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Árvore Inexplicável, de Carol Chiovatto

À primeira vista, Diana é somente mais uma jovem universitária com uma rotina estressante que envolve longas jornadas a bordo do transporte público entre as cidades de Guarulhos e São Paulo, um estágio cansativo e várias horas dedicadas aos estudos. Ela está concluindo o curso de História na Universidade de São Paulo, a USP, e não vê a hora de deixar essa rotina extenuante para trás. Mas, se em um primeiro momento Diana não parece esconder grandes segredos, o fato é que ela lida com algo peculiar há muitos anos.

Desde jovem, Diana testemunha estranhos fenômenos que mais ninguém ao seu redor parece perceber, breves aparições de uma espécie de névoa colorida flutuando ao redor de determinadas árvores. Em uma noite, enquanto aguarda em frente ao quiosque de salgados da universidade, uma nova ocorrência desse fenômeno tem lugar, mas dessa vez Diana não parece ter sido a única a presenciar a aparição. Até então distraída pelo cansaço do dia, contando as moedinhas para comprar um suco, Diana se vê totalmente desperta ao encarar, próximo à enorme teia de aranha em uma das árvores, uma névoa esverdeada se desprendendo e desvanecendo ao redor. Mesmo presenciando o fenômeno há anos, Diana nunca conseguiu descobrir o que é a névoa colorida que flutua ao redor das árvores, mas seu mundo está prestes a virar de cabeça para baixo quando ela, finalmente, descobre o que essas ocorrências significam.

“Um passo no escuro pode dar num abismo — falei — Ou numa saída.”

Assim tem início a trama de Árvore Inexplicável, terceiro livro de Carol Chiovatto, o primeiro publicado pela Editora Suma, com arte de capa de Bruno Romão. A autora, conhecida por Porém Bruxa (2019) e Senciente Nível 5 (2020), ambos publicados pela AVEC, mostra com seu novo trabalho o que a fez finalista do Prêmio Jabuti de 2021, se consolidando a cada dia como uma das melhores vozes nacionais da fantasia urbana e da ficção científica. Em Árvore Inexplicável estão todos os elementos que aprendemos a amar em Porém Bruxa e o tom questionador de Senciente Nível 5 unidos em um universo inteiramente novo, ainda que familiar. Familiar no sentido de que conhecemos os cenários em que a história de Diana se passa, visto que ela navega por São Paulo e arredores, mas também no que se refere aos hábitos dos personagens, tão intrinsecamente brasileiros que poderíamos ser eu, você e algum amigo protagonizando a trama.

Embora tenha passado muito tempo acompanhada de literatura estrangeira enquanto crescia, sempre tinha um sabor especial percorrer as páginas de livros tipicamente brasileiros, com as nossas cores e cultura. Ler Árvore Inexplicável foi como relembrar as tardes em que passava lendo a série Os Karas, de Pedro Bandeira, ainda que as tramas não sejam parecidas. O que reacendeu minha memória afetiva, por assim dizer, é a identificação com aqueles cenários e aquelas pessoas tão reais para mim como se fossem amigos meus. É sempre uma experiência muito divertida ler obras brasileiras contemporâneas, com todos os pequenos detalhes que nos fazem ser quem somos, e Carol Chiovatto sempre é primorosa e detalhista nesse quesito. A identificação é uma das chaves de seu trabalho, algo já sentido em Porém Bruxa e ampliado em Árvore Inexplicável até pela adição de momentos reais como a pandemia e as loucuras de um certo governo sul-americano em tempos de emergência sanitária.

A trama de Árvore Inexplicável se passa durante a pandemia do coronavírus e a autora não se furta de falar sobre a crise sanitária que envolveu o país — e o mundo — no ápice do contágio, o que deixa algumas situações de seu livro ainda mais urgentes e impactantes. O livro, inclusive, está repleto de críticas contundentes à situação vivida no Brasil durante a pandemia, mas também com relação aos setores de pesquisa, algo que Carol Chiovatto, enquanto doutoranda e mestre, deve sentir de maneira pessoal, e com o que me relacionei de maneira vívida por me fazer recordar a época do mestrado. A vida universitária faz parte da trama de Árvore Inexplicável não apenas por meio de Diana, mas de seus amigos que também estudam na USP e de sua irmã que se prepara para prestar o vestibular na mesma instituição. A correria do transporte público, as horas de pé, presa em um engarrafamento, além das longas jornadas dedicadas ao estudo, pintam um quadro muito real do que é ser estudante no Brasil se você não vem de uma parte muito específica e privilegiada da população. E Diana, e seus amigos, fazem parte dessa realidade em que, por meio do estudo, se busca uma vida melhor, mas não somente — toda a narrativa envolvendo a pesquisa científica se mostra importante para o desenvolvimento da trama de Árvore Inexplicável, também surgindo como um lembrete de como esse é um setor importantíssimo para o desenvolvimento de qualquer país.

O que começa com um pequeno mistério envolvendo Diana e a ocorrência da névoa brilhante que surge ao redor de árvores específicas, deságua em uma trama cujo senso de urgência vai crescendo exponencialmente ao decorrer das páginas. Logo, Diana se vê envolvida em algo muito maior do que ela, com segredos de família, névoas cada vez mais estranhas, aranhas tecedoras e raízes de árvore que se movem a um mero comando. Diana até mesmo passa a questionar sua sanidade quando coloca em perspectiva tudo o que está vivendo, mas as explicações que surgem para ela — e os leitores — mostram que a realidade do que está experienciando é ainda mais surreal do que poderia supor. A visão das névoas, até então inexplicável, é somente a ponta do iceberg de uma trama envolvendo seus amigos próximos, espécies ameaçadas, conspirações e jogos de interesse maquinados por pessoas corruptas cujos ganhos estão sempre acima dos danos ao ecossistema em que vivem.

“É impressionante quanta coisa dá pra fazer quando te subestimam.”

Toda a trama do livro é permeada também por questões ambientais, mostrando como grandes corporações buscam os lucros em detrimento da preservação de ecossistemas inteiros. São tantos os temas reais abordado por Carol Chiovatto em sua Árvore Inexplicável que durante a leitura é impossível não exclamar de êxtase com as referências da autora, mostrando que para além de um grande talento, Chiovatto também possui consciência do país e do mundo em que vive, onde a natureza não cansa de pedir socorro. A diferença é que no universo de Árvore Inexplicável, um toque do enigmático pode ajudar na luta pela preservação, enquanto no nosso mundo real as coisas parecem longe de terem uma solução.

Para além da trama envolvente, costurada com cuidado e atenção por parte da autora, Árvore Inexplicável também possui personagens carismáticos — e outros que a única solução é prender e jogar as chaves fora — pelos quais é fácil torcer. Diana, a protagonista que se vê presa em uma trama impossível, é uma moça corajosa, ainda que não se veja dessa maneira, resiliente, inteligente e gentil. Ela acredita no melhor das pessoas e tem uma alma amorosa, o que se reflete em alguns dos desdobramentos da trama. Ao lado dela estão Thiago, seu colega do curso de História, Miguel, irmão deste, que deixa Diana com a cabeça nas nuvens, além dos irmãos Yoko e Tadashi, e Mayara, amiga de infância de Diana. Esse grupo de jovens adultos tem falhas como todos nós, são divertidos e repletos de nuances, nem de todo bons, nem de todo maus. E aí está mais um trunfo da escrita de Chiovatto: a autora mescla personalidades e cria vozes tão únicas para seus personagens que é como se eles de fato fossem meus amigos, pessoas que me fazem torcer por seu êxito e ficar apreensiva quando passam por algum momento de tensão, e o livro está repleto deles.

“Então, vamos lá dar murro em ponta de faca. Não existe outro modo de ser brasileiro, eu acho.”

Aqui cabe mencionar as ótimas cenas de ação descritas por Carol Chiovatto, dignas dos melhores filmes de Hollywood, com direito a fuga pela janela de um prédio e perseguição de carros capazes de deixar o leitor na ponta da cadeira de tanta ansiedade pelo desdobramentos que virão nas próximas páginas. Os relacionamentos entre os personagens também são deliciosos de acompanhar, seja no quesito romance, da amizade ou do amor — e raiva — que somente irmãos podem experimentar um pelo outro. A autora não dá ponto sem nó e tudo em seu livro tem uma razão de ser, o que torna a experiência de leitura algo único e muito divertido.

Para além de todas as sensações que você terá lendo Árvore Inexplicável, algo que uma resenha, por melhor que seja, nunca será capaz de proporcionar, Carol Chiovatto ainda entregará ao leitor as criaturinhas mais adoráveis a já surgir nesse Brasil de papel e tinta criado por ela. Árvore Inexplicável é uma obra capaz de reunir temas atuais ao fantástico e mágico, além do romance e da ação bem trabalhadas, elementos que manterão o leitor refém da narrativa, tornando impossível deixar o livro de lado. A escrita esmerada da autora verte em diálogos repletos de sarcasmo e humor, além de reviravoltas e mistérios que precisam ser desvendados em uma corrida contra o tempo. Árvore Inexplicável reúne elementos que estão em nosso dia a dia de maneira natural, e Chiovatto não desvia de nenhum tema “difícil”, apontando questões sociais urgentes e importantes, como feito em seus trabalhos anteriores. Que as ocorrências de Árvore Inexplicável se expandam, e muito, por aí.

O exemplar foi cedido de forma antecipada por meio de parceria com a Companhia das Letras no NetGalley.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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