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Seo In-jae e Seo Dan-ah: o impacto do roteiro na narrativa de protagonistas femininas

Os dramas coreanos estão inseridos cada vez mais nas plataformas de streaming e na indústria do entretenimento. Ainda que no passado esse tipo de produto cinematográfico fosse visto com ressalvas, gradativamente percebe-se uma mudança no cenário, principalmente com os grandes investimentos das empresas do setor nesses universos narrativos.

Como maior exemplo, tem-se o investimento de 500 milhões de dólares em conteúdo original para doramas e filmes sul-coreanos feitos pela Netflix, no mês de fevereiro deste ano. Esse capital foi investido após sucessos de audiência consequentes da distribuição e produção original desse gênero, como é o caso do seriado Sweet Home, drama de terror coreano que alcançou 22 milhões de acessos na plataforma desde o seu lançamento em dezembro de 2020. Nesse sentido, os seriados coreanos têm se integrado aos catálogos e, de certa forma, desafiado noções preestabelecidas sobre este universo. Cada vez mais, os doramas apresentam elementos que transcendem a regionalidade de origem e alcançam os telespectadores em suas próprias questões, apesar das barreiras geográficas e culturais.

Além dos efeitos especiais, enredos e o próprio estilo narrativo dos seriados coreanos, o desenvolvimento individual dos personagens é um dos grandes catalisadores da popularização dos doramas no mundo. A representatividade feminina na figura da protagonista, a presença do romance entre os personagens principais, o final feliz e o alívio cômico são elementos que costumam popularizar esse gênero e alcançar principalmente o público feminino. Porém, ainda que as mulheres representem a maior parcela de espectadoras, a problemática do papel de gênero permanece sendo um impasse. É natural que existam diferenças culturais entre a representação feminina no Ocidente e no Oriente. Entretanto, a principal questão a ser analisada refere-se ao papel do roteiro no reforço de alguns padrões narrativos, que acabam não só desperdiçando arcos femininos, como também repetindo estereótipos de protagonistas na televisão.

Seo In-jae e Seo Dan-ah

Como exemplo e análise dessa questão, pode-se citar as personagens Seo In-jae (Kang Han-na) do seriado Start-Up (Apostando Alto, em português), produzido pela tvN, e Seo Dan-Ah (Choi Sooyoung), do seriado Run On, produzido pela JBTC. Ainda que sejam protagonistas de séries diferentes em emissoras distintas, ambas compartilham diversas similaridades. Para além do sobrenome em comum, as duas são second leads, ou seja, protagonistas secundárias que, na hierarquia narrativa, estão logo após a personagem principal. Além disso, em suas séries elas estão na figura de mulheres buscando a independência financeira e emocional em relação à própria família. Tanto In-jae quanto Dan-Ah existem principalmente no ambiente corporativo, como empreendedoras à procura de sucesso, reconhecimento e destaque.

Resumidamente, Start-up é um seriado coreano escrito por Park Hye-sun, que se passa no fictício Vale do Silício da Coreia do Sul, a Sandbox. A história gira em torno de jovens adultos integrando o universo dos negócios, com a protagonista Seo Dal-mi (Bae Suzy) enfrentando desafios desse mundo enquanto compete contra a sua irmã Seo In-jae. Há, ainda, a tradicional trope do triângulo amoroso, em que a mocinha deve escolher entre o seu amor secreto de infância, o investidor de sucesso Han Ji-pyeong (Kim Seon-ho), ou a nova figura desse romance juvenil, representado pelo programador Nam Do-san (Nam Joo-hyuk).

Por outro lado, Run On narra uma história de amor e amadurecimento em um universo esportivo, sendo escrito pela roteirista Park Shi-Hyun. Basicamente, o atleta Ki Seon-gyeom (Im Si-wan) enfrenta uma jornada de autoconhecimento enquanto se torna um agente esportivo, com a ajuda da intérprete e seu par romântico Oh Mi-joo (Shin Se-kyung). Nesse meio tempo, o protagonista cria laços com Lee Yeong-hwa (Kang Tae-oh), um artista universitário que acaba se tornando seu melhor amigo por acaso, e com a sua antiga empresária Seo Dan-ah (Choi Sooyoung).

Atenção: este texto contém spoilers!

Seo In-jae e Seo Dan-ah

Nos contextos de cada narrativa, Seo In-jae e Seo Dan-ah são introduzidas de formas distintas, e contam com arcos que as levam a finais divergentes. Inicialmente, In-jae é apresentada em Start-up como uma mulher de sucesso, que trabalha como CEO na empresa de seu padrasto. Após o divórcio entre seus pais durante a infância, a personagem secundária opta por ficar com a mãe, mudando-se para o exterior quando a matriarca inicia um novo relacionamento, mas deixando a irmã mais nova com o pai na Coreia.

Eventualmente, a ruptura entre as irmãs as transformam em pessoas distintas enquanto adultas. Apesar disso, a primeira parte do seriado mantém In-jae como uma referência para a protagonista, Seo Dal-mi, ainda que como uma pessoa que ela precisa superar. No geral, o conflito da separação e a escolha por pais diferentes durante o divórcio pauta a competição entre elas dentro e fora do âmbito profissional. Desse modo, Seo In-jae ocupa um importante papel de catalisador dos conflitos que desenrolam a narrativa, em especial quando sua irmã mente para ela sobre um relacionamento com Nam Do-san, sua paixão de infância.

Em tempo, In-jae deixa de ser uma rival para assumir uma posição de quase vilania e, eventualmente, desaparece na história. Na medida em que o triângulo amoroso passa a ocupar uma posição principal na série, a narrativa do empreendedorismo torna-se pano de fundo para um romance mal desenvolvido. Nesse processo, Seo In-jae deixa de ser uma personagem sólida, uma empresária em desenvolvimento enfrentando a família para obter seu lugar ao sol. A partir da segunda metade da série, a protagonista secundária se transforma em uma espécie de intervalo narrativo. Ou seja, In-jae passa a aparecer somente entre as cenas de romance.

Mais do que isso, o seu desenvolvimento passa a ser pautado por ganância, competitividade desmedida e tentativas desonestas de se sobressair em relação à irmã. Nesse sentido, além de se perder a essência de In-jae, enquanto alguém que desafiava positivamente a irmã, ou como uma jovem adulta desbravando o mundo com as próprias mãos, a personagem passa a ser potencializadora da rivalidade feminina dentro da própria família. Ainda que a série tenha tentado recuperar In-jae em um arco de redenção, os esforços somente consolidam a precariedade do roteiro. Eventualmente, as irmãs se reconciliam e passam a trabalhar juntas, porém, In-jae se transforma no alívio cômico da série, com cenas superficiais e rápidas fora do contexto. Ademais, a irmã mais velha também se torna um freio aos planos insensatos da irmã em relação aos negócios.

O destaque da problemática nesse desenvolvimento fica para o fato de que essa reconciliação familiar estava em andamento há três anos na história da série, contudo, In-jae não tinha a menor ideia que a avó estava sofrendo de um mal crônico. Desse modo, a conclusão do arco da personagem ocorre quando ela busca o perdão da família, apresentando como ela ignorou o que mais importava na vida durante a busca pelo sucesso. Essa conclusão acaba parecendo um curativo mal feito sobre a narrativa como um todo. Além de reforçar a relação entre a ambição feminina e o distanciamento de valores familiares, a história de Seo In-jae é concluída de maneira pobre, onde a personagem fica subjugada à inexperiência e imaturidade da irmã mais nova.

Por outro lado, Seo Dan-ah em Run On é inicialmente apresentada como uma protagonista cujo foco está somente em seu sucesso como empresária, mas os desdobramentos em sua narrativa na série introduzem outras facetas. Nesse aspecto, a principal questão para esse aprofundamento está associada aos relacionamentos, pois ao contrário de Seo In-jae, Dan-ah tem um envolvimento romântico na série, e torna-se amiga dos outros protagonistas. Eventualmente, os enfrentamentos causados pela relação com outros personagens retiram Dan-ah da imagem inicial de uma megera ambiciosa e enriquecem sua narrativa.

A construção do roteiro trabalha as dificuldades que ela enfrenta como filha mais velha de um grande empresário, que favorece o filho do segundo casamento como herdeiro. Para entender melhor a trama, Dan-ah chega a ser obrigada a mudar o ano de seu nascimento nos documentos para que o meio irmão seja considerado herdeiro legítimo. Nesse sentido, a personagem ainda lida com os conflitos de ser obrigada a se casar, pois seu pai não permite que ela assuma nenhuma parcela da empresa. Dan-ah também luta contra a persistência dos homens de sua família para que ela desista da própria agência esportiva e aceite o papel de figura pública da empresa, sem ocupar nenhuma posição de poder.

Dan-ah se torna uma personagem que não aceita o papel imposto pela sua família, ou pela sociedade. Por meio de uma série de artimanhas, estratégias e planos, atuando por baixo dos panos até conseguir ocupar o seu lugar de direito. Nesse meio tempo, ela enfrenta diversos dilemas emocionais. Por exemplo, os problemas de afetividade e intimidade dentro do relacionamento amoroso com Yeong-hwa, e suas dificuldades de socialização na amizade com Mi-joo. Assim, a conclusão de sua narrativa não apresenta arcos de redenção, mas um processo de amadurecimento que se assemelha à realidade de outras mulheres. Nesse sentido, ainda que o relacionamento amoroso tenha um final aberto, Dan-ah se mantém em sua essência e valores pessoais sem abandonar os sonhos iniciais.

Analisando e conhecendo as duas personagens, é possível compreender o papel do roteiro na construção de narrativas femininas na televisão. Por um lado, Start-up se encerra como uma história de incontáveis desdobramentos que acaba se perdendo da proposta inicial, desperdiçando um bom enredo e excelentes personagens em prol de fórmulas gastas, como a do triângulo amoroso. Por outro, Run On é uma produção onde todos os personagens recebem atenção proporcional, independente da posição hierárquica na narrativa. Existe na série um desenvolvimento equilibrado, onde o enredo não se sobrepõe às individualidades dos personagens.

Não se trata sobre a qualidade da atuação ou a capacidade das roteiristas envolvidas, e sim das estratégias narrativas que fazem parte dessas séries e do universo dos doramas como um todo. No contexto de uma indústria que tem se internacionalizado gradativamente, e que foca na audiência feminina, a construção de protagonistas deve ir além das fórmulas prontas ou que vendem bem. Assim, conhecer a experiência de mulheres reais e retratá-las, ainda que no universo ficcional, não é somente uma questão de identificação e respeito com esse público. Mais do que isso, é sobre acompanhar o ritmo das mudanças que nós estamos realizando no mundo. É sobre contar as nossas histórias, representando quem de fato somos e as mulheres que iremos nos tornar.


** A arte em destaque é de autoria da editora Thayrine Gualberto.

1 comentário

  1. Discordo de que a In-Jae seja um intermédio entre as cenas de romance – e também que ele seja mal desenvolvido. Não só acho o romance muito bem desenrolado entre Dal Mi e Do San, como vejo que In Jae nunca esteve lá para ser realmente a personagem feminina secundária, papel esse que vejo muito mais no núcleo da avó dela, por exemplo, do que nela em si. In-Jae realmente poderia ter sido melhor trabalhada quanto a sua redenção, que acredito ter acontecido tarde demais, porém ainda foi uma personagem com seu papel narrativo – antagonista no começo, reconciliação no final – que foi cumprido, mesmo que não seja na mesma qualidade que acontece em Run On. As duas são de fato parecidas, mas o arcabouço de contexto anterior de ambas não é o mesmo, de forma que acho injusto comparar as duas propondo que In-Jae ficou para trás em detrimento do romance do drama. In-Jae era irmã de Dal Mi, uma relação muito mais próxima e por essa razão muito mais dolorosa do que qualquer relacionamento que a personagem de Run On teria com a protagonista. Ainda com as discordâncias, foi um ótimo texto, parabéns pela reflexão;

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