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Eu, Cassandra Rios, sou uma lésbica: a escritora mais censurada da ditadura militar

A primeira vez que eu ouvi o nome de Cassandra Rios foi durante a faculdade de Letras. Não por professores, mas por uma colega de classe que apontou a relevância das escritoras lésbicas brasileiras — e suas ausências no estudo (e ensino) de literatura nacional. Naquela época eu já sabia que ao se trabalhar com literatura entramos em um campo que já foi (e ainda é) fortemente influenciado pelo patriarcalismo, e dessa vez não seria diferente. Considerada a escritora mais censurada pela ditadura militar, Cassandra Rios fez história como primeira autora brasileira a vender um milhão de obras e mostrou o lado cotidiano e humano de suas personagens lésbicas, desmentindo estereótipos que habitavam as mentes alienadas pela hipocrisia da moral e dos bons costumes.

Cassandra Rios nasceu como uma profecia para Odete Rios. Escreveu seu primeiro livro, A Volúpia do Pecado, com apenas dezesseis anos, conquistando uma série de negativas de editoras que não queriam arriscar a publicação de uma história sobre o romance entre duas adolescentes lésbicas. Foi com o dinheiro emprestado da mãe que Cassandra conseguiu publicar por conta própria, e sua primeira recepção seria um prelúdio do que estava por vir: sucesso de vendas (superando escritores famosos de sua época, como Jorge Amado e Clarice Lispector) e censura.

A Volúpia do Pecado foi um sucesso. Em dez anos, foi reeditado nove vezes até ser censurado pela ditadura militar, em 1962, com a justificativa de que tal obra “ofendia a moral e os bons costumes”. Mas tal perseguição não intimidou a escrita direta e fascinante de Cassandra, que, com suas capas sensuais e linguagem popular, linear e com muito suspense, conquistou uma série de leitores, escrevendo mais de quarenta romances com personagens homossexuais. Suas obras, que partiram de um cenário marcado por estereótipos, pôde retirar suas personagens do exótico lugar carnavalesco e inseri-las em um cotidiano real.

Caça às bruxas

O sombrio período de produção de Cassandra Rios foi marcado pela repressão e pela violência do regime militar brasileiro, período em que ideias veiculadas por artistas eram consideradas armas contra o autoritarismo da ditadura. Com o ato institucional nº 5 (AI-5), a repressão ganhou ainda mais poder, enquanto os direitos à liberdade de expressão eram negados. Artistas nacionais, como escritores e cantores, por vezes se reinventaram e utilizaram-se do “não-dito” e das entrelinhas para, de alguma forma, manter seus ideais vivos. Embora diferente desses discursos políticos, a escrita de Cassandra era vista como ameaça porque abalava a tradição. Sua obra tirava as personagens homossexuais do espectro “doentio” e as colocava no cotidiano, humanizando-as, o que era um escândalo para a época em que termos como LGBTQ+ ainda nem existiam. Também inovava ao representar o prazer sexual das mulheres, um tabu que ainda choca a sociedade atual.

“Embora pareça uma temática reprisada, tornando-se enfadonha, em cada livro de minha autoria, naqueles em que focalizo o homossexualismo, apresento tipos diferentes, cada um na sua categoria… Sem desenvolver nenhuma teoria pretensiosa, limito-me a escrever sobre as relações da Homossexualidade… Depende da graduação da inteligência de cada leitor, entender os meus objetivos, analisar e classificar honesta e sensatamente cada caso em separado.”

Cerca de trinta e seis livros de Cassandra foram censurados pela ditadura, e literalmente consumidos por fogueiras, como uma inquisição do século XX, o que tornou extremamente difícil encontrar suas obras hoje em dia. A própria imagem da autora foi alvo de terríveis especulações devido à sua sexualidade, assumidamente lésbica, e também devido ao erotismo presente em seu trabalho. Prestou inúmeros depoimentos ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), quase na mesma frequência com que publicava suas obras. Mesmo assim, sua “escrita maldita” conquistou-lhe a estabilidade do ofício de escritora como sua principal fonte de renda, um grande marco para a literatura nacional produzida por mulheres.

De Cassandra Rios a Oliver Rivers

Com o nome jogado na fogueira da inquisição, Cassandra Rios adotou um novo pseudônimo: Oliver Rivers, que apesar de manter uma certa semelhança ao seu nome original, pôde proporcionar à autora um escape da perseguição e da censura. Relatos de parentes mostram que a recepção de Oliver Rivers era muito mais pacífica que a recepção de Cassandra, embora seus livros continuassem com o mesmo teor erótico. A partir de então, ficava bastante claro que não era exatamente o teor erótico de suas obras que incomodava, mas sim o símbolo de liberdade de uma mulher assumidamente lésbica produzindo literatura e conquistando sua emancipação financeira. A autora manteve por anos a própria livraria, onde pôde publicar por conta própria diversas de suas obras.

“Fui massacrada (por ser mulher). Desde os primórdios da civilização a mulher luta pelo direito de falar, de pensar. Se o homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a mulher escreve, é ninfomaníaca, tarada.” (Entrevista, revista TPM).

O erotismo sempre foi presente na literatura nacional, mas os olhares estavam quase sempre voltados para a produção masculina. Em O Cortiço, de Aluízio Azevedo, por exemplo, temos o retrato de personagens homossexuais carregadas de erotismo já no século XIX, e até hoje é uma obra muito estudada e comentada. Outros livros, como A Carne, de Júlio Ribeiro, e o O Aborto, de Figueiredo Pimentel, traziam relações sexuais explícitas em uma escrita animalesca. O silenciamento de Cassandra Rios também é consequência de uma elite cultural que discerne o que é arte e o que é cultura de massa, e suas obras com capas sensuais, linguagem simples e especulativa durante muito tempo não tiveram espaço na academia. Assim como sua xará da mitologia grega, agraciada com o dom da profecia e a maldição de nunca ser ouvida, a autora trazia o prazer feminino como uma verdade que muitos custavam a acreditar.

O próprio debate em torno do que pode ou não ser considerado literatura erótica persiste até hoje, com diferentes definições. Vale ressaltar, portanto, que a própria Cassandra Rios não se considerava uma escritora erótica, uma vez que escrevia sobre (e por) amor. Sua linguagem era direta porque tinha o objetivo de retratar algo real, algo cotidiano. Sexo é algo cotidiano, relações homoafetivas sempre existiram. Por que, então, não retratá-las na literatura?  Claro que à época já havia representações de casais do mesmo gênero na literatura, mas um olhar mais cuidadoso sobre sua obra é suficiente para percebemos que Cassandra almeja retirar suas personagens do estereótipo pitoresco, carnavalesco, e lhes conceder identidade e vidas próprias. As relações sexuais não eram o único foco de suas obras: elas traziam grandes influências do romance policial, como por exemplo em Uma Mulher Diferente, que apresenta uma narrativa que vai mostrando aos poucos como a morte de uma mulher “que não era como as outras” aconteceu.

A escrita maldita

Sua linguagem era sensual não apenas pelas representações de cenas sexuais, mas pela forma como escrevia, utilizando o mesmo recurso do suspense clássico dos folhetins brasileiros e da linguagem simples, linear e cotidiana das crônicas. Tratava, assim, de temas polêmicos com uma intimidade que conquistou muitos leitores. Ao representar situações de preconceito em suas obras, mostrou uma realidade que muitos tentavam ignorar. Isso significava também mudar a escrita heteronormativa e abrir espaço para uma nova estética, transgredindo a única representação que o contexto repressivo da ditadura militar apresentada acerca dos LGBTQIA+: o lugar do pitoresco, do estereótipo, e da imoralidade.

“E estava predestinado que eu jamais conseguiria amar a um homem, que somente outra mulher poderia fazer-me vibrar, excitar-me e fazer pulsar mais forte o meu coração. (…). A censura consciente impõe a minha verdade com toda a sua força, e eu não reprimo a energia dos meus desejos, que buscam a sua realização. (…). O que eu quero afirmar é que em mim tudo é natural, autêntico, consciente, vivo, espontâneo. Sou definida, autêntica, honesta, mas um tanto covarde, ainda.”

Nos prefácios de suas obras há o apelo para que aspectos negativos parem de ser atribuídos aos LGBTQIA+ (embora seja um termo que não existia em sua época, é o mais adequado para se referir à diversidade de suas personagens). Na descrição das suas personagens lésbicas, embora sejam vítimas de várias cenas de preconceito, há virtudes, o que plantou uma semente para que a mudança da representatividade finalmente acontecesse em nossa literatura nacional. Para isso, Cassandra precisava fazer sua escrita ter a língua do povo, ao mesmo tempo em que criava camadas e camadas para tentar escapar dos mecanismos de censura da ditadura. “Brincar” com os estereótipos era uma maneira de passar por tal dilema, pois introduziu um discurso comum da época para, a partir de então, transformar em sua própria linguagem.

Cassandra foi uma clássica personagem da mitologia grega, agraciada pelo dom da profecia, mas amaldiçoada com a realidade em que ninguém ouviria suas palavras, tudo por negar a ter relações sexuais com um homem. Também chamada de “Safo de Perdizes”, Cassandra Rios evoca outro símbolo mitológico de uma mulher que escrevia sobre o amor lésbico (inclusive dando origem ao termo), e que teve grande parte de sua produção perdida. Ao reunir em si essas vozes silenciadas e de resistência, Cassandra Rios sobrevive das cinzas e profetiza, em uma época de forte repressão, um futuro onde outras podem encontrar, em sua produção, um lugar de conforto e de inspiração.

“Manter-se-ia… firme contra certos preconceitos por instinto. Reduzida ao silêncio.” 


* Esse texto teve como referência o artigo Cassandra Rios e o surgimento da literatura gay e lésbica no Brasil, de Rick Santos.

** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!