polos que se repelem

A história parte do olhar do senhor Lockwood ao chegar à propriedade do Morro dos Ventos Uivantes (ou Alto dos Vendavais). Assustado pela rispidez dos moradores da antiga mansão e pelos fantasmas que assombram não somente a propriedade, mas a própria consciência dos personagens, o novo locatário mergulha nos mistérios que envolvem a atual Catherine Heathcliff e sua origem. Ele conta com a fiel narrativa de Nelly Dean, antiga empregada da família, que além de uma rica memória possui também um talento infalível para uma fofoca bem edificante.

Desde a chegada de Heathcliff à casa e antes mesmo de receber tal nome, a narrativa enfatiza a sua distinção daquele ambiente. Recuperado das ruas pelo pai de Catherine Earnshaw, ele é introduzido ao seio familiar e forma desde cedo uma ligação profunda com Catherine, sua cópia selvagem. Em contraste, desperta o ódio de Hindley Earnshaw, o irmão mais velho, que temia ser substituído na estima do pai. Heathcliff inicialmente tem acesso à instrução e aos espaços dos irmãos Earnshaw, mas nunca recebe o sobrenome da família, o que marca o seu não-pertencimento à elite. Sua aparência estrangeira também é alvo de assimilações negativas e preconceitos.

“Mas o senhor Heathcliff contrasta de modo singular com seu lar e seu estilo de vida. Ele tem o aspecto físico de um cigano de pele escura, e os modos e os trajes de um cavalheiro. Quer dizer, cavalheiro como o são muitos rapazes do interior: muito desalinhado, talvez, mas sem parecer descabido em sua negligência, pois tem um corpo ereto e bonito; e deveras taciturno.”

Não é à toa que o ódio em Heathcliff começa a brotar ainda em sua infância, pois convive sempre com um terrível paradoxo: amar perdidamente Catherine, enquanto convive com a barreira social que os mantêm em mundos diferentes. Emily Brontë consegue representar a visão negativa da sua sociedade com relação aos estrangeiros e com as diferenças raciais, o que também contribui para a inovação que sua obra produziu na literatura mundial.

O preconceito e a visão negativa para com o personagem Heathcliff tornam-se ainda mais explícitos e violentos após a morte do pai de Catherine. Sob o jugo de Hindley, ele é retirado do seio familiar e começa a ser tratado como um criado. Perde o direito à instrução e afunda-se no trabalho pesado que o embrutece, o animaliza. Hindley Earnshaw torna-se cada vez mais violento e se entrega ao vício da bebida após a morte da mulher, tornando-se um irmão violento para Catherine e pai negligente para seu pequeno filho que acabara de nascer, Hareton Earnshaw.

Assim nasce o primeiro desejo de vingança de Heathcliff, o desejo de fazer com que aqueles que o subjugaram pagassem pelas injustiças que ele sofreu. Além disso, para ele, pior que o tratamento desigual, eram as forças que o afastaram de Catherine. Representando o outro lado da moeda, temos a família Linton, que abraça a pequena Cathy como uma criança selvagem que precisa receber a devida instrução. Os irmãos Isabella e Edgar Linton são vistos como belos e puros, e rejeitam desde o primeiro contato o pequeno Heathcliff.  Ao perceber que tentam limpar de Catherine toda a influência negativa de seu amigo, sua lista de vingança aumenta cada vez mais.

“Ele é capaz de amar e odiar às escondidas com a mesma intensidade e considerar uma espécie de impertinência ser amado ou odiado em troca.”

Primeira edição de O Morro dos Ventos Uivantes e pintura de Emily Brontë

Não existem limites entre o bem e o mal, o ódio e o amor

Um dos aspectos mais assustadores da obra é a forma como todos os personagens mostram distúrbios de caráter, são contraditórios, excessivos, excêntricos. Catherine, a suposta heroína romântica, é uma pessoa de temperamento horrível, assim como Heathcliff. Possui hábitos metidos e mesquinhos, e reconhece a forma doentia com que ela e Heathcliff se amam. Os Linton são pacíficos e bem instruídos, mas fracos e extremamente preconceituosos. Hindley representa todos os vícios e violências que ensinaram Heathcliff a ser um vilão vingativo. É como se o livro induzisse o leitor a odiar todos os personagens à sua volta, e ao mesmo tempo manter o fascínio pelo mundo sombrio ali fantasiado. 

Catherine e Heathcliff se merecem. É algo que o leitor pode pensar e é algo que até mesmo as personagens afirmam. Como se fossem espelhos um do outro, não conseguem se imaginar separados. Mesmo assim, Catherine tem noção do que é esperado socialmente dela: casar para manter sua posição e status social, o que certamente não conseguiria com Heathcliff, um estrangeiro sem origens e sem sobrenome. Ao aceitar como marido Edgar Linton, o completo oposto de seu amor de infância, ela se livra da casa violenta e do irmão alcoólatra, mas sabe que jamais conseguirá afastar da mente a presença de Heathcliff. Retirando-lhe o amor, sobra a ele apenas a jornada pela vingança.

“Seria degradante para mim me casar com Heathcliff agora; portanto, ele jamais saberá o quanto o amo. E isso não é por ele ser bonito, Nelly, mas porque ele é mais eu do que eu mesma. Seja qual for a matéria de que nossas almas são feitas, a minha e a dele são iguais.”

Vale ressaltar que o casamento em O Morro dos Ventos Uivantes quase sempre é sinônimo de desgraça e perdição para as personagens femininas. O apagamento das matriarcas originais dá pistas de mortes precoces, e o destino das descendentes é marcado por sofrimento, roubo de suas posses e propriedades, ou morte por complicações do parto. A jovem Catherine Earnshaw, agora Linton, não é diferente. O casamento é visto por ela como uma forma de garantir sua sobrevivência e a de Heathcliff, pois graças ao irmão, sua herança se resumia a nada. No entanto, sua felicidade matrimonial nunca é conquistada, devido ao assombro da memória de Heathcliff. A certeza de vê-lo consumido pelo ódio e incapaz de estar ao seu lado a fazem colocar a própria vida em risco, que se concretiza durante o parto de sua única filha, Catherine Linton. Essas personagens, de forma geral, lutam para sobreviver ao casamento e à maternidade em um sistema patriarcal.

O retorno de Heathcliff e sua fortuna misteriosa, cuja origem não é revelada em momento algum, marca o início de sua jornada diabólica pela vingança contra todos que o subjugaram. Ele assume toda a propriedade de Earnshaw e transforma seu filho em um brutamontes ignorante, totalmente dependente dele. Retira a paz dos Linton ao se casar com Isabella, irmã de Edgar, e tratá-la da forma mais miserável possível. Mas nenhuma vingança consegue fazê-lo esquecer a profunda depressão e melancolia que sobra após a morte de Catherine. Enquanto Linton tem algum alívio do falecimento da esposa na forma de sua filha, Heathcliff persegue o seu fantasma, pedindo para ser amaldiçoado e assombrado por ele.

Os triângulos amorosos

A estrutura da indecisão, do amor dividido e do sentimento de culpa são ricamente explorados em O Morro dos Ventos Uivantes. Talvez sejam reflexos do contraste dos personagens, ou o próprio contraste deve servir para ilustrar os dois caminhos bastante distintos que o coração de cada personagem pode seguir.

Linton e Heathcliff são como a água e o vinho, assim como Hareton e o fraco filho de Heathcliff com Isabella (Linton Heathcliff, paradoxalmente) se repelem. Único herdeiro de Hindley Earnshaw, Hareton é relegado ao mais profundo da ignorância e da brutalidade, justamente para jamais levantar voz contra o autoritarismo de Heathcliff. Sua falta de instrução e vocabulário bruto são alvo do desprezo de Catherine, que sempre teve um lugar em seu coração, seja de amor ou de ódio. No polo contrário temos Linton Heathcliff, cuja saúde frágil levou-o a utilizar o gênio terrível e a perspicácia de uma boa linguagem para conquistar o coração da filha de Catherine, concretizando o último golpe de vingança de seu pai.

“Meu amor por Linton é como a folhagem na floresta: o tempo o altera, tenho consciência disso, assim como o inverno altera as árvores. Meu amor por Heathcliff parece as pedras eternas no solo: uma parca fonte de prazer visual, mas necessária. Nelly, eu sou Heathcliff! Ele está sempre, sempre, na minha mente. Não como prazer, pois tampouco sou um prazer para mim mesma, mas como meu próprio ser.”

É interessante como a estrutura do triângulo amoroso costuma ser muito expressiva no contraste das personagens envolvidas. Encontramos um exemplo icônico disso na saga Crepúsculo, com os personagens Edward Cullen e Jacob Black, tão distintos quanto gelo e fogo. Curiosamente, O Morro dos Ventos Uivantes é bastante citado e talvez seja uma grande inspiração para a trama de Stephanie Meyer. Ainda assim, uma das coisas mais misteriosas que ficam na mente a partir da leitura da obra de Brontë é a capacidade que Linton teve de amar uma criatura tão similar ao ser que ele mais desprezava.

“Vou dizer-lhe o que fiz ontem. Mandei o coveiro que estava cavando o túmulo de Linton remover a terra da tampa do caixão dela, e o abri. Pensei por um instante que eu deveria ficar ali, quando vi a sua face outra vez, pois ainda é ela. O coveiro teve muito trabalho para me tirar dali, porém me disse que se o ar soprasse no rosto, iria alterá-lo. Então arrebentei um dos lados do caixão para deixá-lo solto, e cobri tudo de novo, mas não o lado que dá para o túmulo de Linton, dane-se ele, pois eu gostaria que o seu caixão fosse soldado com chumbo, e subornei o coveiro para tirar o lado solto quando eu lá estiver e arrancar o lado do meu também, que mandarei fazer com esse propósito. Então quando Linton chegar a nós, não saberá quem é quem.”

O Morro dos Ventos Uivantes é realmente uma história de amor?

Nas palavras de Georges Bataille, O Morro dos Ventos Uivantes seja “talvez a mais bela, mais profundamente violenta das histórias de amor”. Em uma perspectiva muito doentia do sentimento, é possível dizer que há a estrutura de um romance na trágica história desses personagens com terríveis desvios de caráter. Certamente não corresponde ao que esperavam que uma mulher do século XIX entendesse sobre amor, mas pode, por si só, revelar terríveis histórias de abusos que os olhos da autora possivelmente tenha testemunhado. Um mundo inteiro pode ser observado a partir de uma pequena cidade no interior do seu país, e Emily Brontë tinha um olhar aguçado para os conflitos humanos. Certamente não é uma história de amor moral e feliz, mas um grande relato de relacionamentos abusivos, como hoje podemos ler e interpretar, sem as lentes idealizadas que levam a acreditar que o amor e o sofrimento caminham juntos, assombrando corações apaixonados por ilusões.

Violenta e tempestuosa, a narrativa que a jovem Emily Brontë construiu foi inovadora. A paisagem acompanha o temperamento e a progressão das personagens, a linguagem informal é usada sem medo, o que aumenta o realismo dos personagens e diálogos. A construção do vilão de sua história é feita de forma humana e original, tão próxima ao leitor que faz com que esse vá enlouquecendo junto com o personagem. Virginia Woolf, ao tecer comentários sobre o talento de Emily, diz que é “como se fosse capaz de estraçalhar tudo o que sabemos sobre os seres humanos e preencher essas transparências irreconhecíveis com tal rompante de vida que eles transcendem a realidade.”

O Morro dos Ventos Uivantes é um livro difícil de ler, não por possuir uma linguagem inacessível, mas por possuir mistérios a serem desvendados por quem encontra os mapas perdidos em suas entrelinhas. Para mim, e para aqueles que já se sentiram muito calados pela timidez, é uma grande inspiração o domínio da caneta dessa jovem mulher da Yorkshire de 1847, e de toda a rebelde expressão que a sua literatura pode oferecer.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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