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Porém Bruxa: uma fantasia urbana em São Paulo

Com mais de 12 milhões de habitantes, de acordo com dados coletados pelo IBGE em 2019, São Paulo é uma das cidades mais populosas da América Latina — e é nessa cidade em que Ísis Rossetti trabalha. Como bruxa, o trabalho de Ísis não tem nada de comum e sua função nessa metrópole é monitorar crimes envolvendo forças sobrenaturais. Em teoria, parece simples, mas na prática vamos descobrir ao lado de Ísis que as coisas podem ficar magicamente sinistras muito rápido, principalmente em uma cidade tão caótica quanto São Paulo. É a partir dessa premissa que tem início Porém Bruxa, livro de Carol Chiovatto publicado pela AVEC Editora. 

Ísis, enquanto bruxa, tem algumas regras a seguir para realizar o seu trabalho — o que não significa dizer que ela de fato siga cada uma dessas regras. De maneira a não interferir na vivência dos comuns, ou seja, humanos sem poderes, Ísis não pode intervir em acontecimentos que não envolvam magia e muito menos deixar que seja vista praticando feitiços por quem não é parte do seu povo. Mas em uma cidade tão enorme e envolta em caos e violência como São Paulo, Ísis, que nem sempre consegue fechar os olhos para o que acontece ao seu redor e acaba intervindo e ajudando das sombras a solução de crimes dos mais diversos tipos, inclusive de casos da Delegacia da Mulher.

“Parecia-me que quem seguia as leis sempre acabava em desvantagem, pois os bandidos tinham total liberdade de agir como quisessem.”

Quando Ísis percebe que o desaparecimento de uma menina pode estar relacionado ao surgimento de um novo bruxo na cidade, ao sumiço de uma mulher e a um atentado a um terreiro, ela não perde tempo para tentar desatar os nós que ligam os três crimes. Com a ajuda de seus amigos e sua intuição apurada, aos poucos Ísis que a situação é ainda pior do que ela imagina — e ela precisa correr para dar conta das três investigações, impedindo que o pior aconteça e o mal dê mais um passo em direção ao mundo dos comuns. É com a união de suspense policial, investigação e fantasia que Carol Chiovatto dá início a uma trama que renderia facilmente algumas continuações tamanho o talento da autora para nos deixar sempre sedentos por mais de suas histórias e seus personagens. A começar, é claro, por sua protagonista.

Ísis é do tipo que não leva desaforo para casa, tem a língua maior do que a boca e se mete em encrencas mesmo sem querer — mas tudo isso por que tem a necessidade de ajudar quem precisa dela, mesmo que isso a coloque em maus lençóis com o mundo bruxo. Como dito anteriormente, Ísis não pode usar sua magia para interferir nos assuntos dos comuns mas sempre que possível ela dá um jeito — e o faz principalmente quando seus amigos pedem ajuda. A forma como Carol Chiovatto constrói Ísis e sua trajetória serve para quebrar um pouco o velho estereótipo da bruxa que tanto vemos na cultura pop, principalmente quando insere a personagem e sua narrativa em São Paulo, um ambiente facilmente identificável por quem a lê.

Carol Chiovatto escreve em Ísis uma protagonista intensa, humana e perfeitamente crível. Ao mesmo tempo em que ela é uma bruxa que conversa com entidades, atravessa o mundo dos mortos por meio de portais, é sensitiva e realiza feitiços, Ísis também é uma mulher que esconde os próprios traumas, tem enxaquecas, se exaure, sente dor, fome, fica presa no trânsito louco de São Paulo e curte transar casualmente. Ísis é crível por cada uma dessas coisas, o que deixa a leitura de Porém Bruxa ainda mais deliciosa — é quase como se estivéssemos acompanhando a jornada de uma amiga, torcendo por ela, ansiosa para que tudo termine da melhor maneira possível. Se fosse apenas por Ísis a jornada já valeria a pena mas a autora insere personagens coadjuvantes tão interessantes quanto a protagonista e que eu espero ter a oportunidade de ver mais em livros futuros. Não há nada confirmado por parte da editora ou da autora, mas Porém Bruxa tem material para se transformar em uma série incrível. Como comentei no Twitter quando finalizei minha leitura, estou pronta para ler outros dez livros de Ísis sendo bruxa em São Paulo.

Para além da trama interessante que te prende do início ao fim, com mistérios a serem desvendados em uma corrida contra o tempo, Carol Chiovatto consegue inserir em sua narrativa elementos que estão em nossas vidas de maneira orgânica e nada forçada, apontando o machismo de cada dia que não poupa nem mesmo uma bruxa, o racismo que fere, a LGBTfobia que sangra. Seus personagens enfrentam feitiços e o sobrenatural mas também precisam lidar com problemas muito reais como a intolerância religiosa, o fanatismo e o extremismo religioso — assuntos cada vez mais presentes em um Brasil que deveria ser plural. É muito triste ler a descrição de como um terreiro fica após o ataque de extremistas evangélicos, e pior ainda é saber que nada disso é somente ficção.

“É que o poder dos deuses vem da fé de seus seguidores. Da fé íntima, legítima, não a proclamada em voz alta.”

A autora é sempre muito respeitosa e cuidadosa ao abordar as diferentes religiões dos personagens e mesmo lidando com uma trama de fantasia, com seres que viajam por portais ao girar uma pedra entre os dedos e que usam poções preparadas em frasquinhos, em momento algum ela aponta essa ou aquela fé como maior ou mais válida. É, inclusive, muito reconfortante ver como Carol Chiovatto não se esquiva de certos assuntos espinhosos relacionados a religião e os aborda como tem que ser, de maneira crua e direta. Essa parece ser uma das características da escrita da autora que não se isenta de falar o que tem que ser dito, doa a quem doer.

Porém Bruxa tem esse mérito: a trama reúne aspectos fantásticos e sobrenaturais, mas não se exime de costurar a tudo isso questões sociais urgentes e importantes, especialmente a violência de gênero e a já citada intolerância religiosa — o que se espelha facilmente com o que acontece no Brasil diariamente e em grau ascendente desde 2018. O elenco de personagens é o mais diverso possível e sem parecer forçado, ele apenas o é. Carol Chiovatto construiu um universo ficcional entrelaçado ao nosso mundo real com maestria, tornando o leitor refém de sua trama do início ao fim. Como leitora, é isso o que me instiga cada vez que inicio um livro: quero me importar com os personagens e suas histórias como se fossem reais, e Carol faz isso magicamente. É impossível não torcer por Ísis, Helena, Dulce Vitória, Fernanda, Murilo e Victor — e torcer, também, para que possamos conhecer mais sobre cada um deles em histórias futuras. Porém Bruxa tem uma trama fechada mas não há a impossibilidade de ser expandida — o que eu amaria completamente. Manda mais Ísis, manda mais magia brasileira. Criatividade, inteligência e competência para desenvolver essas tramas Carol Chiovatto tem de sobra.

“Eu sabia que você vinha porque você sempre veio. Toda santa vez. Nos problemas mais banais e naqueles que pareciam preceder o vale das sombras da morte.”


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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