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Santa Clarita Diet e o Id: uma lição dada por zumbis

Se você já viu Santa Clarita Diet, você sabe: é um seriado estranho. Se você ainda não viu, saiba: é um seriado estranho. Ouvi de umas três ou quatro pessoas próximas que elas ainda não sabiam o que pensar. Nem mesmo sabiam se tinham gostado ou não. E isso, enquanto para alguns pode significar algo negativo, pode ser visto como algo instigante, como uma quebra em nossas expectativas.

Santa Clarita Diet é um seriado da Netflix, criado por Victor Fresco, sobre uma mãe de família — Sheila Hammond — que, logo no primeiro episódio, vomita o próprio coração e se transforma em zumbi e sobre como seu marido e sua filha, assim como ela, vão aprender a lidar com tais mudanças. Santa Clarita é uma cidade no subúrbio de Los Angeles muito pacata, com uma vida monótona — a típica imagem da classe média americana que construímos imediatamente, seja por conta dos filmes ou da propaganda. Ela e o marido, Joel, interpretado por Timothy Olyphant, são corretores de imóveis e a filha Abby, de 16 anos, interpretada por Liv Hewson, ainda está no ensino médio.

Drew Barrymore, no papel da protagonista, está maravilhosa. É ótimo acompanhar a sua transição enquanto vemos as mudanças graduais, outras nem tanto, em seu comportamento. Digamos que não seria o que se esperaria dela. Novamente, uma ruptura em nossas expectativas. Isso por si só já é importante para questionarmos por que somos tão apegados a elas e por que, quando um seriado quebra com algum tipo de padrão estabelecido, não sabemos bem como reagir. Não é como se o seriado tivesse a pretensão de ser questionador ou emblemático. Não. É uma comédia cheia de situações absurdas e escatológicas, mas traz consigo alguns elementos inovadores.

Em primeiro lugar, sua protagonista. Uma mãe com uma vida estável, com poucos riscos, pacata e que de repente muda radicalmente de postura, se arriscando, vivendo intensamente e, por que não, deglutindo uma ou outra pessoa de vez em quando. Essa postura antropofágica do mundo dos zumbis se torna interessante à medida que ela vai se ganhando autonomia com suas próprias mudanças. Ela passa a gostar de si, a se orgulhar de quem é. Enquanto a filha se afasta e o marido busca desesperadamente uma cura, Sheila passa a ficar confortável com sua nova realidade. Começa a ter uma vitalidade que antes não tinha. E uma força excepcional também, física e metafórica. Uma força para confrontar seu vizinho inconveniente assim como o diretor da escola da filha, para não mais aceitar os pequenos abusos aos quais nos sujeitamos em nosso cotidiano. A cada limite que ela impõe, constrói também um novo modus operandi para si. Uma nova maneira de viver que esteja de acordo com seus desejos.

Seu marido, em certo momento, começa a se intimidar pela força da esposa, por sua energia, pela sagacidade e, sobretudo, pela coragem. Ele se encara, então, como um covarde e é tratado, no seriado, como tal. A solução que Santa Clarita Diet encontrou, para não tornar essa disputa entre marido e mulher algo sexista, foi através da parceria entre os dois, abraçando verdadeiramente as suas diferenças e potencializando o que cada um tem de melhor para, assim, encontrar força nas adversidades. A filha também se descobre, ao longo do enredo, ao questionar sua própria realidade e muda, com a mesma vitalidade e ousadia da mãe, mas sem ser zumbi.

A premissa é de que os zumbis vivem apenas no Id, que, na teoria psicanalítica, designa nossas pulsões, nossa libido, nossos impulsos mais primitivos e inconscientes. Portanto, há uma simetria enorme entre o que um zumbi quer fazer e o que ele faz, o que quer dizer e o que diz. Embora isso seja retratado de forma humorística e hiperbólica no seriado, ainda assim não deixa de ser curioso observar o comportamento da protagonista e pensar em nosso próprio modo de ser, em quão distante está nossa vida real da vida fictícia que gostaríamos de ter, e qual é a medida exata que permite um equilíbrio entre o impulso e o controle.

Além de todas as mudanças já citadas, a personagem de Drew Barrymore também passa por um novo despertar sexual. Passa a ter desejos mais frequentes, a transar muitas vezes mais com o marido e, inclusive, a adrenalina que o ato de matar alguém para comer a proporciona é, por sua vez, também sexual.

Gosto da ideia de mulheres seguindo mais o seu Id e transformando, mesmo que impulsivamente, seus desejos em realidade. Para nós, isso pode parecer muito distante e por isso é um ponto delicado e problemático para se tocar. Ao passo que sequer sabemos se gostamos ou não do seriado, também questionamos o comportamento da protagonista e refletimos sobre suas consequências, ou seja, as consequências de se seguir apenas o Id, de viver inteiramente de acordo com nossos desejos.

Isso tornaria a vida extremamente caótica, na prática, mas me pergunto, por que, às vezes, afastamos tanto uma coisa da outra? Deixamos deliberadamente de fazer o que nos torna felizes porque achamos que é errado, feio, que seremos julgadas ou que isso não corresponde às expectativas criadas em cima de nós. O que ficou de importante, para mim, é que, ao mudarmos nosso comportamento cotidiano, nem precisa ser da maneira drástica ou caricatural que é retratada lá — mas passamos a nos energizar, a encontrar mais disposição e ânimo, justamente porque estamos vivendo um pouco mais próximas aos nossos desejos mais íntimos e verdadeiros. Diminuímos, assim, a distância entre a vida que deveríamos ter — segundo a sociedade — e a vida que queremos.

Raquel Campos tem 29 anos, é doutoranda em literatura porém viciada em Netflix and chill.

1 comentário

  1. “ao mudarmos nosso comportamento cotidiano, nem precisa ser da maneira drástica ou caricatural que é retratada lá –”
    Exatamente, concordo, não precisamos virar zumbis, nem sermos radicais para expor um pouco mais nossos desejos cuja satisfação está submetida à censura alheia. Não vi a série, mas você colocou uma perspectiva bem mais interessante. Precisamos nos autorizar mais e nos tornar autores de nós mesmos .

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