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Abuso psicológico: entre vida e ficção

Aviso de gatilho: este texto fala sobre abuso e agressão psicológica contra mulheres.

Quando meu abusador entrou na minha vida, eu era tudo que ele sempre quis.

Meu abusador tinha um jeito bonito de me olhar, um sorriso largo, um abraço-casa; e também me fazia chorar toda semana, encolhida na cama, escondida no banheiro — de casa, de restaurantes, de bares. Meu abusador não cansava de dizer o quão linda eu era; e também perguntava por que eu não fazia a sobrancelha, por que eu não tinha escolhido um batom mais chamativo, por que eu tinha comprado aquela blusa que claramente era de ficar em casa. Meu abusador dizia para eu contar com ele, eu não estava mais sozinha; e também ficava nervoso, era rude, ríspido quando eu demostrava medo diante de alguma situação.

Meu abusador pedia incansavelmente para que eu falasse bem dele para os meus amigos; e também, a cada dia, me deixava mais e mais insegura, perdida, confusa. Meu abusador chorava dizendo que a gente era feliz, quando eu dizia que não estava me sentindo bem na nossa relação, que não estava feliz, que queria ir embora. Meu abusador me pegava no colo e me fazia rir aquele riso gostoso de um momento para guardar na memória; e também me traía, me manipulava, mentia, mentia, mentia e me chamou de louca quando por instantes eu vislumbrei a realidade — às vezes acho que estava enlouquecendo mesmo.

Esse relato pode ser meu, seu, ou de alguma outra mulher ao nosso redor. Certamente, de diferentes maneiras, é o relato de muitas vítimas de abuso. Mas digamos, aqui, que essa narrativa seja realmente minha e que, para tentar entendê-la, elaborá-la, expurgá-la, eu tenha recorrido à ficção. A ficção, não raras vezes, funciona como auxílio na compreensão do que é vivido em nossas vidas.

Abuso - Dirty John

Atualmente, muitas são as produções artísticas (filmes, livros, séries) que têm trazido à tona acontecimentos antes escondidos entre quatro paredes, dando voz, assim, a mulheres que sofrem os mais diversos tipos de violência em uma relação dita amorosa — e aqui estamos pensando em relações entre uma mulher e um homem. Ao falar “diversos tipos de violência”, quero dizer que uma mulher pode ser também ferida, machucada ao sofrer violências para além da física. Uma mulher sofre violência quando tem retirado de si o direito de controlar seu patrimônio, o direito de sair de casa a hora que desejar. Uma mulher é abusada quando o parceiro espalha boatos sobre traições que nunca existiram. É violência também quando o parceiro mente, manipula, deturpa situações, omite ou inventa acontecimentos, confundindo a mulher, que acaba por ser chamada de louca.

É esse último tipo de abuso, o psicológico, que permeará os próximos parágrafos. Para isso, falarei acerca de duas séries que discutem essa forma de violência: a segunda temporada de Dirty John: O Golpe do Amor — Betty Broderick (2020) e Maid (2021), ambas construídas a partir de fatos reais.

Dirty John : O Golpe do Amor — Betty Broderick, se baseia na história de Elisabeth Broderick, que assassinou a tiros seu ex-marido, Daniel T. Broderick III, e sua nova esposa, Linda, em 1989, após um divórcio que originou disputas judiciais que se arrastaram por anos. Na série, acompanhamos a relação entre Betty  (Amanda Peet) e Dan (Christian Slater), do momento em que eles se conhecem até o assassinato.

Dan é um estudante de medicina ambicioso e galanteador que acaba por conquistar Betty, que desejava conhecer lugares, ir para a faculdade, ser professora. Eles se casam, têm filhos e vivem anos de grande dificuldade financeira. Dan, de início, faz medicina e, após o término do curso, resolve fazer direito. Tudo, aparentemente, em busca de uma vida melhor para a família. Enquanto o marido estuda, é Betty quem sustenta a casa com pequenos trabalhos, cuida do lar, dos filhos, dá suporte emocional para que o marido alcance o sucesso — o que de fato acontece.

Abuso - Dirty John

Após anos de a família ter enriquecido, iniciam-se os grandes problemas na relação do casal. Dan contrata uma secretária, Linda (Rachel Keller), com quem se envolve. Betty passa a desconfiar, mas o marido nega qualquer envolvimento por muito tempo, até que, de repente, resolve se divorciar para ficar com a jovem. A partir disso, a vida de Betty muda por completo: todas as ações tomadas por Dan vão minando Betty, que a cada dia fica mais perdida, mais confusa. O ex-marido nega perante a justiça toda e qualquer participação de Betty em seu crescimento profissional, é como se ela nunca tivesse feito nada por ele. Ele invalida suas ações, como mulher e como mãe, a chama de interesseira. E claro, de louca.

É em meio a tudo isso que a série traz à tona uma discussão acerca do gaslighting (um abuso psicológico). O termo gaslighting vem de um filme de 1940, chamado Gas Light. Nele, um marido manipula a esposa de forma que ela começa a acreditar que está enlouquecendo. A personagem é mergulhada em um maligno processo de distorção da realidade (em setembro, em São Paulo, estreará o espetáculo Gaslight: Uma Relação Tóxica, última peça dirigida por Jô Soares).

A distorção da realidade é uma das características da violência psicológica. É um abuso sorrateiro que vai destruindo a vítima a conta gotas, dia após dia. Minando sua autoestima, sua percepção do mundo, sua sanidade. O parceiro inventa mentiras, então diz que a companheira está confusa, que dado acontecimento não se deu da forma que ela fala. Diz que ela exagera na reação às situações vividas, o que faz com que ele reaja mal. Ele não tem culpa de nada, ele faz o melhor que pode, mas a mulher não facilita. Ele diz que ninguém mais vai amá-la, que ela é mais feliz ao lado dele, tudo que ele quer é fazê-la feliz. Faz com que a vítima se afaste dos amigos, da família. Faz com que a vítima o defenda quando alguém tenta abrir seus olhos.

Para além, no abuso psicológico, o parceiro é grosso, trata mal a vítima, e depois volta como se nada tivesse acontecido, ou assumindo que errou, pedindo perdão, enchendo a parceira de carinho e promessas de um futuro lindo, de uma vida perfeita — como diria uma amiga, é um cruel jogo de morde e assopra, que confunde a vítima fazendo-a pensar que talvez ela tenha interpretado o que aconteceu de maneira equivocada. O abusador, com comentários que parecem inocentes, fala mal da roupa, do corpo, do cabelo. Desmerece o trabalho da parceira. O abusador traí, engana, manipula e olha nos olhos da mulher dizendo que não fez nada, e chora se acaso ela não acreditar. É a companheira que tem ciúmes demais, que tem medo demais, que é insegura demais. O abusador psicológico é um ator incrível. Em diversas cenas de Dirty John, é possível ver a capacidade que Dan tem de mentir, o rosto sempre impassível, a cara de quem tem absoluta certeza de que nunca errou. Ele fala com tanta convicção que Betty nunca fez nada de bom pela família, pelo contrário, só gerou problemas, que se nós piscarmos, acabamos acreditando nele.

Abuso - Maid

Apesar de tudo isso, pelo menos no início, o abusador psicológico não agride fisicamente a vítima. É a partir deste ponto, a não violência física, que começo a falar sobre Maid, série baseada na vida de Stephanie Land, retratada no livro de sua autoria, Superação (2020).

Na primeira cena de Maid, vemos Alex (Margaret Qualley) e seu companheiro na cama. Enquanto ele dorme, ela o olha assustada. Alex, então, se levanta, pega Maddy (Rylea Nevaeh Whittet), sua filha, no colo e sai de casa no meio da noite, levando consigo apenas 18 dólares. A jovem não tinha para onde ir, não tinha dinheiro nem emprego, mas sabia que precisava sair daquele lugar. Após vários intempéries — e são vários mesmo —, Alex vai para um abrigo destinado a acolher mulheres que sofreram violência doméstica. Em um primeiro momento, ela não acha que deve ir para o abrigo, que estaria roubando a vaga de alguma mulher que precisasse mais, afinal ela nunca apanhou; como a personagem mesma chega a dizer, ela nunca sofreu “uma agressão de verdade”.

É curioso como grande parte das pessoas só acredita que uma mulher sofre agressão quando a vê com hematomas pelo corpo, com um braço quebrado ou… morta. Sean (Nick Robinson), o namorado de Alex, soca paredes, xinga, grita, mas nunca bateu nela. Não havia marcas visíveis no corpo da jovem. Mas sua rotina era permeada por medo, manipulação, chantagens emocionais, traições. Isso também é agressão. E é no abrigo que Alex descobre que o que ela passava era, sim, um tipo de violência.

É nesse lugar também que Alex se vê frente a frente a uma outra importante questão: muitas vítimas de abuso, seja ele qual for, voltam com os seus agressores. Danielle (Aimee Carrero), amiga que Alex faz no abrigo, mesmo tendo sido enforcada pelo marido — ela mostra as marcas ao redor do pescoço —, acaba voltando com o filho para casa. Em princípio, Alex acha isso um absurdo. Como voltar com alguém que te faz mal? Mas depois, ela volta a morar com Sean.

Alex volta para Sean num momento de muita fragilidade, quando sua mãe é internada após um acidente. O ex-namorado se mostra atencioso, cuidadoso. Ela não está sozinha, ele está com ela. Tudo será diferente dali em diante. E esse é um dos pontos que fazem as relações abusivas serem reatadas, muitas mulheres voltam acreditando na promessa de que tudo será diferente. Existe uma esperança de que agora a relação dará certo, ela será feliz. Ela quer acreditar no parceiro, dar esse voto de confiança. Muitas mulheres voltam em momentos de debilidade, como Alex. Ela estava vulnerável, Sean conhecia toda a sua vida, todos os problemas de sua mãe. E esse conhecer, não raro, acaba ganhando ares de acolhimento, de porto seguro. Filhos, dependência financeira são também fatores que fazem com que vínculos tóxicos sejam restabelecidos.

Existem também os casos nos quais se deseja tanto um amor, acredita-se tanto que só estando com alguém é possível ser feliz, que os olhos escolhem estar fechados para o abuso. A mulher, por vezes, se nega a admitir, não só para os outros, mas para si mesma, que aquilo lhe faz mal. Às vezes a dependência emocional parece tão enraizada que sair da situação soa mais doloroso do que ficar. Não se gosta de viver assim, ninguém gosta de sofrer, só que há amor pela pessoa, ou melhor, na maioria dos casos, há amor pela pessoa que existiu no início da relação — porque, em geral, o princípio de um relacionamento é bonito, gostoso, feliz — e se quer imensamente, se acredita imensamente que em algum momento tudo pode voltar a ser como era. Contudo, infelizmente, o que costuma acontecer após o retorno ao relacionamento é o início de um novo ciclo de abusos — que tendem sempre a piorar.

De fato, é muito difícil se libertar de uma relação abusiva, independentemente do que vincula a vítima ao seu agressor. Esses relacionamentos conturbam o significado do que é o amor e fazem com que a gente se perca. Amor não bate, não xinga, não trai, não manipula. Segundo bell hooks, e acredito muito nisso, o amor é formado por um conjunto de fatores, como lealdade, respeito, diálogo, cumplicidade. Realmente é muito difícil sair de um laço tóxico, mas não é impossível. Alex consegue. Desculpem-me o spoiler, mas era preciso trazer essa felicidade para o texto, para vocês.  Se agarrar à rede de apoio — amigos, família —, procurar auxílio psicológico, se redescobrir, descobrir novas coisas que te fazem bem, tudo isso ajuda. Deixar para trás todo o abuso sofrido é difícil, seguir em frente é difícil. Mas não é impossível.

Para encerrar, eu desejo, ou melhor, eu acredito que a dona do relato que iniciou essas linhas — eu, você ou alguma outra mulher que está ao nosso redor — terá um caminho bem bonito pela frente. Percorrido com passinhos dados um de cada vez, respeitando seu tempo, seus sentimentos, sonhando, realizando, amando — amores saudáveis, que é o que todas nós merecemos.

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