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Santa Clarita Diet: grandes questões em meio ao caos

Recebi a notícia de que Santa Clarita Diet foi cancelada com tristeza. Principalmente porque, com essa terceira e última temporada, acredito que a série se fortaleceu efetivamente no caminho que se propôs seguir: o de ser uma comédia consistente que mescla o que há de mais surreal com as situações mais absolutamente ordinárias. Isso, é claro, com muito sangue esguichado e órgãos humanos devorados. Original da Netflix, Santa Clarita Diet é uma criação de Victor Fresco que traz Drew Barrymore como Sheila Hammond, a protagonista que é mãe, esposa, corretora de imóveis, moradora do subúrbio da Califórnia. E zumbi.

Atenção: o texto contém spoilers!

Depois de comer um molusco contaminado e se transformar em zumbi, Sheila deixa de ser a mulher tímida que sempre foi e passa a explorar sua personalidade mais verdadeira, que é ousada, extrovertida e sensual, enquanto lida com sua nova existência e a necessidade de se alimentar de carne humana. Ao longo das temporadas vemos tanto a própria Sheila quanto sua família — o marido Joel (Timothy Olyphant) e a filha Abby (Liv Hewson) — evoluindo suas relações com esse novo cenário enquanto conciliam tudo com as vidas normais. Abby continua indo para o colégio e vivendo questões típicas de uma adolescente de ensino médio, enquanto observa a mãe mordiscar dedos humanos. Sheila e Joel continuam com seus projetos para avançar na carreira de corretores, enquanto fazem planos para matar as pessoas que Sheila vai comer.

Na terceira temporada, a série encontrou o equilíbrio perfeito e conseguiu desenvolver bem tanto o cotidiano de típica família de classe média norte-americana quanto o total absurdo relacionado ao universo zumbi. Ao longo dos dez episódios da temporada aprendemos mais sobre os Cavaleiros da Sérvia, a misteriosa instituição secular que se dedica a caçar e matar zumbis pelo mundo; conhecemos os motivos de um novo vilão que está em busca de capturar mortos-vivos e acompanhamos as novas incursões de Sheila e Joel para encontrar pessoas certas para matar. Ao mesmo tempo, vemos os Hammond começarem seu próprio negócio como corretores de imóveis independentes, pensando em questões banais como o website da empresa e a rixa com seus concorrentes (Chris e Christa, interpretados por Joel McHale e Maggie Lawson).

Santa Clarita Diet

É no meio desse caos da dualidade em que Sheila e Joel tentam navegar que o show salpica as grandes questões. Sim, pois Santa Clarita Diet é uma série que coloca em pauta algumas das mais fundamentais questões existenciais desde sua primeira temporada. Não de forma profunda — afinal, estamos falando de uma comédia com episódios curtos e muita coisa acontecendo. Ainda assim, essa maneira de pincelar reflexões mais filosóficas em situações comuns ou absurdas é algo bem próximo da realidade. Viver é um caos. Talvez em um nível um pouco mais acentuado se você, por acaso, for um zumbi. Mas, um caos de qualquer forma. E é no meio desse caos que os personagens lidam (e nós também lidamos) com as grandes questões.

O bom e o mau

O primeiro conflito que Santa Clarita Diet dissemina é a óbvia relação entre bem e mal. A começar pelo fato de que os Hammond são o exato estereótipo de “cidadãos de bem” norte-americanos, acostumados a serem vistos com bons olhos: uma família branca, heterossexual, de classe média alta, com emprego padrão e casa própria. Quando Sheila se transforma em zumbi, essa passa a ser apenas a superfície. Em uma segunda dimensão de suas vidas, a família também se mete em assassinatos, canibalismo e outros crimes. E agora, eles são pessoas boas ou pessoas más? Esse é um conflito que não só é colocado para quem está assistindo a série, mas que também orbita as preocupações dos personagens. Desde o início, Sheila e Joel se preocupam ao máximo com a decisão de quem vão matar para que Sheila possa se alimentar. O que pauta a escolha é quem eles acham que é uma pessoa ruim, o que, de certa forma, deixaria o assassinato uma coisa “passável”, pelo menos levando em conta suas próprias consciências. Mas, aí, a trama bate em outras questões: será que alguém pode mesmo julgar se outra pessoa merece ou não morrer? Matar alguém é justificável quando esse alguém fez algo julgado como ruim? Quão distante você está daquela pessoa ruim se resolveu que ela merece morrer?

Esse duelo entre bom e mau, que vem aparecendo na narrativa desde o início da série, destaca ainda uma outra faceta na terceira temporada. Em uma cena, Sheila e Joel vão até casa de um desconhecido que acreditam ter se transformado em zumbi, com o intuito de “contê-lo”. Quando percebem que estão prontos para matá-lo apenas porque ele pode ser um zumbi, os Hammond começam a questionar também essa atitude. Será que ser um zumbi é uma justificativa suficientemente boa para matar alguém? E ainda estar disposto a matar esse alguém com tanta naturalidade? Essa questão se estende para outro momento, quando o casal de protagonistas está conversando com a diretora dos Cavaleiros da Sérvia sobre a missão de perseguir e matar mortos-vivos pelo país. Será que é mesmo benéfica uma instituição que se dedica ao extermínio de criaturas sem saber nada sobre cada uma delas, baseando-se unicamente no fato de que elas são zumbis? Os zumbis são necessariamente o mal e quem os mata está indubitavelmente fazendo o bem?

Santa Clarita Diet

Colocar tudo em caixas de bom ou mau e classificar personagens como mocinhos ou vilões é algo tão automático que, sempre que temos uma narrativa que apresenta mocinhos com atitudes questionáveis, o embate entre os rótulos é certo. A linha entre bom e mau é tênue e Santa Clarita Diet explora essa área cinza, em que nada é uma coisa só.

A busca de um propósito

Uma das novidades de Santa Clarita Diet na terceira temporada é que Sheila ganha um arco de busca de propósito. Quando Anne Garcia (Natalie Morales), a policial religiosa que namora a vizinha Lisa (Mary Elizabeth Ellis), descobre que Sheila é uma morta-viva, no final da segunda temporada, ela passa a acreditar que está diante de uma enviada de Deus. Com os desdobramentos dessa descoberta na terceira temporada, Sheila começa a refletir se ter se transformado em zumbi pode ter sido mais do que uma mera casualidade do destino e qual significado isso pode assumir na sua existência. Ela passa então a confrontar outra grande questão típica da humanidade: por que estou aqui e qual o meu propósito?

Essa busca por um propósito desenvolve dois acontecimentos importantes ao longo dos episódios. Um deles é a decisão de Sheila de se voluntariar para um projeto social que consiste em levar refeições para idosos em casa. Por meio desse projeto, Sheila conhece Jean (Linda Lavin), uma senhora que, em meio a um turbilhão de grosserias, revela que está doente e não vai viver para conhecer seu neto, uma vez que o pouco tempo de vida que lhe resta é menor que o tempo que a gestação da filha tem pela frente. Sheila toma então a decisão impulsiva de transformar Jean em zumbi, para que ela possa viver tempo o bastante para conhecer o neto. Isso acontece no mesmo momento em que os Hammond se veem na posição de impedir que Ron (Jonathan Slavin), um amigo que Joel faz na segunda temporada e agora é o mais recente morto-vivo de Santa Clarita, saia pela cidade transformando mais e mais pessoas em zumbi, o que pode desencadear, potencialmente, a exposição dos Hammond e uma matança generalizada.

Santa Clarita Diet

O segundo acontecimento surge com outra decisão de Sheila, a de ajudar uma mulher que está sofrendo em razão do relacionamento com um homem machista e abusivo. A forma como Sheila resolve fazer isso é escolhendo esse homem como seu próximo alvo, e matando-o para comê-lo. Apesar de se sentir imediatamente bem com a decisão e achar que está no caminho certo, a ação gera consequências poucos episódios depois: a mulher “ajudada” é presa e acusada pelo assassinato que Sheila cometeu. Isso faz com que os Hammond se enrolem mais uma vez na tentativa de consertar tudo, livrando a mulher que nada tinha a ver com a decisão do assassinato, mas sem se comprometerem com a situação. A série não chegou exatamente lá, mas meu palpite é que ainda chegariam a uma outra questão de bom versus mau se pudessem seguir com o desenvolvimento desse arco do propósito: se Sheila encarasse como o propósito de sua existência eliminar pessoas para “ajudar” outras, como isso a tornaria diferente dos Cavaleiros da Sérvia? O que chega, de fato, é uma Sheila se debatendo com a questão de como pode ajudar outras pessoas com os recursos que possui de forma realmente positiva.

A mortalidade

Com o ressurgimento de Ron nessa última temporada, os Hammond são colocados frente a frente com um fato no qual eles nunca tinham sequer tido tempo de pensar: a imortalidade de Sheila. Afinal, sendo uma morta-viva, Sheila não está sujeita a uma morte comum por velhice, doença ou um acidente qualquer. A única forma de morrer agora é ser morta via destruição de cérebro. Isso traz à tona duas realidades difíceis de encarar. A primeira, de que não há uma morte tranquila quando se é um zumbi. Agora, a única coisa que pode ferir Sheila mortalmente é ser assassinada, com seu cérebro perfurado. O entendimento disso dá uma perspectiva aterrorizante a essa nova realidade dos Hammond.

A segunda realidade difícil de encarar é a de que a alternativa a essa morte trágica é viver por toda a eternidade. A imortalidade é um tema vastamente explorado em diversos tipos de narrativas e ela levanta questões que não poderiam deixar de surgir em Santa Clarita Diet. Ainda que nós, como humanidade, tenhamos um medo intrínseco da morte, algo implacável e irreversível, a ideia de viver para sempre também não é recebida com facilidade. Em uma análise clássica, o conceito de ser imortal anda de mãos dadas com o conceito de solidão. Munida de uma vida eterna, Sheila veria todas as pessoas que ama morrerem e continuaria intocada, acompanhando gerações e gerações de sua família nascendo e perecendo ao longo dos séculos. A possibilidade de viver sozinha eternamente assusta, mas Sheila tem uma solução de pronto: ela propõe a Joel transformá-lo também em morto-vivo, para que os dois possam passar a eternidade juntos.

Santa Clarita Diet

A dinâmica entre Sheila e Joel é um dos pontos altos de Santa Clarita Diet. Os dois formam uma dupla muito bem articulada, em uma parceria bem construída na qual eles não medem esforços ou impõem limites rígidos para ajudar um ao outro. Ao encarar a imortalidade e todas as variáveis que ela levanta de frente, nos deparamos com a primeira grande crise do casal. Enquanto Sheila está pronta para transformar Joel e viver com ele para sempre, Joel não está assim tão entusiasmado para abraçar a proposta de imortalidade. O desenvolvimento disso é interessante, pesando o preço a se pagar por ter uma vida eterna e tudo o que essa escolha (seja a de se tornar zumbi ou continuar mortal) implica na vida dos Hammond.

O Id

A questão do Id, que também já nasceu com a primeira temporada, volta a entrar em pauta na última leva de episódios. E o que a levanta é justamente a proposta que Sheila faz para Joel de transformá-lo em morto-vivo. Santa Clarita Diet trabalha com a ideia de que, ao morrer e renascer como um zumbi, a pessoa passa não só por uma transformação física, mas também de comportamento e personalidade. Isso porque os mortos-vivos vivem no Id, sendo guiados pelos seus desejos e impulsos. Depois de lidar com a transformação radical da esposa, Joel fica desnorteado diante da possibilidade de lidar com a sua própria transformação. Como ele seria se fosse guiado pelo Id? O que as possíveis mudanças em seu comportamento e personalidade significariam para o casal? Ele está mesmo disposto a abrir mão conscientemente da pessoa que ele é e já conhece para se tornar um novo ser?

A série termina com um episódio que não tem cara de finale — e não era para ser. Depois de decidir que prefere se arriscar se transformando em um zumbi do que perder Sheila para sempre, Joel tem um pequeno acidente doméstico-zumbi e é transformado pela esposa. É um gancho perfeito para uma quarta temporada que não vai existir, e que poderia nos mostrar como seria Joel como zumbi, todas as mudanças que isso poderia trazer para a dinâmica da família e para a narrativa da série, de forma geral. Isso sem falar nos outros personagens — o novo esquadrão que é o “culto de Sheila”, o relacionamento de Abby e Eric (Skyler Gisondo), o quanto Abby ainda se envolveria com toda a questão dos Cavaleiros da Sérvia.

Ainda temos a excelentíssima The Good Place para abordar grandes questões existenciais com humor em meio a situações caóticas e absurdas, mas o cancelamento de Santa Clarita Diet é mais um buraco no catálogo da Netflix, que dificilmente vai ser capaz de preencher a lacuna que fica em branco com o fim de uma história que nos deu algo que nem sabíamos que precisávamos: Drew Barrymore zumbi. Santa Clarita Diet vai fazer falta.