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King Princess: da geração Z, do queer e do pop com guitarrinha

É 2020, e há muito — ok, uns dois ou três anos é pouco, sejamos sinceros — nos familiarizamos com o sentimento de nostalgia e anseio que a faixa 1950 transfere para aqueles que a estão ouvindo. Obra que deu o pontapé inicial na carreira de King Princess, a canção até pinta a ideia de brincar e encenar uma vida como se fosse, de fato, vivida no século passado. Mas é no caos do atual momento, político e mundial, que a artista surge e reivindica para si aquilo que ela sempre soube que teria: a grandeza.

Nascida em dezembro de 1998, Mikaela Mullaney Straus foi criada dentro de um contexto tomado pela música. Seu pai, Oliver Straus, é um engenheiro de som e dono do estúdio de produção Mission Sound, já tendo trabalhado com nomes como The National e Arctic Monkeys. Nesse contexto, desde pequena frequentou o estúdio de seu pai como se fosse uma segunda casa, e lá aprendeu diversos instrumentos, bem como técnicas de produção. Foi, inclusive, com o apoio do pai que lançou suas primeiras canções, ainda na plataforma SoundCloud, sob o nome de Mikaela Straus. Algumas de suas primeiras músicas são encontradas no Spotify, mas a estrada — sonora, visual e lírica — evoluiu e se transformou bastante de lá até então. A mãe, Agnes Mullaney, é uma empresária e ativista. E, num contexto onde o divórcio dos pais aconteceu muito cedo, a artista passou a alternar casas sem muito pesar, tendo como pano de fundo a agitada realidade nova iorquina do Brooklyn.

Se a música vem com naturalidade dentro do núcleo familiar, a convicção também vem de berço. Em 1912 seus tataravôs, Isidor Straus, dono da rede de lojas de departamento Macy’s, e Ida Straus, estavam a bordo do Titanic. Enquanto Ida poderia ser salva, ela escolheu estar do lado do marido até o fim. A tragédia já foi retratada em alguns dos filmes que contam a notória história sobre o navio que afundou. Para Mikaela, sua família é muito extra — um jargão que combina bem com sua persona artística.

A origem de King Princess como a conhecemos muito vem de sua infância e adolescência, da liberdade que teve para ser criativa, do ambiente em que se encontrava e a total falta de pressão por parte dos pais em seguir carreiras específicas ou um caminho determinado. Aos onze anos, recusou uma proposta com uma gravadora, sabendo que mais para a frente novas propostas surgiriam. Pela vida acadêmica, pós-escola, ela não quis trilhar, muito embora ela tenha tentado por um tempo antes de perceber que não daria certo. Desde muito pequena ela admite com uma confiança que beira a arrogância que, sim, ela iria fazer música. E sim, ela faria boa música. Nisso, e de um panorama amplo, um berço de ouro inegavelmente facilita as coisas. O acesso fácil ao mundo da música e o apoio dos pais têm lá o seu peso. Na história do pop, vimos grupos inteiros serem montados, forjados e lapidados em estúdios. Fama, de certa maneira, pode sim ser comprada. Talento, no entanto, não. E King Princess, persona frenética, tem talento de sobra.

Mas, ainda assim, sendo uma mulher no mundo da música, sentiu muito o gosto da condescendência. Então, quando conheceu Mark Ronson — que pouco tempo depois assinaria King Princess em sua gravadora, Zelig Records — deu um show verborrágico ao tentar mostrar que ela sabia o que estava fazendo e do que estava falando. Deu certo, e de lá para cá iniciou uma jornada que consiste em mostrar ao mundo o porquê ela tem seu discurso do Grammy preparado desde criança. Com o EP Make My Bed, de cinco músicas, lançado em 2018, as canções “Talia” e “1950” ganharam os holofotes, contando as duas pontas de um romance sáfico, mas suas companheiras de EP não perdem em poder quando comparado com estas, em especial “Upper West Side”, que, de forma sonhadora, canta os encantos e o rolar de olhos, simultaneamente, de uma relação embebida em diferença de status. Na época, no auge dos dezenove anos, já capturava o desgosto de se ver enfeitiçada por algo que, no fim do dia, nem faz sentido.

Para além do espaço para ser criativa, Mikaela cresceu em uma época onde, já longe da década de 50, ser uma adolescente e jovem adulta abertamente queer já não implica nas amarras que outrora implicaria. Estamos vivendo em épocas conservadoras e perigosas, isso é incontestável, mas, numa forma de resistência em um momento político permeado de preconceito, a representação LGBTQI+ está cada vez ganhando mais espaço. E nesse espaço, King Princess pode ser uma de suas maiores representantes. Numa recente publicação no seu Instagram, enalteceu a fluidez de seu gênero. Em diversas entrevistas, reconhece que sua persona beira o homem gay, ou, por vezes, uma drag queen muito elaborada. Daí, inclusive, a brincadeira de seu nome artístico: ela é tão rei quanto é princesa. Emocionalmente, é uma mulher que gosta de mulheres, e os tabloides adoram acompanhar suas relações. Em 2018, com Amandla Stenberg — que, na época, identificava-se como bissexual e, só por meados daquele ano, como lésbica, e também se identifica como não-binária — e, nos dias atuais, com Quinn Whitney Wilson, diretora criativa por trás de Lizzo.

Foi sob esse panorama, e com a atitude badass vulnerável que, em outubro de 2019, lançou seu primeiro álbum, denominado Cheap Queen. Em treze canções no original, ganhando uma versão deluxe em fevereiro desse ano, esmiuçou os altos e baixos de um coração quebrado. Para quem acompanhou sua relação nada escondida com a atriz de Jogos Vorazes, é possível pintar um quadro sobre como as coisas deram errado se, e apenas se, levarmos ao pé da letra como sendo autobiográficas suas canções — Cheap Queen é um álbum biográfico, ela diz. A música que abre o álbum mistura desaprovação e aceitamento dela para si mesma, em suas atitudes e pensamentos que, como o nome diz, traduzem “Tough on Myself”. Em “Cheap Queen”, abraça as multifaces de si e daqueles que são os seus — é possível ser boa, má, pode até mesmo ser rainha (não rei, nem princesa); verbaliza um ego amaciado por ser o centro das atenções, um sentimento que, por modéstia, muitas vezes relegamos ao nosso interior. Que a artista — persona — não tem um pingo de chill no corpo, isso já sabemos, e em “Ain’t Together” mergulhamos dentro de uma relação cheia de incertezas, num tipo de relação que você não sabe onde se posiciona, nem o que é, muito menos para onde anda.

You know that those boys will do more than just look if you let them” [“você sabe que esses garotos farão mais do que apenas olhar, se você os deixar”], canta em “Homegirl”, enquanto desenha com suavidade o que soa e ressona muito com uma relação pouco delimitada entre uma mulher com outra mulher, sendo a segunda bissexual. “But I don’t wanna be like them with you but you still look at me like him […] we’re friends at the party, I will give you my body at home” [“mas eu não quero ser como eles, com você, mas você ainda olha para mim como ele […] somos amigas na festa, te darei meu corpo em casa”], costura com precisão um sentimento de insegurança. Já no segundo single do disco, King Princess renova o sentido de luxúria e paixão com a ótima “Prophet”, para mudar o tom do álbum dali para a frente. Se ela não sabe qual o limite que separa amigos de amantes em “Isabel’s Moment”, em “Trust Nobody” não há ninguém que seja páreo ao único “você” em quem ela deposita confiança e desejo — “watching me slip over words, it kinda hurts, for what it’s worth I just wanna be with you”. Na dançante “Hit the Back”, último single do álbum e canção dedicada à sua atual namorada, King Princess reconhece um “estar à mercê de”, em uma sensação desprovida de poder frente aos encantos da pessoa desejada. Como dito à Rolling Stones, há uma cronologia por trás de Cheap Queen, uma evolução emocional ao longo das canções, e com o lançamento de sua versão deluxe, essa evolução entra em ebulição na gigante “Ohio”, sem dúvida um dos cristais musicais de 2020: entre acordes de guitarra e voz afetuosa, King Princess mostra que chegou para ficar.

O talento da artista (pois arte!) recai em transferir ao ouvinte sentimentos certeiros, mas também comuns e poucos originais, ainda que nem sempre verbalizados no dia a dia. Em suas canções, condensa sensações muito peculiares que existem no querer, sabendo que não deve, no se divertir mesmo estando triste; no enaltecer os seus, ainda quando se sente inadequada. Normaliza o afeto e o amor romântico entre mulheres, não para levantar uma bandeira, mas porque esse é único jeito de viver a vida. Em entrevistas, reconhece o impacto gerado por ela dentro de sua própria comunidade, abraça a necessidade de existirem espaços e experiências que ressonam com o público queer, mas renega que possa ser a voz da comunidade pois ninguém cumpre todos os requisitos e pode ser a porta-voz de um grupo tão eclético, diferente e cheio de suas próprias nuances. Se King Princess reconhece o seu papel, reconhece, também, as lutas pelas quais lutar: mais de uma vez se posicionou como uma aliada ao movimento Black Lives Matter, tendo viajado do Hawaii para LA quando os grandes protestos emergiram em prol de George Floyd, em junho desse ano, nos Estados Unidos. Durante entrevistas, reiteradamente afirma a necessidade de se consumir arte feita pelas mais diversas vozes: negras, trans, imigrantes e gays. Mas, quando olha para si mesma, quer conquistar o seu espaço e competir com a sua música — pouco importando quem está do outro lado. “Queer”, como ela diz, não é um gênero musical.

Nos palcos, contudo, a atitude rockstar, quando misturada com suas composições confessionais, conquista fãs e espectadores, em especial àqueles que enxergam nela um modelo de artista que gostariam de ter acesso quando mais jovens. No clipe de “Ohio“, por exemplo, vislumbramos, encantados, a felicidade dos presentes em experienciarem uma energia que se posiciona bem longe da heteronormatividade. Se, há quinze ou vinte anos, boa parte da comunidade LGBTQI+ tinha como ídolos artistas pop majoritariamente héteros, pois era o que o nicho musical oferecia em sua maioria, hoje em dia há um leque de novos rostos que cantam e dançam sobre as verdades desse grupo, como Hayley Kiyoko, Troye Sivan, Janelle Monáe, Halsey, Conan Gray e Pabllo Vittar, para citar alguns. O impacto de se ver representado nas telas e nas rádios é grandioso e já se observa uma mudança comportamental naqueles que, desde cedo, se veem refletidos dentro da cultura popular. E isso, por si só, já um ganho, e abre espaço para que jovens, cada vez mais cedo, explorem sua autenticidade. Certamente ainda há muito o que se trilhar, mas existimos e resistimos. Ou resistimos e existimos. E nessa linha, King Princess se integra por completo.

Sua voz, criações e sua postura perante o mundo a posicionam como um novo ícone geracional. De King Princess emana um ar muito caótico e também jovial, porque King Princess é um dos rostos da geração Z — uma geração jovem que experimenta o caos com acesso facilitado. As possibilidades são tremendas, e tudo o que sai de King Princess, vem de forma ávida, intensa, de um jeito bem menos contido do que a maioria das artes feita pela nossa geração de millennials. Ela processa sua própria tristeza em suas produções e age com leveza perante a vida; leva desordem aos palcos, mas calmaria a sua própria casa. Brinca com sua persona, com suas roupas e sua própria música porque sabe que explorar é bom e que não existe apenas um jeito de existir no mundo. Não dá para saber o que, como e quando King Princess irá lançar seu próximo trabalho — a única coisa que sabemos, com certeza, é que o reinado dela está só no começo.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.

2 comentários

  1. MEUDEUS SIM!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1111111 aplaudindo esse textão de pé. king princess é a rockstar que precisamos mesmo. ela disse no instagram que tá gravando coisas novas. vamos aguardar.

    amei amei amei ler tdo isso aqui 🙂

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